Torneira versus mota de água
Parece saída de um filme de terror, ouvida na escuridão, mas foi a frase de David quando entrou sem aviso na sua antiga empresa, a meio do dia. Ia cheio de razões, de angústias, mas pronto a enfrentar o buraco negro, os raios cósmicos venenosos que se criam na explosão de uma amizade. David perguntou às ex-colegas (devemos dizer ex-empregadas?):
– Conseguem dormir à noite?
Muitos meses depois de, “por invocação de justa causa”, ser despedido da empresa que criara com um amigo, David, o inventor de “tecnologias disruptivas” (“disruptivas?… nunca tinha ouvido tal coisa na minha vida”, admitiu o juiz), o cérebro que desenhou a patente de uma torneira revolucionária que iria produzir electricidade com a própria saída da água, estava agora no banco do tribunal. Desenrolava um novelo de acusações e contra-acusações. David explicou o que dissera ao entrar no prédio:
– Nessa conversa, eu disse uma frase que tinha a ver com o facto de os colegas delas terem sido despedidos: “Vocês conseguem dormir à noite, com os vossos colegas despedidos?”. Pensando eu que as próximas seriam elas. Qual não é a nossa surpresa quando fazem queixa contra mim…
David abria as mãos e abanava o rabo-de-cavalo negro, o fato-e-gravata retirado do armário, a testa e o nariz a prumo. Agora a luta da sua vida é defender-se de Pedro e atacar Pedro: “gestão danosa” para cá, “abuso de confiança” para lá, “injúrias”, “mentiras”, “comportamentos criminosos”, “falências”, “usurpação”, de tudo se acusaram mutuamente os dois ex-amigos em cartas registadas, e-mails, telefonemas, em corpo e voz.
É a luta da vida de David, mas não devia ser. Quando se conheceram na Faculdade de Engenharia Electrotécnica, um David com a energia dos homens que querem reinventar o Mundo (uma ideia, uma tecnologia nos cinco continentes, uma fortuna planetária à mão) e um Pedro com alma de gestor, pareciam a equipa certa. Sonho/cabeça fria, invenção/cálculo. Passaram os anos e, agora, o que se via em tribunal era o desperdício dessa energia vital em queixas e denúncias. A invenção revolucionária perdeu-se algures numa luta de galos (afastaram-se investidores internacionais, inviabilizou-se uma apresentação Ted Talk). E sobra um filme que, mais do que de terror, parece uma comédia policial de má produção e argumento.
Por exemplo, diz David, o ex-colega chamava “Pedro’s Angels” a todos e a todas aqueles que estavam de acordo com ele.
Mas o culminar da crise foi a Internet. David, que tinha ido ao casamento de Pedro com uma centro-americana, quando a amizade acabou – e soube que essa mulher de Pedro entrara para o marketing da empresa – descobriu uma “notícia” num site online: “Prófuga da justiça esconde-se em Portugal”.
Continuava a página explicando que a senhora [a mulher de Pedro], “a qual tem uma ordem de captura internacional pela Interpol, é procurada pela Justiça da Costa Rica pelos delitos de subtracção de menor de idade, subtracção agravada de menor de idade, desobediência à autoridade, tráfico ilícito de pessoas”.
Conhecendo o mundo dos homens, podemos pensar numa mulher que escapa ao marido de quem já não gosta, ou de quem tem medo, e não encontrou outro modo, depois de várias tentativas legais, senão pegar na criança e fugir da sua terra e das suas leis. O maior problema é que a “notícia”, partilhada por David no seu Facebook, era ilustrada por duas fotos inacreditavelmente influenciadoras. A cara da senhora e, ao lado, uma imagem de Pedro e da sua mulher numa moto de água, em calção de banho e biquíni. Enormes sorrisos, esguichos de água. Juventude, desporto, vida de luxo, tudo se insinuava ali. Pedro, que entre as várias acusações dizia que a displicência de David custara centenas de milhares de euros, tinha agora um argumento impossível de apagar:
– A minha mulher não ficou em bom estado. Telefonam-me a dizer que o David tinha partilhado uma notícia da minha mulher a dizer que era criminosa procurada pela Interpol.
Foi uma semana antes de nascer o filho de ambos.
Mas David foi absolvido da difamação e da injúria. Limitou-se, segundo o tribunal, a acusar abertamente o ex-sócio dos mesmos crimes de que Pedro o acusava. Quanto ao post com a Interpol, este já existia, até tinha saído nos jornais, “e que se saiba o assistente não viu nisso qualquer actividade difamatória”.
A torneira eléctrica que ia salvar o Mundo parece que falhou.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)