Telefonemas de trabalho fora de horas: atender ou rejeitar?

Foi a pressão do telemarketing que levou Pedro Caiano, 40 anos, a optar por dois contactos de telemóvel: um pessoal, para familiares e amigos, e outro dedicado à área profissional de consultor imobiliário. “Perdemos facilmente o controlo sobre os nossos dados e o número é partilhado em bases de departamentos e serviços comerciais que ligam insistentemente”, aponta.

A trabalhar por conta própria, é ele quem gere as fronteiras da vida pessoal e profissional. Por regra, não atende contactos desconhecidos ou privados no telemóvel pessoal para se poupar a chamadas que nem o famoso Regulamento Geral de Proteção de Dados parece evitar.

No que toca ao trabalho, Pedro tem consciência que deve estar contactável para potenciais clientes, até para aqueles que não conhece ou com os quais ainda não criou relação. “Partilho o meu contacto em placas publicitárias, anúncios online, cartões-de-visita e no meu perfil de consultor online pois sei que as chamadas são sempre um potencial negócio que não quero perder.”

Durante a noite, programa o telemóvel para entrar automaticamente em “não incomodar”, com exceção dos números de familiares e amigos próximos.

Quando está de férias, ativa o reencaminhamento de chamadas profissionais para um colega ou desliga mesmo o aparelho. “A gestão é muito simples desde que o telemóvel tenha a possibilidade de ter dois cartões SIM ligados, e ando apenas com um dispositivo. A única desvantagem é o custo: dez euros adicionais na conta de telecomunicações”, explica.

Ainda que siga a sua rotina com estas regras básicas, assume que “é difícil desligar totalmente”. Nem sempre foi assim. Na sua atividade anterior estava sempre disponível. Atualmente, obriga-se a esta gestão “simples mas cuidada para não perder oportunidades”, ao mesmo tempo que gere os horários pessoais e laborais da “forma mais saudável possível”.

Recentemente, tinha optado por não trabalhar no dia 31 de dezembro – pois além de ser a passagem de ano, é a data do seu aniversário de casamento – e recebeu um contacto de um desconhecido. “Podia não ter atendido mas atendi. Dias depois tive a escritura de um apartamento com esse cliente, e foi um negócio importante para mim.”

Neste caso, desligar ou atender fez toda a diferença. “Quem trabalha por conta própria pode sentir uma responsabilidade acrescida e, por isso, uma maior necessidade de estar disponível e contactável para não perder clientes, oportunidades de negócio ou outras”, analisa Cláudia Madeira Pereira, psicóloga clínica e da saúde.

Até porque “vivemos num mundo cada vez mais exigente e competitivo”. Esta necessidade, no entanto, acarreta custos. “Mesmo que a pessoa tenha ganhos, perde em tempo para si ou para a família e em descanso. Consequentemente, pode abrir um mau precedente porque quando se aceita funcionar nestas condições e estar sempre ligado, a exigência por parte dos outros, sejam clientes ou empresas, tende a manter-se ou mesmo a aumentar.”

É preciso uma lei ou o senso comum basta?

O tema não é novo. Em França, em janeiro de 2017, foi aprovada pelo Governo de François Hollande uma lei, integrada num conjunto de medidas laborais mais amplas, que passou a dar aos trabalhadores “o direito a desligar”. Ou seja, a não atender o telefone ou aceder ao e-mail depois do horário de trabalho.

Meses mais tarde, em Espanha, a filial da seguradora Axa passou a integrar este direito no contrato coletivo de trabalho dos seus funcionários. Em junho do ano passado, foi também assinado um pré-acordo do banco Santander com os sindicatos, em Espanha, no qual que se assume esta nova cultura com o objetivo de tornar o banco uma das melhores instituições para se trabalhar.

Em Portugal foram apresentadas várias propostas de alteração ao Código de Trabalho (que na sua génese já contempla o direito ao descanso), que, no entanto, ainda não saíram do papel.

Rita Magalhães tem 27 anos e é “executive account” numa empresa de comunicação e eventos. Trabalha em constante contacto com clientes de diversas áreas e com múltiplas exigências. No seu caso, ter dois números faz toda a diferença. Apesar de o telemóvel profissional estar sempre consigo, opta por não dar resposta imediata ao que não é tão urgente e estar atenta ao surgimento de alguma situação inesperada ou de crise.

“Adoro o meu trabalho mas é importante respeitar o tempo que passamos com a família e os amigos. Muitas vezes, o trabalho torna-se num vício”, assume. Rita escolhe a palavra “sorte” para definir a sua chefe: “Respeita muito a nossa vida pessoal e é a primeira a agendar tudo para que não sejamos incomodados à noite, aos fins de semana ou nas férias”, conta. “Só liga ‘fora de horas’ quando é mesmo urgente, e ainda assim, tenta primeiro um contacto através de SMS.”

É claro que existem exceções à regra – por exemplo, quando a agência organiza eventos e se pressupõe enorme disponibilidade. Também sabe que há pessoas que preferem ligar-lhe muito cedo e outros que deixam as comunicações mais para o final do dia, perto da hora do jantar. “São os clientes que nos dão trabalho, pelo que também temos de ceder em alguns momentos, se necessário, mas regra geral não tenho razões de queixa.”

Rita pode gabar-se de ter qualidade de vida apesar dos picos de trabalho típicos da sua profissão. “Temos na nossa entidade patronal um exemplo a seguir – a minha chefe começa a incentivar-nos a ir embora a partir das 18 horas mas também gosta que estejamos todas na agência às nove.”

Quando tenta descansar a cabeça, evita atender chamadas e responder a mensagens à noite e aos fins de semana. O mesmo se aplica aos e-mails. Não é tarefa simples. “Sou muito focada no meu trabalho e gosto bastante do que faço, por isso torna-se difícil chegar a casa e simplesmente esquecer o que deixámos no escritório.”

Saber dizer não

Estabelecer limites e condições é essencial. Caso contrário, não demorará muito a que a pressão origine mal-estar psicológico e emocional, podendo levar, mais tarde ou mais cedo, a síndromes de burnout, também conhecido como síndrome de exaustão profissional. Em muitos dos casos que a psicóloga Catarina Lucas analisa em consulta transparece dificuldade em sair a horas do emprego, a que junta o levar trabalho para casa.

“A vantagem em ter dois números, dependendo do tipo de função, passa por conseguir uma separação mais eficaz entre os dois mundos: o pessoal e o profissional”, defende. O mais importante, na sua opinião, é mesmo ser assertivo e ter capacidade de dizer não. “É uma imposição de limites que começa em nós mesmos. Numa fase inicial, os clientes e as chefias poderão estranhar, mas com o tempo, habituar-se-ão.”

A própria psicóloga também tem de fazer esta gestão e acaba por dar o seu contacto às pessoas que atende em consulta. “Muitas vezes sou o seu único suporte. Contudo, sabem que apenas me devem contactar em situações urgentes.” Sugere um primeiro contacto por SMS ou e-mail, respondendo se achar que o deve fazer, avaliando a urgência.

Quando desligar totalmente não é possível, há que pensar num meio-termo onde seja permitido algum nível de contacto sem que isso seja uma constante. “É preciso reivindicar o direito à família, ao lazer, à vida pessoal. Não somos máquinas de produtividade inesgotável. Só a conciliação eficaz nos permite ser melhores no que fazemos e estarmos mais disponíveis para o trabalho, no horário em que é suposto”, sublinha.

A assistente Joana Godinho Almeida, 39 anos, trabalha por conta de outrem e tem apenas um número de contacto, pois nunca foi contemplada com um telemóvel de serviço, pelo que foi forçada a adaptar-se. “Ter dois números nunca foi uma hipótese em cima da mesa. Só dou o meu contacto a colegas de trabalho e digo sempre que é um número pessoal. Grande parte dos profissionais respeita isso.”

Opta por atender o telemóvel apenas nas horas de serviço. Se insistirem, responde com um SMS a informar que não está disponível mas que retorna a chamada no dia seguinte. O facto de ter uma entidade patronal que respeita os horários dos funcionários é uma mais-valia. “Tenho autonomia técnica e sou a responsável dentro do meu grupo profissional, o que também ajuda.”

Nem sempre foi assim, mas atualmente Joana consegue mesmo desligar. Foi o facto de se ter tornado mãe (tem duas crianças: Lourenço, nove anos; e Mafalda, seis) que a fez aceder o botão “off” – porque os filhos precisam da mãe a 100%. “Há que mostrar à nossa família que estamos presentes de corpo e alma. Se todos devemos ter direito à desconexão? Acho que é algo muito pessoal. No meu caso a prioridade é a família, apesar de adorar o meu trabalho.”