Rui Cardoso Martins

Prisão por um bacalhau

Contei uma vez, duas, três, que as minhas idas ao tribunal são como entrar num cinema multiplex sem escolher o filme. O bilhete dá acesso a três andares com três salas de exibição cada e, na infame busca de uma boa história (ser julgado é um momento de grande solidão e sofrimento), há manhãs em que salto para o caso ao lado, subo e desço de piso, e nestas correrias apanho o princípio de uma vida, o descalabro em curso de outra, até encerrar ao almoço com um terceiro crime, num final incompreensível de cinema de vanguarda. Está tudo a escrever-se e a filmar-se ao mesmo tempo, múltiplas realidades em montagem aleatória, e só me calha estar lá no instante e mais tarde contar-vos o melhor que sei, só isso. Por vezes, claro, falo com as pessoas, faço o requerimento de documentos oficiais, acusações, sentenças lavradas. Mas com frequência sofro neste pensamento: é aqui ao lado que está a acontecer o que interessa, estou na sala errada, no minuto errado.

Antes de mais, feliz Natal a todos. Antes ainda, feliz Natal às vítimas e culpados dos casos que hoje contarei, vividos no piso três do Campus de Justiça de Lisboa. Na sala 1 estava um juiz que experimentava um dos dilemas da época: o que fazer a um homem que foi a um supermercado, se aproximou dos congelados e roubou um bacalhau? Também furtou três embalagens de pasta de camarão e outras vitualhas, mas atenção, tudo era comestível, modesto, tudo tinha a inconfundível marca da sobrevivência portuguesa. Para não morrer de fome natalina, se quisermos. E o juiz, na ausência do réu (não percebi porque não estava, talvez a greve dos guardas prisionais, um outro caso não se julgou por isso) começou a ruminar problemas ético-jurídicos. Ele sabia que bastava um título de jornal.

Dez meses de prisão por roubar um bacalhau para desencadear a simpatia (no sentido de explosão de trotil, as granadas explodem por simpatia) negativa das redes sociais e dos tablóides, das comparações com os grandes ladrões da banca e da política que desviam fortunas (depois do primeiro milhão ninguém rouba…) e ainda aí andam. Então o magistrado pegou na folha do registo criminal do acusado e foi às origens provadas do bacalhau:

“Crimes de furto qualificado em 92, crimes de furto qualificados em 93, cúmulo jurídico em 96 de quatro anos e seis meses, furto qualificado novamente em 95, conduções sem carta em 95, depois um cúmulo jurídico novamente de sete anos de prisão por crimes anteriores, e novamente, com decisão em 96, de 18 meses de prisão… novo cúmulo jurídico por situação em 98 de 18 meses de prisão, depois em 99 cúmulo jurídico de 10 anos de prisão de que beneficiou novamente de perdão de 18 meses…”

Vou poupar-nos ao resto, era um bicho com muitas aparas, línguas e caras, um grande bacalhau como se diz, que culminava nesta ida às arcas do supermercado, com mochila, roubar durante novo período de prova, de prisão suspensa.

– Realmente, é só um bacalhau, mas é…

O homem vivia de furtos entre Lisboa, Cascais, Porto, Alvaiázere, “numa mobilidade assustadora”, havendo condenações também desde 2007, praticando “múltiplos tipos de crime já depois de condenado, não mostrando arrependimento”.

– Depois destas datas, perdoem-me a expressão, voltou à carga.

Mais dez meses de prisão.

Saí para o átrio, onde um homem tatuado era socorrido à porta da sala 2. Tremia pálido nas mangas cavas, nos músculos de suor gelado:

– Faltaram-me as forças nas pernas…

A procuradora da República disse-me que o que aí vinha a seguir não tinha interesse nenhum e que devia era ter chegado antes (coisa que me era evidente), mas explicou o fanico lá fora:

– Ficou nervoso quando pedi prisão efectiva para mais uma ameaça agravada.

Na sala 2, um polícia explicou como é que tinha apanhado um homem que atropelara uma mulher no túnel do Marquês:

– Recebo uma comunicação via rádio sobre um veículo envolvido num atropelamento e, caricatamente, vejo-o parado à minha frente num semáforo. Olho para a cara do indivíduo e percebo: é mesmo este!

Hoje era só isto. Em cúmulo jurídico: Feliz Ano Novo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)