O joelho eléctrico
Dentes esculpidos de uma árvore a castanholarem na boca de um chefe de Estado? No futuro, quando uma pessoa for metade vísceras e ossos e o resto for enxertado em titânio e plástico, quandos os seres humanos forem mistura de natureza, electrónica e genética, quando vivermos até aos mil anos com peças vivas sobresselentes, quando o nosso cérebro for só inteligência artificial, a história do joelho eléctrico do músico vai soar deliciosamente antiquada.
Mas ainda não: um músico português anda por aí com um joelho que não lhe pertence, uma prótese eléctrica de enorme qualidade (para os padrões actuais), um homem biónico que foge da Justiça na sua perna apetrechada com o “Ferrari das próteses.” Entrei na sala quando um técnico explicava o valioso objecto no tribunal.
– É toda a perna para baixo, mais um pé com tíbia. Um pé comprido. O preço é de 17 mil euros. Nesta especialidade é diferente, é eléctrico. Tem que levar afinações, enquanto o outro é só pneumático.
A juíza e a procuradora tentavam visualizar uma prótese de joelho segundo o actual estado da ciência. Houve a perna de pau do pirata John Silver da Ilha do Tesouro, houve o capitão Ahab, que perseguia a baleia branca Moby Dick que lhe comera a perna (agora osso de baleia, atormentando os marinheiros com o sinistro coxear no convés). Mais tarde, o joelho pneumático, com estabilizadores de ar, e a seguir o joelho hidráulico que, pela origem grega da palavra, deve amortecer com um líquido.
– Então a prótese hidráulica…, começou a juíza.
– O joelho, corrigiu o técnico.
– O joelho, onde está?
– Está na firma. Mas como ele não apareceu… Ele tinha colocado a prótese hidráulica há um ano.
O músico foi lá arranjá-la, não andava bem.
– Então também há avarias na prótese hidráulica?
– É como tudo na vida. Os aviões também caem.
Já conheciam bem o cliente, um músico que ganhou as simpatias dos donos da empresa de próteses.
[A cada um a sua história brutal, e a do músico ataca-nos os olhos: um menino de seis anos decepado por um comboio.]
Até que, algures no frio da Islândia, no século XXI, a empresa Össur desenvolveu aquele que é considerado “o Ferrari”, “o Fórmula 1” dos joelhos prostécticos. Desce escadas e colinas como perna normal, sabe ler os pesos do corpo em movimento. Lembrem-se de Oscar Pistorius, o sul-africano nos Jogos Olímpicos a correr os 400 metros nas suas lâminas de carbono, antes de ser condenado pelo assassínio da namorada. A juíza mandou entrar outro responsável da empresa:
– Ele tinha feito lá duas próteses. Foi tirar o molde, fazer uns ajustes, não sei.
– Ele a si perguntou-lhe alguma coisa do joelho eléctrico?
– Sim, sim, expliquei-lhe que tinha dois dias para o experimentar… E foi aí que ele pediu mais uns dias porque tinha uma festa familiar… e nunca mais apareceu.
A advogada perguntou:
– Programa o joelho e ele fica para o resto da vida?
– Não, precisa de revisão. O programa pode durar 24 horas, pode durar 24 anos.
[A juiza decretou mandado de detenção para o músico. Na sessão seguinte, voltou a faltar, enviou atestado médico.]
Falei com os representantes da prótese mágica. Tanto prejuízo mas – e isso é belo – não podiam deixar de rir com a burla:
– É que ele ganhou a nossa confiança!
– Nós não temos interesse que ele vá para a prisão.
– Mas ele tem lá à espera o XR-80, que é dele!
E de repente parecia que falávamos dos robôs da “Guerra das Estrelas”, de um universo paralelo, do R2-D2 (robô que parece um gelado e fala por assobios) do C3-PO (homenzinho dourado), ou do Sphero BB-8 (que roda numa esfera), máquinas valentes, fiéis como cães, não sabemos se no futuro se no passado.
A propósito, é um mito: George Washington usou dentes de marfim, metal, até dentes de outros humanos, mas de madeira não.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)