Fortunato Frederico não doura a pílula. “As sapatilhas e os desportivos das grandes marcas, como a Nike e a Adidas, foram os nossos grandes inimigos. Roubaram-nos muita clientela ao sapato tradicional.” O “assalto” começou em força há três, quatro anos. A experiência de um dos maiores industriais de calçado em Portugal ditou que se seguisse um caminho conhecido – a adaptação.
“E tem corrido bem.” Fundada em 1984, a Kyaia lidera um grupo empresarial com mais de 600 colaboradores, onde se inserem três marcas de calçado. A Fly London, As Portuguesas e a Softinos. É esta última que mais tem corrido para conquistar um lugar no mundo dos chamados “sneakers” (sapatilhas), que toda a gente parece querer ter. “É a marca que temos mais virada para esse segmento, para o conforto, com um design mais jovem”, aponta Fortunato Frederico, antes de apresentar João Monteiro, o responsável pela Softinos.
O homem que sabe bem o potencial que tem nas mãos ou… nos pés dos outros. “O que acontece hoje em dia é que, ao contrário do que se via noutros tempos, é perfeitamente aceitável usar ‘sneakers’ em qualquer ocasião. Até nos casamentos. E obviamente que tínhamos de reagir.” O mercado cede muito às tendências das grandes marcas. “Tivemos de fazer o nosso trabalho, não fugindo à filosofia, nem perdendo o nosso ADN. Mantendo as nossas linhas mais icónicas.” A Softinos já era um conceito que se prestava ao que o mercado mais procura. Uma previsão que a Kyaia não errou. Conta João que “naturalmente”, já tinham previsto “essa direção”.
“Ainda agora na coleção que estamos a desenvolver temos duas linhas novas que servem perfeitamente para construção desse calçado mais desportivo, que dá para tudo. Depois, temos uma linha mais grossa, um pouquinho mais agressiva.” Mas ambas têm de ter peles macias, forros macios, plantares muito acolchoados, com o arco para os pés. “Portanto, conseguimos responder com linhas diferentes a essa procura que ainda continua a crescer.” Sustenta o pensamento nas montras das grandes marcas europeias, aquelas que mais ditam tendências: Balenciaga, Dior, Chanel, Gucci, entre outras.
“Há cada vez mais ‘sneakers’. E para todos os preços. Se as marcas de luxo continuam a fazer montras assim. Se as marcas continuam a investir aí de uma forma muito acentuada, então é uma tendência que veio para ficar. Vamos ver até que ponto, mas eu diria que ainda estamos na curva ascendente dessa moda.”
A procura de sapatilhas está muito associada ao conforto. E é algo que as marcas portuguesas já fabricam para todas as idades. Percebe-se, desde há duas gerações, que os mais pequenos aprendem a andar com sapatilhas. Por isso, quando crescem, há alguma resistência em passar a usar outro calçado que não seja tão prático e tão confortável. “As próprias profissões que exigem um ‘dress code’ mais formal, hoje em dia, convivem bem com ‘sneakers’”, acrescenta João. No entanto, é preciso estar preparado para o futuro.
No caso da Kyaia, o mercado interno conta no máximo 4% das vendas. A grande fatia, 96%, pertence à exportação. “América do Norte, Alemanha, que é o nosso mercado principal, estão alinhados com esse tipo de produtos que vendemos.” Uma sorte que é preciso vigiar. Porque, como refere Fortunato Frederico, “isto está sempre a mudar”.
Paulo Gonçalves, diretor de comunicação da APICCAPS (Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos), está habituado a que o setor enfrente essa realidade.
Mas garante que os sapateiros portugueses o fazem “sem drama”. “O mercado nacional tem essa capacidade de dar resposta, de ir ao encontro da procura.” Desta última vez, quando a tendência mudou, a adaptação foi grande e profunda. “As empresas que estavam concentradas nos clássicos tiveram de se reajustar às tendências.” Uma grande qualidade da “indústria mais sexy da Europa”, um slogan nacional que segue em alta lá fora. Prova disso é a última campanha em que a APICCAPS quis marcar pontos. “Elevamos o calçado à categoria de arte, salientamos o conforto.” Como? Pegando em bailarinos e pondo-os a posar com sapatos leves como penas. Práticos. “Estamos na vanguarda”, garante Paulo Gonçalves. E apresenta números. “O nosso setor exporta 82 milhões de pares de sapatos. Que corresponde a dois mil milhões de euros. Destinam-se a 152 países dos cinco continentes.
E um terço já é nessa linha do calçado confortável e mais jovem, que acaba por ser usado por toda a gente”, diz, reconhecendo que há outros movimentos que não deixam cair por terra os outros estilos. O que, no entender do diretor de comunicação da APICCAPS, não representa qualquer problema. “Há empresas que querem preservar o modelo tradicional, os sapatos clássicos, de salto alto.
O que temos de fazer é manter a produção que vai ao encontro do que o mercado pede e, ao mesmo tempo, assegurar que podemos rapidamente mudar o foco, sempre que for necessário. É o que tem acontecido. Sem drama.”
Mike Azevedo confirma. O diretor comercial da Camport, uma das mais antigas fábricas do país no setor – nascida Campeão Português, em 1955 –, assume que a empresa já conheceu muitas fases. A que se encontra a viver é uma das melhores. As vendas online aumentaram 100%.
Ao mercado nacional, onde vende cerca de 200 mil pares ao ano, e onde estão os clientes mais fiéis, juntam-se os da Europa, dos Estados Unidos e até os da Austrália. O segredo está no famoso ADN, que anda à volta de algo tão precioso como o conforto. “Hoje, as pessoas não estão para ter os pés massacrados. Mais até as senhoras. Procuram sapatos confortáveis e que lhes deem elegância. Mas é o conforto que está acima de tudo.” É daí que vem a conjugação dos vestidos com as sapatilhas.
“Cada vez mais temos de nos preparar para um futuro em que as pessoas querem o próprio conforto e é isso que temos de aprender do meio. Procurando tecnologias que nos levem a oferecer o que eles necessitam. Mesmo que sejam sobre tacões.” E os clientes querem calçado outdoor. Sóbrio, que dê para qualquer ocasião. Elegante. Leve, à prova de água. Resistente.
“Felizmente já tínhamos tudo isso, só tivemos de nos atualizar às tendências atuais, mais na onda das sapatilhas.” Tudo começou com o teste de novos materiais. “Começámos a ver pelas vendas que as pessoas gostavam de calçado flexível, sem cordões, simples, que não desse trabalho, que fosse o mais cómodo possível.” E aí deu-se a mudança. “Cada marca tem a sua identidade e a nossa não era vocacionada para as sapatilhas e tivemos efetivamente que nos adaptar a essa tendência. Que está em alta e vai continuar.”
Para Mike, o setor vive os “os anos 1990, mas reinventados”. E acha que dele é possível retirar grandes lições. E até fazer projeções. “Vamos andar algum tempo nesta onda das sapatilhas, mas, no que toca à obrigatoriedade do conforto, não iremos regredir. Até podemos voltar aos clássicos, mas terão sempre de oferecer a comodidade dos ‘sneakers’.” Que é como quem diz, das nuvens. lm