“Non è possibile”
A leitura da sentença começou e acabou com tradução. Escutava-se o enviado da embaixada italiana a passar da língua portuguesa, com os seus és fechados em ês, os clarões de ãos, ões e ães, os sibilantes chhhhs finais dos plurais, para aquela língua cristalina, aberta, vocálica do italiano comum dos diplomatas. Assistia-se a um belo diálogo no mesmo cérebro, usando palavras iguais (mas diferentes na forma).
Não foi pela ideia de “traduttore/traditore”, isto é, que o tradutor é um traidor, a que sempre se volta na poesia em transporte para outra língua, mas não consegui evitar o desconforto: como esta música de vogais italianas tem sido, nos últimos tempos, conspurcada pelas guturais fanáticas vomitadas pela extrema-direita de Salvini, o político “imitatore” de Mussolini, pelas forças negras do mal a ressurgirem no solo onde nasceram Da Vinci, Michelangelo Buonarroti, Giuseppe Verdi, Primo Levi, Visconti, Fellini e Dante (a que tiro Alighieri para não acabarmos só com “is”), lista curta de italianos defensores da liberdade.
O tradutor falava mas os olhos azuis, os caracóis de querubim de Federico já tremiam de alegria, pois ele entendera. A juíza absolvera-o do crime de violência doméstica. Era tal a emoção que mordia o lábio como um jogador de “calccio” que marca o golo da sua vida, uma linha de água na pálpebra, e agora temos de contar a história. Uma aventura transatlântica e uma placa giratória de amores falhados. Brasil, Itália, Lisboa.
Federico e Joana conheceram-se pela Internet, ele em Itália, ela no Brasil. Uma das estranhezas da relação foi a influência da mãe de Joana e da informática. O tribunal salientou a estranheza de ouvir, da boca da senhora, que no Brasil acompanhara em directo, pela Internet, os insultos e acusações escritos que filha e Federico trocavam em Lisboa. A juíza desenrolava um estendal de fracassos: relação amorosa entre 2014 e 2016. Ela já tinha um bebé, nascido em 2013.
“Uma vez, em casa dela, ele acusou-a de o trair, de lhe dar pouca atenção e dizia que a roupa dela era vulgar. Depois de inúmeras discussões, dirigiu-se a Joana e disse-lhe:
– És uma puta, não vales nada.
A ofendida nessas ocasiões também se dirigiu ao arguido e disse-lhe, pelo menos:
– Idiota.
Algumas das discussões ocorriam no interior da residência da mesma e eram presenciadas pelo filho dela.” Dirigiu-se à mãe dela e disse-lhe que não confiava em Joana, que ela o traía. Num dia de Maio, “na estação de metro de S. Sebastião, discutiram, o que sucedeu por ela ter querido ir à festa de anos de uma amiga e o arguido não querer que ela fosse”.
Depois de sair de casa, continuou a persegui-la, ela bloqueou as chamadas e mensagens, ele começou a ligar para a residência.”Já sei tudo o que você escondeu para mim e para a sua família, preciso de falar contigo, se eu não consigo falar contigo, vou falar com a sua mãe.”
Num e-mail já de 2017 (assim se passam meses entre os doentes do amor): “Suas atitudes são mesmo incríveis, devia ser grata por eu não falar tudo para sua mãe. Você terá o que você merece, sua viciada. O que é uma drogada que nem admite ser viciada em cocaína, sua vagabunda, você não tem vergonha, olha se algum dia você me tirar do sério vou para o SEF e vou para a polícia e vou levar as suas análises para a sua mãe. Assim você paga. É na hora que paga. Eu quero o meu dinheiro de volta, emprestei 600 euros e você devolveu 540, vagabunda, drogada de merda, sem dignidade nenhuma, coitado do seu filho. Quero o meu dinheiro hoje, se você arranjar desculpas, vou-te denunciar, viciada sem vergonha”.
Federico, no entanto, salvou-se da condenação de violência doméstica. A juíza concluiu que a mãe da arguida “veio aqui confirmar mais a versão do arguido do que a versão da própria filha”. “Também acabou por dizer esta mãe que a filha perde a razão porque começa a gritar, e chegou mesmo a vê-la, quando não queria que ele lhe tocasse, a empurrá-lo, sendo que o empurrão era forte e ele, como é branquinho, ficava roxo, acabando então o arguido por a segurar, entre aspas, ‘na marra’.”
– Non è conforme a quello che suonava, disse o tradutor.
Non è possibile da condanare.
Então o jovem de caracóis dourados “ha pianto”, chorou com uma espécie de felicidade roxa.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)