Espartilho: símbolo de luta, objeto de desejo

Texto por Sara Dias Oliveira

Bettie Page, a rainha das pin-ups, posa para
a Playboy

A cintura chegou a ter 40 centímetros e os seios andavam tão subidos como um desafio descarado à lei da gravidade. Durante 400 anos, o corpo feminino viveu apertado num espartilho feito de barbas e ossos de baleia, madeira, aço. A mulher queria-se fina na cinta, seios a saltar do peito, costas direitas, postura hirta. Asfixiado numa armadura, o corpo molda-se ao gosto da época. O século XX desponta e nada fica como dantes. Mais liberdade, menos tecido.

Pin-ups de olhares provocantes, roupas sensuais, ligas à mostra. Hippies a clamar liberdade. O primeiro sutiã. Feministas contra a exploração do corpo. Modelos com roupa interior à vista. Desfiles em cuecas. A lingerie acompanha a evolução dos tempos. Por dentro e por fora. Símbolo de uma luta, objeto de desejo, a segunda pele da mulher é hoje uma mistura de conforto e sensualidade. A prova de um caminho feito de espinhos e rosas.
O espartilho apertou a mulher demasiado tempo. O berço exato nunca foi esclarecido, terá nascido em Inglaterra, em Itália ou em Espanha no século XVI para adelgaçar a cintura, elevar o colo, prolongar a linha airosa da juventude, a elegância da mocidade.

As feministas da época, poucas, muito poucas, chamavam-lhe instrumento de tortura, a prisão do corpo. Os médicos avisavam para malformações nos ossos, costelas partidas, perfurações de órgãos, males dos duros materiais que controlavam as formas naturais. Atravessou séculos, bailes de reis e rainhas, príncipes e princesas, até que começou a cair em desuso nas primeiras décadas do século XX, com a guerra à porta. O espartilho que condensava um paradoxo – corpo comprimido, símbolo de feminilidade – tinha os dias contados. Ou talvez não.

Mary Phelps Jacob, figura do jet set de Nova Iorque, farta do espartilho, idealizou o primeiro sutiã.
Dois lenços de bolso de seda e um pedaço de fita cor-de-rosa. Costurava-se, assim, o primeiro sutiã: macio, confortável e adaptado ao peito.

No século XX, acontece tudo muito depressa. Eis o sutiã, senhoras e senhores. Em 1914, reza a história, Mary Phelps Jacob, do jet set de Nova Iorque, farta do espartilho, pediu à criada dois lenços de bolso de seda e um pedaço de fita cor-de-rosa. Costurava-se o primeiro sutiã, macio, confortável, adaptado ao peito. A invenção da socialite faz furor. Amigas e familiares fazem as primeiras encomendas. Mary acabaria por vender a patente à Warner Brothers Company. Nos anos 1920, as combinações acompanham o corpo sem marcar cintura e peito. E o espartilho definha com um conselho, camuflado de ordem, dos Estados Unidos. Atenção, o aço é para o armamento, não para as armaduras femininas.

Marilyn Monroe, atriz, cantora e símbolo sexual.

Os anos 1930 e 1940 trazem novos tecidos, fibras sintéticas, há mais vida além do algodão e da seda. Começa a produção em massa, o modo de vida da mulher influencia o que veste junto à pele. Praia, desportos, mais tempo ao ar livre. Mais movimentos, mais liberdade.
O século avança e as mulheres querem mostrar as curvas ao Mundo. Atrizes de Hollywood, fogosas e sensuais, as pin-ups com roupas que mostram mais do que o costume, o Moulin Rouge ao rubro, os cabarés em intensa atividade. A atriz-cantora Marilyn Monroe torna-se símbolo sexual, Bettie Page, a rainha das pin-ups, posa para a Playboy, e Christian Dior abre o baú para colocar na moda cinturas vincadas e peitos generosos.

Pelo meio, em 1947, um homem de negócios, Frederick Mellinger, de Nova Iorque, cria o primeiro sutiã almofadado e, um ano depois, costura o primeiro push-up, depois de um inquérito aos colegas do exército sobre a lingerie que queriam que as namoradas usassem. Seios empinados, pois claro. Frederick, o visionário, tinha sido despedido por ter sugerido à empresa de roupa íntima feminina, onde trabalhava, vender lingerie preta. Vendeu-a ele mesmo numa loja que abriu em Manhattan. Passo a passo, a roupa interior feminina ganha importância como símbolo da afirmação da mulher e da sua sexualidade.

Frederick Mellinger, homem de negócios
de Nova Iorque, criou,
em 1947, o primeiro
sutiã almofadado e,
um ano depois, costurou o primeiro push-up.

“A capacitação e a afirmação do corpo das mulheres não dependem só delas, mas de toda a sociedade”, afirma Cristina Duarte, socióloga, investigadora, professora convidada da ESAD – Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos, que publicou a tese de doutoramento com o título “Moda e feminismos em Portugal, o género como espartilho”. “O espartilho serve-me, na tese, como metáfora para trabalhar as questões de dominação, submissão, desigualdade. Como peça estruturante e estruturada (para o corpo), ele aparece ciclicamente nas coleções de criadores de moda, com outros materiais. Depende de nós, aceitá-lo ou não.”

A história da roupa interior reflete, conforme a década em análise, a “libertação e emancipação das mulheres”. Cristina Duarte recua ao filme “A duquesa”. Ralph Fiennes pergunta à duquesa por que razão as mulheres têm tanta roupa interior. E ela responde-lhe: porque é a nossa forma de comunicar. “O diálogo é feito a pensar no século XVIII. Hoje está tudo mais simplificado, não é? Mas tudo depende das mulheres que, como se sabe, não são todas iguais.”

O design evoluiu, a tecnologia também. Silvana Mota-Ribeiro, socióloga e comunicóloga, professora do departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, estudiosa na área dos discursos de género, olha para o percurso feito e vê mulheres mais velhas que compram lingerie sexy sem causar espanto social, lingerie por todo o lado no Dia dos Namorados, um objeto de consumo cada vez mais interessante. Mais do que um bem necessário, um bem que projeta a autoestima, a aparência, a atratividade sexual.

“As próprias revistas femininas encorajam as mulheres a saírem da zona de conforto, a seduzirem o parceiro, o empoderamento em termos da sua sexualidade”, observa. “A lingerie é algo que apela à sedução e ao desejo. A ideia da mulher emancipada, dona do seu desejo, que encontra na lingerie o poder de desejar e de ser desejada”, acrescenta. Silvana Mota-Ribeiro olha para o mercado e vê dois tipos de roupa interior. Uma mais confortável, em que a mulher pode fazer do corpo o que quiser. “Uma lingerie mais roupa interior, menos dependente das dietas, dos implantes mamários, das cirurgias estéticas.” E uma lingerie confortável e sexy que apela à sedução e ao desejo.

Madonna e o corpete de seios cónicos

Sete de setembro, 1968, Atlantic City, Miss America, 400 ativistas do Movimento de Libertação da Mulher protestam contra a exploração comercial do corpo feminino. Cá fora, as mulheres livram-se dos objetos que as oprimem: batons, esfregões da louça, saltos altos. Lá dentro, elege-se a mulher mais bonita da América. Cá fora, uma jovem tira o sutiã e manda-o pelo ar. O gesto corre Mundo e a manifestação crava-se na História. Não houve queima de sutiãs, mas o mito perdura.

O que também perdura é o corpete com sutiã em forma de cone de Madonna, desenhado por Jean Paul Gaultier, na tourné Blonde Ambition. A estreia acontece a 13 de abril de 1990 no Japão. Nada fica como dantes. Madonna, em seios fálicos, mostra que as mulheres também mandam. Seios empinados num espartilho maleável que permite todos os movimentos sensuais da “loura ambiciosa”. Já antes, Madonna coloca fora o que era de dentro. Rendas num vestido de noiva em Like a Virgin. Um corpete preto sem alças e sem costas em Papa Don’t Preach. Uma combinação justa, alças de sutiã ao léu, em Like a Prayer. Tudo nos anos 1980.

Em 1990, o corpete com sutiã em forma
de cone, desenhado
por Jean Paul Gaultier para Madonna, fez furor.

A modernidade chegou. Lingerie com aros, sem alças, cai-cai, almofadas, todas as cores, lisas, com padrões, brilhantes, sem brilhantes, lacinhos, fio dental. E, volta e meia, o espartilho vem à tona como acessório de fetiche ou inspiração de estilistas. Sem a rigidez ou as barbas de baleia do passado.

A estilista Ana Salazar já transformou combinações em vestidos. “É uma peça bonita e extremamente sensual.” Gosta de rendas, tecidos super finos, cueca sem costuras, nada de almofadas. Lingerie confortável, sensual. Foi um longo caminho dos espartilhos até hoje. “Agora a lingerie, como outro tipo de vestuário, também se vende em grandes cadeias comerciais”, repara. É todo um novo negócio. Roupa interior mais clássica, linhas mais jovens, peças inspiradas noutros tempos. “Há outros materiais que, no fundo, conseguem os efeitos pretendidos e que vieram substituir a panóplia que era usada no passado.” A publicidade não passa à margem, mostra roupa interior como outro vestuário qualquer, e a oferta multiplica-se. Formas e feitios acompanham o corpo da mulher que, para Ana Salazar, não precisa do sutiã para se afirmar. “A mulher para ser mulher não necessita de andar de sutiã. Quem quiser anda, quem não quiser não anda.”

A narrativa mudou. As revistas femininas mudaram a estratégia também pelo lado da lingerie. A mulher já não é olhada como um objeto sexual, a roupa interior assume novos significados. Carla Cerqueira, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, doutorada em Ciências da Comunicação, professora da Universidade Lusófona do Porto, fala em mudanças em que as reivindicações dos movimentos feministas tiveram uma palavra a dizer. “As marcas tentam mostrar a lingerie como o empoderamento da mulher. E o único ideal de beleza, normativo, de mulher muito magra, tem sido transformado.” Há uma nova abordagem.

“As modelos eram muito magras e, entretanto, aparecem algumas campanhas de lingerie com corpos diferentes.” A Victoria’s Secret, indica, é um exemplo recente, tem anjos e tem modelos plus size, corpos fora do formato instituído, mulheres com estrias, mulheres de várias cores – e várias críticas à mistura. “Há uma mudança em termos de discurso.” A mensagem que passa é que todos os corpos são bonitos e que a lingerie existe para a mulher se sentir bem. “Antes a lingerie era muito para dar a ver ao outro, agradar a alguém. Neste momento, é para a mulher se sentir bem com o seu corpo, não só nessa tónica de agradar o outro, sem perder a sensualidade.”

Desfile em lingerie organizado pela Dama de Copas. A empresa portuguesa surgiu no mercado há uma década para “dar resposta a todas as mulheres”.

A lingerie é uma aliada da mulher. Acompanha-lhe as formas, atenua-lhe imperfeições. As rendas voltam a estar na moda, os aros perdem território. Inês Basek, fundadora da Dama de Copas, com cinco lojas especializadas em Bra Fitting e consultoria de lingerie em Portugal, quatro em Espanha, que vendem todos os tamanhos para todas as idades para “dar resposta a todas as mulheres”, confirma que a lingerie tornou-se confortável sem abrir mão da sensualidade. “Os novos tecidos são mais suaves, as costuras invisíveis, as esponjas são ultrafinas, as rendas estão em voga e são mais elásticas”. As mulheres “dão cada vez mais atenção ao que vestem por debaixo da roupa e que não se vê. A lingerie dá muita segurança e autoestima à mulher”, sublinha Inês Basek. Roupa interior, um pormenor com a máxima importância.