Prestes a fazer 80 anos e a encerrar 57 de canções, Carlos do Carmo refaz o percurso. A morte do pai e o crescimento precoce. O Faia e o peso de ser filho de Lucília do Carmo. Lisboa e o fado. O Bairro da Bica. Ary dos Santos e um álbum para a história. Cunhal e Soares. O envelhecimento e a morte. Deus e Maria Judite. Sinatra e o timbre inconfundível. Os cigarros e o uísque. A bipolaridade e o palco. Os amigos e a boémia – "das coisas mais belas que tive na vida".
O escritório guarda a biblioteca e o vasto espólio de 57 anos de prémios e reconhecimento. Carlos do Carmo está sentado a uma secretária imaculada. Levanta-se a custo. Na véspera, assinara mais de 200 CD. A lombar dá sinal. É muito raro ter dores. Como é raro a cadeira de trabalho, presente da mulher, Maria Judite, causar-lhe tanto desconforto. É recostado nela que, a altas horas da noite, olhos fechados, convoca a boémia e velhos amigos à sala contígua – a ampla sala de estar. Dali se diverte a provocar “o Ary” (Ary dos Santos) e “o Mário” (Mário Viegas), que zaragatam, saboreando o resultado final. Ali lhe chega o vozeirão “do Rogério” (Rogério Paulo), o sorriso “do Adriano” (Adriano Correia de Oliveira), a presença discreta “do Zeca” (Zeca Afonso). Na memória, os sofás de veludo, o ambiente intenso. Muito uísque e genialidade sob um manto de fumo.
A entrevista tem lugar nesse espaço, outrora palco de tantas tertúlias. Às três da tarde, está cheio de luz. Carlos do Carmo acompanha a conversa com água. Oferece café, um cálice de Favaios, tempo e rara disponibilidade. É um conversador. Ao longo de três horas, a luz vai cobrindo o Tejo, que se avista ao fundo. Contemplar essa luz faz parte dos momentos felizes dos seus dias. É também por isso que continua a viver naquele décimo andar. Já lá vão 50 anos.
Comecemos em 1962 e pelo acontecimento transformador que foi a morte súbita de seu pai. Tinha 21 anos e, de um dia para o outro, passa de menino, estudante de hotelaria num colégio suíço para milionários, a patrão de 23 pessoas. Como viveu essa confrontação com a idade adulta?
Demorei muito, muito tempo a aceitar a morte prematura, creio que terá sido um aneurisma, de meu pai. Era algo que não saía de dentro de mim, recusava-me a aceitar, usei luto durante meses e meses. Fiquei tão chocado que não consegui verter uma lágrima. Como disse, passei de um estudante privilegiado, o menino, assim tratado por todos, a patrão de todos, e todos foram colaboradores extraordinários. Devagarinho, muito devagar, fui mastigando a morte de meu pai. Comecei a olhar para a vida e a tomar contacto com as contas. Pois, se o meu pai me pôs a estudar num colégio de milionários e não tinha dinheiro para isso, algum dinheiro haveria de ter pedido. Havia uma grande dívida. Era preciso pagar muito dinheiro. Aconteceu-me então esta coisa original, que nunca contei em público: o proprietário da casa Costa Pina, à época um grande fornecedor de bebidas, apostou em mim, propôs-me levar as bebidas que eu quisesse e pagar só quando pudesse. Imagina o fôlego que isso me deu. Estar servido, continuar a fazer receitas e pagar gradualmente. Tenho essa gratidão.
E fez do Faia, onde a mãe, Lucília do Carmo, é cabeça de cartaz, a melhor casa de fados de Lisboa?
Não tenho essa veleidade. Mas na verdade tinha a matéria fresquinha. Talvez tenha ajudado. Após a morte do meu pai, que era o gestor da casa, reuni com todos os colaboradores para lhes pedir que não me chamassem patrão. O cliente é o patrão. Esse é que teria de ser sempre bem tratado. Foi um período muito interessante. Transformámos um pequeno restaurante num grande restaurante.
O pai acreditava no gestor hoteleiro. Mas não conheceu o artista. O que haveria ele de lhe dizer se assistisse ao seu percurso?
Foi bom para ele, sabe. Se havia coisa que detestava era que eu viesse a ser artista. Quando me ouvia cantar em cima da rádio, ficava muito comovido, mas calado. Ou então dizia, com graça: já aturo uma maluca, não preciso de dois.
Esse artista nasceu em 1964.
Num momento determinado. Era tarde, o Faia estava quase a fechar, os clientes iam saindo, exceto uma mesa, com ex-colegas do Liceu Passos Manuel. É um deles quem me desafia. “Canta aí um fado.” Atrapalhado, só cantava sinatrices, coisas francesas e italianas, cantei o único fado que sabia, um fado da minha mãe. E no fim, diz-me esse tal rapaz, hoje um juiz jubilado, “sabes, não imitas a tua mãe”. Esse comentário foi muito importante. Se havia coisa que pudesse ser obstáculo a uma carreira de artista era ser filho de uma das maiores fadistas de toda a história do fado. Temia que a carga despersonalizasse. Mas ouvido aquilo, achei que devia tentar. Aprendi esse fado bem, gravei-o com um quarteto de bateria, contrabaixo, piano, guitarra elétrica e um coro – veja bem o sacrilégio que era – e foi, não me pergunte a razão, um estoiro de manhã, à tarde e à noite. Nunca mais parei.
Só porque percebeu que tinha essa voz?
A questão vem mais de longe. Gostei sempre muito de ouvir cantar. Tenho paixão por ouvir cantar. Bem. (Quando oiço cantar mal pergunto-me porque não estou ali a ouvir só a música. Música é tão bom.) Muito cedo, aos 12 anos, tive o primeiro disco do Sinatra, que servia de complemento às aulas de Inglês. Aos 15, 18 anos, cantava umas 20 canções do Sinatra. E também do Tony Bennett. Trata-se de pessoas que fazem da palavra música e da música palavra. Já na época tinha a noção de que era proeza para poucos. Por isso, entrei neste terreno com pinças, muita subtileza e muita entrega.
O que dizia a mãe?
A minha mãe pertenceu a uma geração que não passava os “segredos”. De maneira que era austera. Porém, sem deixar de me dizer “acho que cantas bem, continua”. Nessa altura, o fado tinha hierarquias e os mais velhos uma palavra a dizer. Lembro-me de Joaquim Campos e de Alfredo Marceneiro dizerem à minha mãe “olha que o teu rapaz canta muito bem”. Como quem diz não o percas de vista. Mas ouvi muitas vezes aos clientes “tu cantas bem, miúdo, mas a tua mãe……”. Não foi fácil. Não foi nada fácil.
Havia hierarquia. Já não há?
Não lhe sei dizer. Voluntariamente, hibernei um bocado. Frequento pouco o fado. Vinte anos, todos os dias, numa casa de fados é uma dose grande. Saio pouco.
Senhora Dona Lucília do Carmo, chamavam à mãe. Senhora Dona era o tratamento dado às fadistas maiores pelos que iam chegando. Hoje, como se lhe dirigem os mais novos?
Chamam-me Carlos. Uns e umas, mestre. Outros, sabem tudo.
Coração, garganta, cabeça. Considera ser “o triângulo” essencial para cantar. Começa em que vértice?
É tudo descontrolado. E há outra coisa, em cima disso, fundamental também: o silêncio de quem ouve. Sem isso não há concentração.
Como define a sua voz?
Não me faça essa pergunta. Digo-lhe porquê. Gravo um disco com o maior empenho, um disco de estúdio, trabalho muito cansativo. Passada uma semana é-me insuportável ouvi-lo.
Porquê?
Os artistas são todos narcísicos e eu também sou. Mas o meu narcisismo talvez não vá tão longe. “Ah, que bem que canto” não é coisa que me passe pela cabeça. Quem me diz muito isso – e me disse toda a vida – é a minha mulher. Quando não sai bem, também anota: hoje não foi. Tem noção como ninguém.
Outro tempo definidor, a década de 1970. O Festival da Canção, o encontro com Ary dos Santos, o álbum “Um Homem na Cidade”.
Até aos 34 cantei sob a censura, que é das coisas mais aberrantes que há e, por isso, não imagina a sensação maravilhosa que foi dizer “agora vou cantar o fado em liberdade”. Surge-me aí o Zé Carlos, que conheço no Festival da Canção. Um homem truculento, superiormente inteligente, muito trabalhador, extremamente generoso, com uma força física que não dava para brincar, e com aquele desvario todo. Não era nada fácil ser homossexual assumido num tempo em que as pessoas eram muito agressivas, gente a quem ele respondia na mesma moeda. Bom, o encontro com o Ary foi uma coisa extraordinária. Tivemos desde o primeiro minuto uma relação muito boa. Fez uma grande amizade com a minha mulher [Maria Judite] e tornou-se o sindicalista dos meus filhos, obrigando-me a aumentar-lhes a mesada. “Não me estragues os miúdos”, dizia-lhe. “Não sejas fona”, respondia ele, o meu Zé Carlos. Ajudei a carregar-lhe a urna, uma das raras vezes em que chorei.
Como surgiu a ideia de “Um Homem da Cidade”?
Um dia, desafia-me: “Ó Carlos, devíamos fazer um disco sobre Lisboa”. Achei a ideia muito gira, mas lembrei-lhe que estávamos mal servidos de compositores. Os bons ou estavam muito velhinhos ou mortos. Foi aí que nos lembrámos do José Luís Tinoco, do [Fernando] Tordo, do Paulo de Carvalho, do António Vitorino d’Almeida. Hoje, todos os miúdos andam atrás deles.
Que lugar tem esse álbum na história do fado e da discografia nacional?
Não sei. Mas sei que foi muito mal recebido. Uma vergonha, “isto não é fado nem é nada”, disseram os puristas. A verdade é que se tornou rapidamente um disco de eleição. O prazer de o gravar foi imenso. Na régie, o Thilo Krasmann ajudava a fazer o arredondamento musical. O Zé Carlos estava comigo em estúdio. De vez em quando levantava-se e dava palpites. Estávamos em 1976, anos de grande intensidade política e ele propunha uns versos à PREC. Mas eu não sou um cantor de intervenção e isto é fado. Não é justo fazer um disco datado, dizia eu. Ele batia com a caneta na mesa. “Hum, hum, o senhor está muito exigente e até um bocadinho reacionário”, respondia naquele tom de voz inconfundível. Amarfanhava o papel e deitava-o ao lixo. Tantos versos deitados ao lixo que hoje davam tanto jeito a tanta gente.
Que pensa da crítica?
Há críticos e críticos. Leio os que sabem, ouvem e escrevem não como cantores ou cantoras frustradas. Deixei de ler, porque os conheço a léguas, os que escrevem com uma maldadezinha latente.
“Tenho a coleção completa [de Frank Sinatra] em vinil. A única que guardo”
Os anos 1970 e 1980 foram anos de boémia. Álcool, drogas e fado?
Droga, nunca. Só de pensar, é-me insuportável. Álcool, sim. Nunca fui bêbado, mas bebia bem. Vinho tinto, ainda hoje gosto e bebo moderadamente, e uísque. Uísque novo, puro e muito tabaco. Até aos 50 anos, fui um fumador estúpido, perto de dois maços por dia. Houve um período em que cantava como se nadasse, respirava de lado. Até que um médico amigo me deu duas hipóteses: ou deixas de fumar ou morres.
Algo que o Sinatra nunca largou: copos e cigarro.
Por isso é que engordou e eu mantenho os meus 76 quilinhos. Hoje, quem diria, adoro beber água. Eu que não gostava nada de água agora bebo água de forma apaixonada.
Mas continua a ouvir Sinatra?
Sempre. Tenho a coleção completa em vinil. A única que guardo.
Atualmente, quem mais?
Não vou dizer que cheguei a determinado momento e parei. Seria injusto. Mas, sem ser velho do Restelo, devo dizer que ouvi coisas tão boas, tão boas, tão boas, que sou muito exigente em relação ao que aparece. Do estrangeiro, sou do tempo dos Beatles, que adorei. Depois, gosto muito do Sting, bom gosto e inteligência no canto. Da gente nova de lá de fora parece-me tudo muito igual. Cá dentro é diferente. Deixando de lado o fado para não ferir suscetibilidades, temos gente com péssima dicção – o ideal seria até que tivessem outra profissão – e algumas pessoas que cantam bem, com forma e conteúdo. Há um rapaz do Porto que me agrada. Miguel Araújo.
A música ouve-se à noite?
Ah sim, de manhã durmo. Durmo as manhãs há 50 anos. Acordo ao meio dia e meia, uma da tarde. Mas também adormeço às quatro, cinco da manhã. Arranjo sempre maneira de fazer qualquer coisa. Música, leitura.
Escrita?
Gosto imenso de escrever. Gosto de pensar e transmitir o que penso em palavras.
Poesia?
Jamais ousei. Mas nem a brincar. Por amor de Deus, uma pessoa que canta os poetas que eu canto meter-se nisso? Nem pensar. “Eles andem aí.”
Prosa publicável?
Nada. São desabafos do momento. Mas sobretudo oiço música.
Ainda vai a concertos?
Vou. O último foi no Tivoli, de homenagem à Simone. Gosto muito dela.
Nem sempre gostam muito uns dos outros. Como é esse mundo, o da música e em particular do fado?
Não creio que seja fácil, mas sinto-me um pouco outsider. Por outras palavras, o meio do fado é um meio tradicionalmente maledicente. As pessoas falam mal umas das outras. Pela frente é minha querida e meu querido, vira-se as costas e tau. Tem evoluído, mas ainda noto características de gueto. Quanto a mim, há dois os três de quem não gosto e digo-lhes abertamente. Acrescentando, “mas são só estes”.
O palco e o medo que continua a infundir-lhe. Como explica esse medo, depois de tantos anos?
Como dizia um jogador do F. C. Porto, prognósticos só no fim do jogo. Não faço ideia do que vai acontecer, não sou um robô. E, por isso, fico nervoso.
Diz que leva para palco, em pensamento, Brel, Sinatra, Elis Regina, a mãe. Que peso.
É a cabeça cheia de música. O fado tradicional merece-me um profundo respeito, de cada vez que apresentava um fado clássico a músicos de outras áreas eles ficavam deslumbrados. Ali há conteúdo. Vamos ver: em cada dez composições do Alfredo Marceneiro nove são muito, muito boas. Não é brincadeira. Fadista igual só conheço um – o Sinatra. Bem, o Marceneiro está um bocadinho acima.
Palco ou estúdio?
O trabalho de estúdio confesso que não. É muito cansativo e nunca me sai da cabeça, é algo que não se apaga. Quando uma semana depois me dizem que o disco está bonito eu penso que devia estar maluco. Sou muito exigente comigo próprio. Em contrapartida agrada-me muito estar em palco. Encanta-me agradecer e ver as pessoas felizes.
O que tem de ter sempre no camarim?
Tinha um hábito – gostei sempre de beber um uísque antes de cantar. Por isso punham uma garrafa de uísque no camarim. Bebia um, a minha mulher outro. Hoje nem lhe toco. Fora isso, muita água.
Continua a benzer-se antes de entrar em palco?
Sempre.
“Lisboa entrou de uma forma desenfreada no perigo que é a moda”
É fácil lidar com o artista?
Devem achar-me um grande chato. A falta de profissionalismo choca-me e não hesito em chamar a atenção. Mas tenho uma equipa de luxo, músicos que tocam tão bem e técnicos tão competentes que, em certos dias, me julgava a cantar deitado num colchão de plumas.
Já terá cantado em lugares e situações complicados.
No Alentejo, em cima de um trator e ao lado de um gerador muito barulhento. Em pequenas associações de emigrantes, muito modestas. Fui muito bem tratado e tratei sempre muito bem. Nunca os menosprezei, nunca tive repertório B, a indústria da saudade não é a minha especialidade. Devo dizer que a história do português que emigrou não era brincadeira e quando vejo o sucesso de alguns dos seus filhos, sinto-me vingado. Tenho uma história bela, uma das mais belas do meu percurso. Em 1980, no final do meu primeiro Olympia, veio ter comigo um homem, mãos de quem trabalhou duro, para me dar conta da vida que levou e levava em França, dureza tremenda, e me agradece tê-lo ajudado a fazer as pazes com aquilo tudo. Deixou-me de rastos.
Esteve várias vezes perto da morte, mas raramente se lamenta.
Vários momentos muito, muito difíceis. Mas não sou pessoa de me lamentar, tenho tido a sorte de escapar às dores e fiz dos médicos meus amigos. Sou cristão, de vez em quando falo com o meu Deus. Não lhe peço nada, que está muito ocupado, mas sempre lhe digo “decididamente, não queres mesmo que eu vá embora tão cedo”.
Que guarda desses momentos?
Sobre isso quem sabe falar é a minha mulher. Estou mais para lá do que para cá. Imagina o que ela já passou. Numa das vezes, já eu estava a receber a extrema-unção.
Como lida com a bipolaridade?
Com muita naturalidade. Tomo há muitos anos um medicamente que me equilibra. Nunca estou muito eufórico, mas também nunca estou muito em baixo. Nem quando, veja bem, oiço o Trump.
Acredita em milagres?
Não.
A Maria Judite foi um milagre ou mereceu-a?
Não mereci, nem mereço. Está muitos furos acima de mim. Casar com um artista não deve ser fácil. A Maria Judite foi o grande prémio da minha vida, que se estende aos filhos e aos netos.
Um homem de 24 anos, que diz ser cerebral, conhece uma miúda e seis meses depois casa. Estranho.
Porque esse homem cerebral é também maluco. Ela não queria, mas eu atirei-me de cabeça.
Porquê?
Olhava para os olhos dela e ficava completamente desvairado. Ainda hoje, nos seus 80 anos, é bonita. Imagine agora esta mulher aos 24 anos. De fazer parar o trânsito.
Como se conheceram?
Ela teve a fatalidade de querer ouvir o Carlos do Carmo no Faia. Foi com os primos, e avisada por eles. Que eu era pedante, vaidoso e nem sequer cantava todas as noites.
Nessa noite cantou só para ela.
Só para ela. Quando me pediu que cantasse, fiquei tão pequenino. Lembro-me que cantei quatro fados, ou seja, o repertório todo. No final, foi agradecer-me. Tirei do bolso um lenço – toda a vida usei lenços de linho: “Basta que ponha os seus olhos neste lenço e não tem nada que agradecer”. “Mas depois como é que eu vejo?” Aí, atirei-me de cabeça: “Através dos meus”.
Uma estreia, no seu caso?
Vamos ser objetivos. Eu era um tipo de gajas, mas desta vez a diferença está nisto: no dia seguinte a Maria Judite ligou e o empregado que atendeu chamou-me assim: “Sr. Carlos, é a menina”. Ou seja, eles toparam logo.
Fecha a carreira com dois Coliseus. Dia 2 de novembro no Porto, e dia 9 em Lisboa. A cidade aonde nasceu, tal como o avô, o pai, os filhos e os netos. Lisboa é ainda menina e moça?
É, mas vamos ver, há muita coisa que está mal. A cidade entrou de uma forma desenfreada no perigo que é a moda. Digo perigo porque não acredito que seja possível manter este fluxo turístico. Mas sou um homem de esperança. Porque Lisboa é muito bonita e tem resistido a tudo. E está hoje virada para o Tejo.
Ainda gosta de passear pelo Chiado?
Durante muitos anos, o Chiado fez parte do meu dia-a-dia. Para engraxar os sapatos, carregar o isqueiro, comprar um disco. Hoje tem outra perspetiva. Não estou a dizer que é pior. Estou a dizer que agora não me transmite aquele calor.
Porque gosta tanto de Lisboa?
Por causa da luz, única. São poucos os países onde não cantei e nunca encontrei igual luz. Depois, porque Lisboa tem uma alma e uma canção. Poucos grandes centros urbanos se gabam do mesmo.
O Bairro da Bica. Fale-me desse dia-a-dia de aldeia.
Vivi lá até me casar. O Bairro da Bica teve sob todos os aspetos uma enorme influência na minha personalidade. Ali aprendi, rapaz, embora me tratassem por menino porque no meio era privilegiado, o que era a solidariedade, a entreajuda, ali presenciei os efeitos perniciosos do álcool quando um homem, que podia ser um estivador, bebia de mais. Essa vivência fez de mim uma pessoa preocupada com os outros, com desfavorecidos. Em mim, essa é uma questão central. Acredito em certos valores e creio que assim serei até morrer. Continuo a gostar muito de pessoas e conheço algumas, não muitas.
Teve uma ligação romântica ao Partido Comunista.
Que bonita expressão. Cantei muitos anos para o Partido Comunista Português. Não estou minimamente arrependido de o ter feito, mas há uma coisa que é importante sublinhar – nunca recebi um euro.
Pagou até um preço, ou não?
Se paguei, em várias frentes. Por vezes insultos, por vezes ostracismo. Recordo-me da vez em que estive cinco anos sem cantar na televisão. Só havia um canal, a RTP. E, portanto, vivi esse tempo com o apoio de quem? De emigrantes, gente ligada às questões culturais que me convidava, ajudando a abrir portas.
Fala do tempo do cavaquismo?
Não quero pronunciar certos nomes. Esse período é uma espécie de branca na minha vida.
Privou com Cunhal e Soares.
Sobretudo com Cunhal, de quem fui amigo pessoal. Soares, sobretudo nos últimos anos de vida, foi de uma extrema simpatia comigo. Uma pessoa muito agradável, preocupada com a minha saúde. A certa altura portei-me com certa cobardia, evitei visitá-lo na fase mais difícil, já próximo do fim. A minha mãe morreu com Alzheimer e, talvez por isso, preferi não o ver diminuído, mas assumo a minha cobardia.
Cunhal morreu triste, derrotado?
Nunca o vi assim. Cunhal era de uma perseverança única. Acreditou até ao fim no seu ideal. Essa era a parte que me confundia. Um homem tão inteligente que não reconhece. Nunca falávamos de política. Um dia, porém, atrevi-me. Disse-lhe que o achava um obstinado, que tinha capacidade para atualizar o discurso e dar a volta. Disse-me: “O caminho é este, não há outro”. E eu meti a viola no saco.
Faz em dezembro 80 anos. Já pensou nas comemorações?
Este ano, eu e a Judite temos um plano. Como ela fez 80 anos em julho, gostava muito que fizéssemos uma festa conjunta, com a família e um leque alargado de amigos, num local onde ela pudesse fazer uma coisa que adora, e de que eu não gosto nada – dançar. Talvez aconteça.
Não sabe dançar?
Enganei muito a Maria Judite. Durante os seis meses de namoro dançava tudo o que fosse preciso. Foi rumba, foi valsa, foi tango, tudo, parecia um bailarino. Depois casámos e ela chamou-me mentiroso.
“Sim, terei de gravar um disco. É justo que eu grave o último disco”
Os anos trazem alguma vantagem?
Duas respostas. Primeira: um homem que já esteve a morrer várias vezes tem uma noção de finitude muito particular. Se alguma garantia tenho é a de que me sinto preparado para morrer. Segunda: os achaques da velhice são uma merda. Se a cabecinha funcionar já não é mau.
Deve-se zombar da posteridade?
Faz sentido. As atrizes e atores são os meus heróis. Tirando um ou dois, desaparecem rapidamente. Com os cantores é menos evidente, mas a glória é sempre muito efémera. Já é muito bom ter sido estes anos todos tão bem tratado. Há pessoas que vivem uma vida inteira com muita infelicidade e tenho muito respeito por isso.
Tem um museu em casa. Tanto reconhecimento não desaparece assim.
Estão aqui por enquanto. Tudo o que diz respeito a prémios, diplomas e reconhecimentos, uma coisa de facto gigantesca, irá para o Museu do Fado, depois de cada filhote e de cada neto escolher uma peça. Tenho um grande amor – e uso a palavra amor – ao Museu do Fado e amizade à diretora [Sara Pereira] que dedicou 20 anos da sua vida àquele projeto, partindo da estaca zero. E que foi mal recebida pelo bairro e pelos fadistas e hoje os fadistas têm a maior confiança nela. Isso está resolvido.
Tem sido uma vida boa.
Tem, mas vão faltando coisas e pessoas importantes. Neste momento, sinto-me muito amputado. Uma boa parte dos meus amigos já morreu e fazem-me falta. Pessoas com quem me entendia muito bem. Complementávamos as vidas uns dos outros. Concordando ou discordando, não importa. Eram relações intensas, cheias. A sala onde estamos foi palco de tantos desses encontros. Corriam-se os cortinados e estava-se aqui até as sete, oito da manhã a beber copos e a fumar. Pessoas incríveis passaram por aqui. Ary [dos Santos], o Adriano [Correia de Oliveira], adorava o Zeca [Afonso], que não sendo da boémia aparecia por vezes, o Mário Viegas, o Rogério Paulo. Tantos. E tanta amizade. Os meus filhos iam para a escola e eu saía para lhes dar um beijo porque aqui dentro era um nevoeiro intenso. Fiz muita boémia, adorei a boémia. Adorei. Foi das coisas mais belas que tive na minha vida. Eram noites muito intensas com amigos que perdi e que me fazem muita falta. Criaram um vazio. Não quer dizer que não tenha ainda amigos. Tenho, mas são poucos. Fiz dois amigos jovens nos últimos anos. Só dois. Uma rapariga e um rapaz.
Dois fadistas?
Não são fadistas. Não estou com isto a dizer que não tenho muita estima por alguns fadistas. Mas amizade, amizade com um fadista é difícil. Os tempos convocam essa situação. Vive-se em permanente competição.
Vai gravar um disco final. Vai mesmo chamar-se “Para Sempre”?
Ainda não há nome certo. Mas, sim, terei de gravar um disco. É justo que eu grave o último disco.
Foi difícil tomar a decisão de sair de palco?
No ano passado comecei a pensar nisso. “Carlos, vais fazer 80 anos, 57 deles a cantar. As coisas não duram sempre. Não estragues o que levaste uma vida a fazer. Acho que deves poupar o teu coração.” Seria profundamente injusto e ingrato se dissesse que as pessoas não me têm tratado maravilhosamente, toda a minha carreira. Nunca me senti um objeto de consumo. Mas se assisto a um concerto em que o artista se me apresenta decadente, a vontade que tenho é de subir para o palco para pôr fim àquilo. Por vergonha alheia. Constrangimento.
Sem cantar, a vida passará a ser menos boa?
Procurei que a racionalidade funcionasse. O tempo de Suíça – foram alguns anos – fez-me bem. Ganhei uma certa atitude perante a vida. Determinação.
Não há plano alternativo?
Se há. E são giríssimos. Uma hipótese é percorrer este país a conversar com as pessoas sobre fado. A outra é ajudar as novas gerações, no papel de produtor. Repare, surgem fadistas, raparigas e rapazes, como cogumelos. Gente muito jovem e muitas vezes mal orientada, com repertórios péssimos. É tristinho ver uma jovem fadista a cantar as coisas mais tristes desta vida.
O fado gosta de pessoas tristes.
Nunca estive de acordo com isso.
Dizia Amália.
A Amália era de outro campeonato, respeito, mas não concordo. As bases musicais para o fado são o fado menor, que é o fado triste, o fado mouraria ou fado maior e o fado corrido, fado que é dançável. Temos três frentes. Porquê cantar sempre o fado menor? Pessoalmente, digo-lhe, acho uma chatice. Para mim é uma chatice. Depois, há o repertório palavra. Entre a preguiça e a imitação, vai buscar-se repertório que não se coaduna com a personalidade de quem chega. E se há algo que nós temos em Portugal é poesia e poetas – mortos e vivos – para cantar. Só não o faz quem não quiser. Cá estou para isso, como produtor, completamente disponível, como já mostrei com os outros.
Disponível, mas…
Mas austero. Os tempos mudaram muito e tudo tem de ser rápido, para agora. O fado não tem isso. O fado precisa de ser apreendido, respirado, de maneira a provocar reflexão. E que seja para quem o ouve um banho de afetividade.