Há uma URSS nos campos de futebol da Galiza

 

Texto Ricardo J. Rodrigues | Fotografias Gonçalo Delgado/Global Imagens

A pequena vila galega de Sigüeiro é um dormitório a 14 quilómetros de Santiago de Compostela constituído por prédios de três andares. Tem, segundo os últimos censos espanhóis, 3757 habitantes ­– essencialmente famílias trabalhadoras de classe média e média­‑baixa.

A povoação não tem mais de quatro ou cinco cafés, um par de supermercados e um pequeno clube de vídeo, com cada vez menos clientela. Tem, ainda assim, uma biblioteca, uma academia de música e um complexo desportivo onde, todas as semanas, a URSS renasce.

É aqui que joga a equipa de futsal da União Soviética, que por estes dias ocupa os primeiros lugares na segunda divisão do campeonato distrital de Santiago. Foi criada há dois anos por Perico Balado, Alexandre Pita e Eloi Gartzia, três amigos de infância aos quais se foram juntando mais colegas que gostavam de dar uns toques de bola.

URSS na Galiza
Alexandre, Eloi e Perico num dos cafés onde Sigüeiro se tornou União Soviética.

«Só há duas regras de admissão», explica Perico no café onde formaram o clube. «Tens de ser de esquerda, preferencialmente independentista. E tens de ser de Sigüeiro.» Ou de Sigü, como preferem chamar­‑lhe.

Apesar de a geografia ser específica, a sua página do Facebook tem seguidores do Brasil à Argentina, da Sérvia a Portugal. Os textos que ali publicam são francamente divertidos, sempre que partem para um jogo anunciam que seguem para mais um combate para «transformar Sigü na 16ª república socialista soviética».

Se perdem, são bem capazes de classificar o árbitro como «inimigo do socialismo». Se ganham, é uma «vitória contra o capitalismo», pois a maioria das outras equipas do campeonato têm os nomes dos patrocinadores – cafés, bares, pequenas e médias empresas das redondezas.

«Quase sem darmos por isso, criou­‑se uma tribo à nossa volta.» Pelo humor, claro, mas também pela provocação política. «Santiago é uma cidade muito católica, e de alguma forma conservadora. Mas ao mesmo tempo também é uma cidade universitária, capaz de se pôr em causa», explica Alexandre. «Há um cansaço cada vez maior dos partidos de sempre e, nos últimos anos, o panorama político reflete esse cansaço. O que antes parecia impossível é agora real.»

Em 2015, por exemplo, o município passou pela primeira vez a ser governado por uma coligação de esquerda – formada por independentistas, comunistas, ecologistas e pelo Podemos. «Anda toda a gente a olhar para a Catalunha, mas na Galiza também está a acontecer uma revolução», vaticina Eloi entre golos de cerveja.

«A minha geração foi tão encostada à parede que se viu sem alternativas. Agora até podemos criar uma equipa de futsal da União Soviética onde essa ideia é o diabo».

«A minha geração foi de tal forma encostada à parede pelos sucessivos governos que se viu sem alternativas. Não há emprego nem perspetivas de construir uma vida. Então, se nada nos é possível, nós até podemos criar uma equipa de futsal da União Soviética num lugar onde a própria ideia da União Soviética é o diabo.»

Perico e Alexandre têm 25 anos, Eloi 22 – todos na equipa nasceram depois do fim da URSS. O primeiro é argumentista num concurso da televisão galega onde os concorrentes têm de abrir várias matrioskas até encontrarem um prémio, o segundo é gestor de redes sociais e o mais novo acaba de desistir de um curso de Gestão para se inscrever noutro de carpintaria – e por isso diz­‑se o mais proletário do grupo.

Não estão ligados a nenhum partido, mas querem que a esquerda galega consiga tornar a região independente de Espanha. «Depois da queda do Muro de Berlim o capitalismo ficou sem nada a opor­‑se­‑lhe e isso destruiu o valor do trabalho e dos trabalhadores», diz Eloi. «Nós acreditamos que está na hora de a Galiza seguir o seu caminho sozinha, valorizando o que este sistema tentou destruir.»

URSS na Galiza
Em treinos para manter o primeiro posto no campeonato.

E o que é que uma equipa de futsal pode fazer pela sua causa? No meio de gargalhadas, Alexandre é quem responde. «Bem, não vamos converter ninguém ao socialismo a jogar à bola. Mas se usarmos o jogo para passar uma mensagem crítica e irónica, podemos deixar alguém a pensar no outro lado da questão. O riso é uma arma muito poderosa.»

Hoje há treino no pavilhão desportivo de Sigüeiro e todos os onze elementos da União Soviética compareceram à chamada. Juntam­‑se em frente a um prédio onde alguém grafitou o nome da claque – Brigadas Vermelhas – e o rosto do presidente norte­‑coreano, com a inscrição «Kim Jong­‑un é do Sigü».

Também aparecem alguns membros da claque, que assistem a todos os jogos da equipa armados de bandeiras da URSS e da Galiza independente. Entre os lugares da claque está a mascote, uma figura de Estaline com dois palmos de altura, vestindo o trajo militar e sentado numa cadeira à sua dimensão.

Todos aqueles rapazes são de Sigü, mas têm vidas e profissões diferentes. Há um serralheiro e um soldador, um estudante de História e outro de Direito, há um tipo que tirou Ciências do Desporto e outro que fez Filologia Francesa, há um gestor de empresas e um desempregado.

Bebem sempre um shot de vodka antes dos treinos. Mas à socapa – não se pode beber em recintos desportivos. «É nitidamente um ataque ao proletariado».

Depois de se equiparem, no entanto, voltam a ser um corpo, e promovem essa mesma ideia bebendo todos um shot de vodka. «Aqui há uns tempos quiseram proibir­‑nos de fazê­‑­lo porque não se pode ter bebidas alcoólicas em recintos desportivos», diz Perico, que também é guarda­‑redes titular. «É nitidamente um ataque ao proletariado.»

Os equipamentos são iguaizinhos aos da antiga seleção de futebol soviética. Têm o brasão da federação e as letras CCCP inscritas a branco sobre fundo vermelho. «Nas primeiras camisolas não tínhamos marca patrocinadora e por isso colocámos um símbolo parecido ao da Adidas, só que escrevemos antifa [antifascista],» explica Perico.

Há umas semanas fizeram um equipamento novo, letras vermelhas sobre fundo branco, e colocaram­‑lhe um logótipo do centenário da revolução bolchevique. «E há cada vez mais gente a querer comprá­‑las.»

Em Santiago de Compostela, há uma loja a que os rapazes da União Soviética chamam a sua «tienda oficial» e que tem as camisolas expostas para venda. O estabelecimento chama­‑se Pijus Magnifikus, em homenagem ao filme A Vida de Brian, dos Monty Python, e define­‑se como uma freakshop – ou uma loja de produtos bizarros.

URSS na Galiza
Na loja onde vendem as suas camisolas. Chamam-lhe «tienda oficial».

«O nosso primeiro produto são figuras da Guerra das Estrelas», explica o dono, Fran Xurxo. «Mas logo a seguir vêm as camisolas da equipa da União Soviética, que estão sempre esgotadas. Numa semana, desapareceram todas as 82 que tínhamos em stock.» E não se pode dizer que seja propriamente uma pechincha: a versão de manga curta custa 28 euros, com manga comprida sai a 30.

«A clientela vai dos 20 aos 40 anos, é gente que conhece a equipa. Há pessoas que nos ligam porque vivem a cem ou duzentos quilómetros e pedem­‑nos para guardá­‑las até poderem vir levantá­‑las. É um fenómeno.»

Dentro de campo o fenómeno é um pouco menos vasto. Está certo que é só uma peladinha, mas há demasiadas bolas perdidas e Jesus, um dos avançados, dá uma explicação. «A vodka não era das melhores.»

Nas bancadas, no entanto, as bandeiras continuam agitadas. De repente um jogador isola­‑se pela esquerda e centra ao primeiro toque. Alexandre recebe a bola e faz um chapéu perfeito ao guarda­‑redes, marcando o primeiro golo do amigável. Por uns seguntos, a União Soviética voltou a ser a União Soviética.

«Temos o romantismo de viver num sítio pequeno e querer transformá­‑lo num lugar melhor. a nossa vila já é soviética.»

 

Depois da partida, Perico junta a equipa e anuncia que os ecos da União Soviética chegaram à Catalunha. Há um coletivo feminista de independentistas de Barcelona que os descobriu no Facebook e se ofereceu para fabricar os fatos de treino da equipa. Vão investigar a roupa que as equipas soviéticas usavam nas deslocações para os jogos e replicá­‑las para os rapazes de Sigüeiro continuarem a dar corpo ao poderio desportivo soviético.

«Temos de ir comemorar.» Nem era preciso dizê­‑lo. Depois de um jogo, mesmo que seja de treino, há uma ronda pelos bares de Santiago para celebrar a revolução. Perico guia as hostes pelas ruelas de Compostela, vai parando nos bares onde se ouve punk e se bebe cerveja barata. Trouxe consigo uma resma de autocolantes desenhados por um amigo seu chamado Colaya.

Tem uma imagem de Estaline e Lenine equipados com o uniforme da equipa galega e a frase «Sigüeiro é soviético» ­– e ele agora anda a colá­‑los à porta dos estabelecimentos, em postes de eletricidade, como se a máquina de propaganda estivesse oleada e em marcha.

URSS na Galiza
Todos discutem abertamente a situação política em Portugal. E deportiva também.

A conversa dirige­‑se para Portugal – que Perico considera uma espécie de mãe pátria da Galiza. Ele não veria com maus olhos uma união da sua região ao país, mas a maioria da equipa diz que os galegos precisam de trilhar o seu próprio caminho.

Todos parecem conhecer bem a situação política e desportiva do país, no entanto. Admiram a geringonça e o estádio do Braga, já por várias vezes atravessaram a fronteira para ir assistir a jogos da seleção portuguesa.

Nisto, Perico saca a carteira do bolso e mostra um cartão de sócio do Belenenses. «Fiz­‑me sócio há seis anos, durante uma viagem a Lisboa. E acompanho a equipa muitas vezes. Fui à Áustria vê­‑los jogar o apuramento para a Liga Europa e a Penafiel ver o jogo em que subiram de divisão.» Os outros anuem, a confirmar o espanto.

Mas porquê Os Belenenses? «Impressionou­‑me muito a história de um jogador que o clube teve na década de1920 chamado Pepe Soa­res, e que morreu aos 23 anos envenenado acidentalmente pela mãe. Uma tragédia dessas é quanto basta.»

A noite vai avançando, o punk continua a ecoar nas colunas dos bares de Santiago, e há uma altura em que Alexandre anuncia que amanhã é dia de trabalho, vai ser preciso retomar a marcha da produção e uma cerveja mais é capaz de dar cabo de uma revolução inteira. Os outros riem­‑se, mas Perico faz uma cara séria e atira, antes de se meter no carro que o leva de volta a Sigüeiro: «A nossa brincadeira pode ser mais séria do que parece. Temos o romantismo de viver num sítio pequeno e querer transformá­‑lo num lugar melhor. A nossa vila, queiram ou não, já é soviética. E há cada vez mais gente que sabe disso.»