Fundação do Gil: rir para ajudar a casa de todos os sonhos

Texto de Ana Pago | Fotografias de Gerardo Santos/Global Imagens

A doença atinge-nos a todos como um raio, sem poupar nada, nem sequer as crianças. E se desse para aproveitar o Gil, a mascote risonha da Expo’98, para mobilizar para a causa da saúde infantil após a exposição mundial? E se se pegasse no seu carisma junto das pessoas para criar a Fundação do Gil (em dezembro de 1999), que atuasse em áreas de vazio social para as quais nem o Estado nem as demais instituições têm solução?

E se, agora que a Fundação atingiu a maioridade – 18 anos a inovar em projetos de saúde pediátrica e reintegração social –, se festejasse com uma noite de comédia solidária inédita no país? É já hoje que o Rir Ajuda sobe à Altice Arena [ver caixa], em Lisboa, com as receitas a reverterem para um novo pavilhão na Casa do Gil.

Este formato de comic relief (“alívio cómico”) vai acontecer hoje em Portugal pela primeira vez.

«Este formato de comic relief (“alívio cómico”) vai acontecer em Portugal pela primeira vez, mas essa foi sempre uma característica nossa por força das circunstâncias: inovar no que quer que façamos, até porque não existe nenhuma resposta similar no terreno», diz a presidente da Fundação do Gil, Patrícia Boura.

Há 18 anos que o slogan tem sido «a renovar a saúde pediátrica», mas o Estado faculta verbas bastante específicas e o setor empresarial não se adianta muito mais. Resultado: passam a vida a inventar negócios sociais que lhes permitam trabalhar a sustentabilidade e trazer financiamento aos projetos, nomeadamente a Casa do Gil e o apoio domiciliário.

«Quem decide o desfecho são os tribunais», diz a presidente Patrícia Boura. «Nós só damos aos pequeninos quilos de colo e de mimo e de tudo o que nunca tiveram.»

«Já alugamos os nossos jardins para festas de aniversário e temos um programa de atividades para crianças até aos 4 anos assegurado pela nossa equipa de técnicos especializados. Mesmo assim, não chega», explica Patrícia Boura, cuja formação em economia social e solidária (no ISCTE – Instituto Universitário se Lisboa) lhe deixa a cabeça a mil. Como poderiam aumentar a proatividade no sentido de um dia deixarem de depender de terceiros a nível financeiro? Ainda mais urgente: com tantas empresas a solicitarem-lhes, nas instalações que têm no Parque da Saúde, em Lisboa, um espaço para reuniões, almoços, jantares, conferências, workshops, como conseguiriam construir um pavilhão que lhes assegurasse essa fonte segura de rendimentos num futuro próximo?

«Foi quando o Jel, nosso amigo de longa data e programador do Palco Comédia do festival NOS Alive, nos sugeriu montarmos um comic relief como os que são feitos em Inglaterra e nos EUA para angariar fundos», diz a presidente da Fundação desde há quatro anos, agradecida pela ajuda.

Com ela não só espera avançar com o tal pavilhão, como se permite começar já a pensar nas próximas edições de comédia e no passo de gigante que dará com elas: criar uma Unidade de Desenvolvimento Infantil com um psicólogo, um psiquiatra, um terapeuta comportamental, um fisioterapeuta pediátrico, de modo a colmatar o vazio existente na área da saúde mental e comportamental. E depois, porque não?, abrir também as consultas à sociedade civil para gerar receitas.

As necessidades de saúde são hoje muito diferentes das de há 11 anos, quando nasceu a Casa do Gil e as Unidades Móveis de Apoio ao Domicílio.

«Há 11 anos, quando criámos a Casa do Gil e as Unidades Móveis de Apoio ao Domicílio (UMAD), levantava-se uma série de questões de saúde que justificavam sermos o primeiro centro de acolhimento temporário a ter cuidados de enfermagem 24 sobre 24 horas», diz Patrícia Boura.

Muitas crianças eram abandonadas nos hospitais, incluindo algumas que vinham dos PALOP para serem operadas em Portugal e de repente a mãe morria, ou a família desaparecia, ou o cuidador (que nem sequer era familiar) ia-se embora para nunca mais voltar. Outras ficavam internadas por tempo indeterminado para fazerem três tratamentos por semana, quando não teriam de ali ficar se os cuidados lhes chegassem a casa. Tudo necessidades muito diferentes das atuais.

«Na Casa do Gil acolhemos em permanência 16 meninos dos 0 aos 12 anos, enviados pela Segurança Social após sinalizá-los como menores em risco», revela. As histórias são pesadas: abandono, negligência, maus-tratos, muitas feridas invisíveis, desesperança.

Ali ficam a viver até os tribunais determinarem se regressam à família (a maioria), são recebidos por instituições mais especializadas (nos casos de deficiência profunda ou patologias complicadas) ou entram em processo de adoção. Se tudo correr bem, a situação resolve-se numa média de 11 meses, embora já tenham tido crianças a aguardar por três anos.

«É doloroso, são todas muito pequeninas», lamenta Patrícia Boura.

«É doloroso, são todas muito pequeninas. Grande parte chega com problemas de saúde mental e percebemos porquê», lamenta a responsável, empenhada em avançar com a Unidade de Desenvolvimento Infantil para combater em mais esta frente de vazio atual.

Paralelamente, expandiram agora as unidades móveis de apoio domiciliário (continuam a levar os cuidados clínicos a crianças com doença crónica que não podem sair de casa) e acrescentaram a vertente de cuidados paliativos pediátricos – ou Cuidados Pediátricos Integrados, a designação mais suave arranjada pelo Ministério da Saúde sabendo que ninguém quer ter carrinhas à porta a remeter para finais de vida.

«Claro que não atuamos sozinhos: o alcance da Fundação depende da ligação que temos aos hospitais de Santa Maria, D. Estefânia e Amadora-Sintra, em Lisboa, ao Hospital de São João no Porto, ao Centro Materno Infantil do Norte (CMIN).»

Também não chegam para todos os casos, mas certo é que as quatro UMAD já apoiaram cerca de cinco mil crianças com doença crónica e respetivas famílias, e a Casa do Gil ajudou mais de 250 desde que abriu, em 2006. «De repente, damos conta de que somos uns privilegiados», diz Patrícia Boura. «Nunca mais me queixei de nada.»

Há dias em que 16 meninos lhe parecem pouquíssimos. Por outro lado, sabe que o acompanhamento tem de ser personalizado para ficar bem feito.

Há dias em que 16 meninos lhe parecem pouquíssimos. Por outro lado, sabe que o acompanhamento tem de ser personalizado para ficar bem feito e eles trabalham exaustivamente com cada família, criam as condições de poderem vir a receber as crianças, acompanham-nas no luto em caso de perda, o que for.

«De novo, quem decide o desfecho são os tribunais. Nós só damos aos pequeninos quilos de colo e de mimo e de tudo o que nunca tiveram.» De manhã, o primeiro pensamento é para eles. À noite, deita-se a pensar no que conseguiram, ou não, resolver. «Ter 16 filhos é tão emocional que às vezes me apetecia trabalhar numa fábrica de parafusos.» O que vale é não haver colo nem mimos comparáveis aos que aqueles meninos também lhe dão a ela.

A receita de bilheteira do espetáculo do dia 16 reverte inteiramente a favor da Fundação do Gil. Rir é o melhor remédio, até para ajudar crianças que precisam.

SORRIR AJUDA (E DE QUE MANEIRA)

Há sempre algum conforto depois de uma gargalhada. Qualquer coisa de relaxante e aprazível que toma conta de nós quando nos rimos com vontade. «Existem até médicos e cientistas que defendem que o riso tem um poder curativo mas, mesmo que isso não seja verdade, é inegável que ele ajuda a ultrapassar os momentos mais difíceis por que passamos nas nossas vidas», diz o humorista Nuno Duarte (Jel), diretor artístico desta primeira edição do Rir Ajuda, marcada para hoje na Altice Arena, em Lisboa, pelas 21h00.

Ao todo, 17 humoristas e comediantes nacionais reúnem-se para uma noite de comédia solidária inédita no país, cujas receitas revertem na íntegra para a construção de um novo pavilhão na Casa do Gil. «Começando pelos decanos, temos António Machado, Filipe Homem Fonseca, Nilton, Manuel Marques, Hugo Sousa e Rui Xará, a quem se junta Bruno Ferreira e Luís Filipe Borges.»

Ele próprio andará por ali a fazer das suas com o irmão, Vasco Duarte, os Homens da Luta. Pelo lado dos novos talentos, apresentam-se ao serviço Guilherme Duarte (do blogue Por Falar Noutra Coisa), Diogo Faro (do projeto Sensivelmente Idiota), Hugo van der Ding (autor das tiras A Criada Malcriada), e ainda os divertidos Eduardo Madeira e Joana Machado Madeira. A apresentação fica a cargo de Paula Lobo Antunes e Carla Vasconcelos. O preço dos bilhetes oscila entre os 5 e os 25 euros.

O QUE ELES DIZEM

  • LUÍS FILIPE BORGES
    «Modéstia à parte, vamos estar todos a ajudar uma causa com um formato nada tradicional em Portugal. O facto de ser início do ano também dá aquela sensação boa de kick-off [pontapé de saída]. E depois nós somos tantos que chegaremos para todos os gostos: se as pessoas detestarem um número é só esperarem pelo seguinte.»

  • PAULA LOBO ANTUNES
    «É a primeira vez, na história da comédia, que teremos tanto talento assim junto em cima de um palco. Queremos fazer as pessoas rir. Queremos rir com elas. Mas sobretudo torná-las mais conscientes do trabalho da Fundação do Gil e de como podem ajudar de uma maneira prazerosa. O humor é uma arma e tanto.»

  • GUILHERME DUARTE
    «Também eu desconheço o que podem esperar, porque nem nós sabemos isso, mas será uma noite animada e com um propósito nobre: além de o público ajudar, rindo, a Fundação do Gil, ajuda ainda os humoristas – que são todos más pessoas, como sabemos – a limparem o karma

  • JEL (NUNO DUARTE)
    «Vai ser com certeza uma grande confusão, uma coisa um bocado anárquica, e eu pessoalmente gosto disso porque acho que é inerente à comédia. Além disso é a oportunidade de reunir uma data de malta que não costuma estar junta, em números solidários que se fazem muito lá fora mas não cá, portanto tem tudo para correr bem. A ver.»

  • ANTÓNIO MACHADO
    «Não fazemos ideia do que sairá daqui, mas vamos dar o corpo ao manifesto e julgo que o público pode esperar um espetáculo grande, giro, diferente de tudo o que já se fez em Portugal até à data. Sem querer desfazer dos outros colegas humoristas, temos aqui muito bons comediantes, a nata da nata. E eu.»