Futre: «Grande futebolista ou bate­‑chapas do Montijo, seria sempre bom tipo»

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Entrevista de Alexandra Tavares­‑Teles | Fotografias de Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens e Arquivo DN

Paulo Jorge dos Santos Futre não é apenas um dos melhores jogadores portugueses de todos os tempos. É um dos melhores futebolistas mundiais da sua geração, com a Bola de Ouro a escapar­‑lhe em 1987­‑88, numa votação taco a taco, apenas porque então emergia o fenómeno chamado Ruud Gullit.

Hoje, com 52 anos acabados de fazer, o que mais impressiona é a improvável dimensão humana, três décadas depois do bon vivant ao volante de singular Porsche amarelo. Futre é uma festa, uma locomotiva de empatia, um tratado simples de lisura e boa educação. Dono de resposta tão rápida como a mítica finta canhota, tornou­‑se também um caso raro em Portugal de autoironia: o seu sentido de humor é uma segunda pele, mas nunca é mais desarmante do que quando se aplica a si próprio.

Eterno miúdo do Montijo, antepassado visionário do génio de Figo e de Ronaldo, é agora uma figura de simpatia consensual. Da glória do Prater ao Olimpo dos colchoneros, sobrará alguém que não gosta de Paulo Futre?

O futebol português consome­‑se numa guerra interna como há muito não se via.
Uma guerra que me faz lembrar o que se passou em Espanha nos finais dos anos 1980 e em grande parte dos 1990. Três presidentes muito polémicos (Gil y Gil, do Atlético de Madrid, Ramón Mendoza, do Real Madrid, e José Luis Núñez, do Barcelona) criaram um clima terrível. Nos dérbis de Madrid as mães fechavam os filhos mais pequenos em casa, tal era o medo. No meu primeiro dérbi, que ganhámos 0­‑4 no Estádio Santiago Bernabéu, saímos [os jogadores do Atlético] em carros da polícia, de autocarro era impossível.

O Bruno [de Carvalho] já fez muita coisa boa pelo Sporting, e tem ajudado o clube, mas, às vezes, diz e faz umas coisas com as quais não concordo.

Nesta guerra é sportinguista. O facto de ter jogado no FC Porto e no Benfica torna a vida mais difícil ao comentador?
Sou sportinguista mas sou sobretudo amante e fanático de futebol. E, portanto, olho para o que se está a passar com muita tristeza. Foi um imenso privilégio jogar nos três grandes. Não, não gosto de ver como está isto. Caramba, há uns meses morreu uma pessoa por causa desta guerra. Não chega para ver que estamos a passar o limite?

O seu presidente tem ajudado. Que acha dele?
O Bruno [de Carvalho] já fez muita coisa boa pelo Sporting, e tem ajudado o clube, mas, às vezes, diz e faz umas coisas com as quais não concordo. E não tinha necessidade.

Por exemplo?
Criticar os jogadores e dar­‑lhes broncas na praça pública. Vamos ver, ele pode dizer tudo aos jogadores e tem razão, sobretudo quando a equipa perde por três golos em Guimarães. Mas porquê em público se pode sacar muito mais sumo da equipa se o fizer nos balneários? Não gosto e já lho disse. Como já lhe disse que não percebo por que razão vai à luta quando as coisas estão tranquilas. Mesmo tendo toda a razão, desestabiliza a equipa. Como seu amigo, tenho pena que as pessoas não conheçam o outro lado do Bruno de Carvalho, mais calmo e com imenso sentido de humor.

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Os erros de arbitragem são um clássico destas guerras. Os três grandes pesam o mesmo para os árbitros?
Se vi algum lance em que o árbitro tenha sido malandro? Claro que vi. Mas acontece para os três. No final de cada época, contas feitas, deve dar ela por ela.

A propósito, enganava­‑os bem. Cada queda, cada penálti. Em Espanha, chamavam­‑lhe El Piscinero.
Era uma arte [risos]. Muitas vezes nem eu não fazia ideia se tinha sido ou não penálti.

Os treinadores pediam­‑lhe que caísse?
Era a minha maneira de jogar. Tinha o prazer do penálti, era a minha jogada favorita: ir para cima deles, entrar na área em velocidade e esperar que me derrubassem. Tirando uma vez por outra, não era fita. Levei muita pancadinha.

Uma jogada própria de que tipo de jogador?
Posso dizer que fui um jogador alegre, emotivo, criativo e corajoso. E digo corajoso porque em Espanha não era fácil. Arriscava­‑se muito. Ao contrário do que se fazia no FC Porto, nos treinos era uma vergonha usar caneleiras.

Como estão hoje os joelhos, depois de tanta pancada e da lesão?
A jogar aguento pouco e mesmo assim, no dia seguinte, sinto o joelho direito. No dia­‑a­‑dia, gestos tão simples como ter uma perna cruzada sobre a outra provocam dor ao fim de alguns minutos.

No Olímpico de Marselha (1993) jogou com infiltrações de cortisona, depois teve uma lesão na rótula direita que o levou a três operações. Como se concilia a dor com a vontade de jogar?
É um calvário. É a palavra que encontro, sobretudo quando as operações não resultam. À terceira já não havia médico que me quisesse operar, por medo de ficar conotado com o fim da minha carreira. O certo é que aos 30 anos, com uma perna atrofiada, entrei no San Siro [estádio do AC Milan] para festejar um título. Só tinha feito um jogo, sabia que o joelho nunca mais seria o mesmo e que estava perto do fim, mas tinha conseguido. «Leão», chamavam­‑me os médicos. É um grande elogio. Tinha sido uma aposta de Berlusconi e cumprira.

Com que ideia ficou de Berlusconi?
Quando ele falava em Milanello [cidade desportiva] nem uma mosca se ouvia. O que mais me impressionava eram as chegadas em helicóptero. Nunca tinha visto tal coisa. Pousava, falava e voltava a levantar. Recordo a presença muito forte.

Trabalhou com os presidentes mais polémicos do seu tempo. Pinto da Costa, Gil y Gil, Bernard Tapi, Berlusconi.
Andei no meio de grandes presidentes, polémicos todos, a começar pelo João Rocha, que sempre teve por mim muito carinho.

Mas que ia pagar­‑lhe no Sporting setenta contos por mês, recusando dar­‑lhe 18 mil contos por três anos quando a proposta do FC Porto era 27 mil por três épocas.
Ainda hoje estou para saber se a minha proposta chegou a João Rocha. Disse­‑me na altura um dirigente do Sporting que João Rocha terá comentado sobre mim «ele está louco». Nunca acreditei. Mas também nunca lhe perguntei se era verdade ou mentira.

A verdade é que nessa noite assina pelo FC Porto. O que sentiu o miúdo que ia ser emprestado a Académica quando Pinto da Costa lhe diz «Paulinho, aí não te querem, aqui vais ser tu e mais dez»?
Desde logo que era um presidente muito esperto porque percebera que tinha ali um miúdo a viver a pior fase dos seus primeiros 18 anos. Caramba, eu estava de rastos. Aquela frase foi das melhores coisas que me disseram em toda a vida. Mesmo que não fosse completamente verdade.

Gil y Gil foi um amigo enorme e um inimigo terrível. Morreu no dia em que regressei a Madrid e houve quem dissesse que ele esteve à minha espera para partir. Peguei­‑lhe no caixão.

E não era. O balneário do FC Porto não era pera doce. De Pinto da Costa passa para Gil y Gil. O presidente da sua vida.
Não houve nem nunca haverá entre um presidente e um jogador uma história de amor e ódio como a que tivemos os dois. Tenho muitas saudades dele.

«Se Futre fosse minha mulher seria minha amante», disse um dia Gil y Gil.
Já quando se chateava corria­‑me a «português de merda». Gil y Gil foi um amigo enorme e um inimigo terrível. Mas uma das mais violentas discussões foi a última. Em direto, na rádio Marca, quando ele anunciou que ia contratar jogadores que eu, diretor desportivo, não queria. Foi de filho da mãe para cima. Fui o único que afrontou Gil y Gil, sempre com lealdade. Viria a morrer no dia em que regressei a Madrid e houve quem dissesse que ele esteve à minha espera para partir. Peguei­‑lhe no caixão.

Do homem que um dia lhe disse «vais ser capitão de equipa». Tinha 22 anos, dois de Atlético de Madrid, estrangeiro.
Nunca senti tanto medo na vida. Estava em pânico. Sabia que a braçadeira era desejada por alguns companheiros, espanhóis, mais velhos, internacionais. O homem tinha despedido o Juan Carlos Arteche e ia dar a braçadeira a um português de 22 anos? Ainda lhe disse: «Quer­‑me matar?» Não cedeu. E descemos os dois para o balneário.

Nesse percurso em que pensou?
No Manuel Fernandes. No que ele me tinha ensinado: a controlar o medo e fazer o melhor possível.

Ainda antes de me contar dos balneários por onde passou, e foram nove, a ida para o Atlético Madrid ficou marcada por um carro: o Porsche amarelo.
Na véspera de conhecer Gil y Gil, que era na altura candidato à presidência do Atlético, tinha tudo acertado com o Inter de Milão. A negociação foi feita em casa do Ernesto Pellegrini [presidente do Inter], com Pinto da Costa e comigo, e para chegar a acordo foi um sarilho. No dia seguinte aparece o Gil em Milão, disposto a dar tudo. Pedimos logo o dobro. E pergunta­‑me ele: casa? E eu: com piscina. Ele: coche? E eu: Porsche. A gente pedia e ele tomava nota. Ui, desconfiei daquilo. Só pensava: «E se o homem perde as eleições que eram dali a três ou quatro dias?» E disse ao Pinto da Costa: «Amanhã quero o Porsche, pelo menos fico com o carro. Sem Porsche vou­‑me já embora.» No dia seguinte, no stand só havia um carro para entrega. Nunca tinha visto um carro amarelo. O Pintinho, percebendo que eu ia recusar, diz com aquele sotaque dele: «Ó Paulinho, olha que o carro é muito bonito.»

Tinha 18 anos, era solteiro e um jogador do FC Porto era rei na cidade. No final do treino estávamos mais de uma hora a dar autógrafos. Eu, como não tinha namorada, trocava autógrafos por números de telefone. Se não fosse o Octávio Machado ter­‑me vigiado podia ter corrido muito mal.

Vamos aos balneários. Como foi a receção no FC Porto sabendo­‑se que ia ganhar o segundo salário mais alto da equipa (o primeiro era de Fernando Gomes)?
Saí do Sporting com a responsabilidade de um puto de 18 anos e de repente tinha a responsabilidade de um homem de 30. No Sporting treinava com o Manuel Fernandes, com o Jordão e com o Oliveira desde os 15, desde os 17 que me deixavam equipar no balneário deles. Sabia que nunca seria assobiado. No FC Porto tinha de provar que merecia ganhar mais do que os outros e que era melhor. Era um balneário tremendo. Lembro­‑me de ter ido jantar a casa do Inácio, que também era de Lisboa, e de ele me dizer «amanhã cumprimentas­‑me mas não fiques ao pé mim, não vá pensarem que somos um grupo». O Gomes, o líder, não era para brincadeiras.

No FC Porto foi muito vigiado.
Tinha 18 anos, era solteiro e um rei. Um jogador do FC Porto era rei na cidade. No final do treino estávamos mais de uma hora a dar autógrafos. Eu, como não tinha namorada, trocava autógrafos por números de telefone. Se não fosse o Octávio Machado ter­‑me vigiado podia ter corrido muito mal.

Havia quem dentro da equipa detestasse o Octávio.
No meu caso, devo­‑lhe a vigilância. O homem não me deixava respirar. Eu bem ia para São João da Madeira ou para Braga, porque no Porto não tinha hipótese, mas a estrutura era de tal maneira que eu chegava lá de manhã e sabiam. Mas ajudou­‑me. Até porque mau mau era ir ao Artur Jorge. O primeiro atraso deixava passar mas ao segundo chegávamos de manhã e não havia cesto de roupa. «Vai ao mister», dizia o roupeiro. Eu tremia, sabia o que me esperava.

E Pinto da Costa?
Nunca me gritou. «Ó Paulinho tem cuidado, vê lá o que fazes, olha a tua carreira.» Bastava um olhar dele para eu perceber.

Artur foi o treinador que mais o marcou?
Sem dúvida. Ele e o Luis Aragonés.

Balneário do Atlético, capitão de equipa, cheio de medo. Como conseguiu impor­‑se?
Devagarinho, demonstrando muito respeito por todos. Tenho a noção de que só ganhei completamente os jogadores dois anos mais tarde, quando consegui que o Gil y Gil cumprisse o prometido ao [Juan Carlos] Aguilera. O Aguilera era um miúdo a quem tinha sido diagnosticado um cancro na tíbia. Um choque em Espanha, de tal forma que o presidente disse que renovaria com ele por vários anos, vitaliciamente, se fosse preciso, enfim, aqueles rompantes à Gil. Depois de se descobrir que não era maligno, o Gil nunca mais falou no assunto. Eu ia­‑o lembrando, mas ele nada. Até ao dia da minha renovação. Estava com ele no gabinete, a imprensa toda cá fora. Encostei­‑o a parede. Que só assinava depois de ele assinar com o miúdo. E o Aguilera assinou nesse mesmo dia. Então sim, quando entrei no balneário, a forma como os meus companheiros me olharam queria dizer «sabemos que matas por nós».

Espanha fez de si um monárquico?
Esquerdas direitas, monarquias ou repúblicas, sempre olhei mais a pessoas. Gostei muito de Mário Soares, simpatizei com Cavaco Silva e gostei muito de Juan Carlos. Não esqueço o que me disse quando me entregou a Taça de Espanha. A honra que era para ele entregar o troféu a um português.

Ganhava rios de dinheiro mas vivia rodeado de pessoas a quem ajudava. Tinha a noção de tanta gente à sua volta?
Sei bem que ajudei muita gente. Tive uma ou outra desilusão mas valeu muito a pena. Sobretudo, deu­‑me muito prazer ajudar os anónimos, portugueses que chegavam e pediam uma cunha para um trabalho, ou que partiam e pediam dinheiro para o comboio. E na Catalunha, nas Astúrias, no País Basco, na Galiza, por onde andasse, sempre apareciam portugueses no hotel. E diziam­‑me mesmo: «Quando chegaste aqui eu era o portuga. Hoje sou o compatriota do El Portugués.» É que ficava orgulhoso. Não podia virar­‑lhes as costas.

Virou as costas ao Real Madrid quando tinha o contrato em cima da mesa. Foi dos poucos. Nunca se arrependeu?
Quando chegou proposta eu estava a viver o escândalo do Marselha [1993], queria sair dali e só pensava em mim e no que me apetecia fazer. No dia da assinatura do pré­‑contrato, em minha casa, com os homens na sala, vou à casa de banho, os meus filhos, com 3 e 4 anos, seguem­‑me e na casa de banho olho para eles e pela primeira vez penso «espera lá, e estes? como vão eles viver em Madrid?» O estado em que eu estava para que isso não me tivesse passado pela cabeça antes. Vejam o que aconteceu ao Figo, e ele mudou de cidade. Agora eu ia viver na mesma cidade, o que significava o inferno para a minha família. Regressei à sala, expliquei a situação, pedi muita desculpa e não assinei. Nunca me arrependi.

Já tinha tido a experiência do Benfica.
E com o FC Porto. Mas aí pagaram sobretudo os meus pais. Vidros partidos, agressões verbais, a minha família passou mal. E eu só voltei ao Montijo seis anos depois de ter ido para o FC Porto. Quando vim para o Benfica, foi ainda mais complicado. Amigos do peito e de infância deixaram de me falar. Não sei como foi possível, mas aconteceu.

Porém, é uma figura bem­‑vinda nos três clubes. Porquê?
Porque nunca cuspi no prato que me deu de comer. Porque para mim foi um privilégio ter jogado nos três grandes. Quando se é menino pode­‑se ter muitos sonhos. Eu queria jogar na primeira equipa do Sporting, jogar na seleção e ir lá para fora ganhar dinheiro. Mas desejar jogar nos três grandes era um atrevimento. Não me esqueço do que disse ao meu pai quando cheguei ao Benfica e fechei o ciclo: «Pai, és um campeão. Tiveste um filho nos três grandes de Portugal.» Hoje, enquanto comentador, digo o que penso e não fujo a questões, mas há um limite que nunca ultrapasso. Por respeito.

Que sonhos ficaram por cumprir?
Ser campeão pelo Atlético de Madrid e fazer algo de bom com a seleção nacional. Não só não consegui como estou na página mais negra da seleção, e não gosto nada.

Saltillo.
Ninguém pode sair do barco, uma vergonha. Demasiado amadorismo de todos. Manchámos o nome de Portugal. Penso nisso e sinto muita vergonha. Um pesadelo que ainda não me saiu da cabeça. Quando agora nos saiu Marrocos no sorteio passei uma noite sem dormir. De repente voltei aquele balneário. Foi um caos.

Moral da história?
Duas coisas positivas. Saltillo serviu para unir os jogadores. Era sabido que os jogadores do FC Porto e os do Benfica não se falavam, odiavam­‑se. Saltillo uniu­‑os. E deu para eu ficar a saber que pior do que aquilo era impossível. Um ano depois sou campeão da Europa com o FC Porto. O futebol é assim.

Que outros momentos altos destaca?
A Taça de Espanha. A homenagem que me fizeram em 1997, no Estádio Vicente Calderón, com a entrega da insígnia de ouro e brilhantes. A Taça de Portugal que ganhei pelo Benfica.

Já estava retirado do futebol há seis meses, era embaixador do Atlético de Madrid, dava os primeiros passos como diretor desportivo, quando de repente volta a jogar.
Uma coisa surreal. Durante um treino da equipa sou convidado pelo treinador [Radomir Antic] para ir substituir em campo um atleta lesionado. «Não treino há que tempos, fumo desalmadamente, está louco?», disse­‑lhe. Mas ele insistiu e fiz o treino. No dia seguinte, os jornais diziam que o espetáculo voltara ao Vicente Calderón, e isso tentou­‑me. E lá voltei ao estádio onde já não jogava há quatro anos. Estava cheio, Gil y Gil discursava, mas os adeptos gritavam o meu nome. Fui falar­‑lhes, disse­‑lhes que estava com muitas saudades deles. E estava. Foi das emoções mais fortes que vivi ao longo da carreira no futebol.

Na conferência de imprensa em que anunciou o fim da carreira pôs em cima da mesa as chuteiras com que foi campeão europeu em Viena e foi a olhar para elas que se despediu. É um romântico?
Só um bom tipo. Jogador de futebol reconhecido no mundo ou bate­‑chapas do Montijo, acho que seria sempre um bom tipo.

Antic convida­‑o a regressar e depois é ele quem o afasta, de novo. Porquê?
Ele queria tirar da equipa quatro jogadores que foram vistos numa discoteca. E aquilo mexeu comigo porque todos nós tínhamos feito o mesmo. Eu também tinha estado a beber até às três da manhã. Por isso disse­‑lhe que ou nos afastava a todos ou não afastava nenhum. Ele não me perdoou.

Simões, Chalana e Futre. O que os distinguiu?
Cada um foi o melhor esquerdino português da sua geração. Três jogadores capazes de desequilibrar e resolver um jogo.

Qual é a diferença entre o bom e o grande jogador?
Bom jogador é aquele que é uma peça fundamental no trabalho de equipa. O que alia a esse sentido coletivo a capacidade, seja talento, rasgo, coragem, de resolver o jogo numa jogada individual é um grande jogador.

Sentiu que o seu talento provocou alguma inveja?
Tive de superar muita maldade, e no meu próprio balneário. Sobretudo nos primeiros meses de cada balneário. Custa estar a tomar banho e ouvir os colegas, nos chuveiros ao lado, a comentar se eu seria assim tão bom. Às vezes ia para casa chorar. Depois, como tenho este feitio, passava.

Ronaldo é o melhor jogador português de sempre?
A resposta obriga­‑me a comparar Ronaldo a Eusébio e a comparação é muita injusta para ambos. Eusébio foi o meu deus, o Cristiano é do outro mundo.

Cruyff, o fumador, ou Ronaldo, a máquina?
Ronaldo é um talento, mas é também uma máquina perfeita. Provavelmente só teremos outro daqui a cem anos. Um por século. Acho que ninguém consegue sequer imaginar o Cristiano a fumar um cigarro. Eu estou mais próximo de Cruyff. Nesse sentido, nunca fomos cem por cento profissionais. Quando jogava controlava­‑me. Ao longo da semana ia diminuindo de forma a fumar um cigarro ao domingo, depois do almoço. Depois dos jogos, todos. Era, e é, o meu vício. Uma vez estive quatro dias sem fumar, foi um horror, nem conseguia treinar. Não tinha forças [risos].

Começou com 12 anos.
Para matar o tempo no barco. Passava duas horas por dia no barco de uma banda para a outra. Passei cada tempestade. Por vezes os barcos nem podiam sair e dormia na estação, em cima das cadeiras. Detesto barcos.

Aos 13 anos já tinha deixado a escola, trabalhava e jogava no Sporting.
Era dos poucos no Sporting que já trabalhavam. Lembro­‑me das convocatórias da seleção nacional: fulano, estudante; sicrano, estudante; Paulo Futre, extremo­‑esquerdo, bate-chapas.

Incomodava­‑o?
Nada. Era o que eu era. Bate­‑chapas. No primeiro dia na oficina sujei de propósito o fato macaco para poder gabar­‑me ao chegar a casa. «Vejam só o que eu trabalhei.»

Começou a jogar à bola com um nome falso. Rogério Paulo Viegas Alves. Começa aí a história de Paulo Futre.
O Sporting organizava anualmente um torneio para crianças entre os 10 e os 13 anos. No Montijo, organizámos uma equipa, o meu pai era o treinador e eu queria jogar mas só tinha 9 anos. Convenci o meu pai a inscrever­‑me com BI do Ginja. A nossa equipa ganhou o torneio e então o Aurélio Pereira quis falar comigo. Pirei­‑me depressa. No ano seguinte, entrei com o meu verdadeiro nome. O Aurélio voltou à carga mas o meu pai não me deixou ficar no Sporting por ser muito novo.

Depois do Torneio de Rocheville de sub­‑11, o Sporting a insistir.
Esse torneio foi um sonho. Fui escolhido para capitão de equipa, andei pela primeira vez de avião, fui considerado o melhor jogador do torneio, estava feliz. Mal cheguei a Lisboa, o Aurélio Pereira voltou a insistir com o meu pai. Cedeu. O primeiro contacto com os outros miúdos não foi fácil. Era tímido. Mas no meu primeiro jogo marquei logo sete golos. Integração resolvida.

Sou apaixonado pela II Guerra Mundial, sobretudo, sobre os homens de Hitler, o que os levou até ali. Quem eram aquelas pessoas e como foi possível fazer o que fizeram. Leio tudo o que apanho sobre esse assunto.

Quando se apercebe do seu talento?
Em Rocheville percebi que era um bocadinho melhor do que os outros e que talvez fosse por isso que me escolhiam para capitão.

O que recorda da sua infância?
Os verões incríveis que passava no parque de campismo da Caparica, grandes verões que lá passei com amigos. Praia, sol e uns chocolatinhos roubados no supermercado.

Tem um irmão mais velho oito anos. É fácil ser irmão de Paulo Futre?
Sempre nos demos muito bem. Se bem que ele era duro comigo. Um dia, era eu miúdo, saiu no jornal A Bola que alguns jogadores da seleção, em estágio, passavam os dias nas cartas e nas passas. Nesse mesmo dia aparece­‑me lá e deita­‑me as mãos ao pescoço. Em algumas fases da vida foi como se fosse meu pai.

Os seus pais nunca quiseram viver em Madrid.
Viveram lá uns meses, apenas. Queriam ver­‑me bem, visitar­‑me, falar comigo diariamente pelo telefone, mas também que os deixasse estar no Montijo, na casa onde sempre foram felizes. Um dia perguntei­‑lhes se queriam um castelo. Olharam para mim e encolheram os ombros como se eu fosse maluquinho.

No Porto conhece a sua ex­‑mulher, mãe dos dois filhos.
Foi outro caldinho. Em 1986 não era fácil viver em união de facto. Tivemos muitas pressões da Igreja. Mas muitas mais tive depois de ter sido pai. A Igreja chegou a acusar­‑me de ser um mau exemplo. No Atlético era o único jogador naquelas circunstâncias. Os jornalistas sempre a insistir na pergunta do casamento. E nós sempre a dizer o mesmo. Sempre dissemos que não precisávamos de uma igreja para sermos felizes. Continuo a dizer o mesmo. Vivo com a Eva, a minha atual mulher, há oito anos, oito anos muito felizes sem precisarmos de papéis para nada.

Tem pena de que nenhum dos dois filhos [Paulo e Fábio] tenha herdado o seu talento?
Não, nunca fiz questão. O Paulinho não tinha nenhum, zero. O Fábio ainda tentou mas uma lesão afastou­‑o. Hoje é treinador. Quero é que sejam felizes.

O que tem sido a sua vida com o futebol?
Uma aventura incrível. Conheci pessoas que marcaram a minha vida. Presidentes, companheiros, vivi situações únicas.

E sem o futebol seria como?
Teria sido seguramente o melhor bate­‑chapas do Montijo.

Qual foi a melhor decisão e o maior erro da carreira?
Ter ido para o FC Porto. O que mais lamento foi estar zangado com Gil y Gil na hora da morte dele.

Conta num livro autobiográfico que se meteu em mil caldinhos. A tropa foi um eles.
Quando o Gil y Gil soube pelos jornais que eu tinha de ir para a tropa em setembro, dois meses depois de pagar uma fortuna pelo meu passe, teve um ataque de fúria. Acordou­‑me às oito da manhã a chamar­‑me de tudo. Um jornal espanhol escreveu «é o roubo do século». Eu sabia que a bomba haveria de rebentar. E rebentou. Era o embaixador português em Espanha a dizer que eu tinha de vir por ser um exemplo e os meus advogados a dizer que eu servia melhor Portugal em Espanha do que na tropa. Quando me disseram que se não viesse seria considerado refratário e ficava impedido de vir a Portugal durante cinco anos fiquei muito preocupado. O Montijo, a seleção, não podia ser. Em meados de agosto dizem­‑me que o presidente da República quer falar comigo. Lá fui à embaixada. «Paulo Futre, é uma honra estar a falar consigo, mas no dia 1 de setembro tem de estar na tropa.» Comecei chorar: «Ó senhor presidente não me faça isso.» Eu ia com a estratégia estudada mas não foi teatro. Chorava, prometia triunfar em Espanha e ser um exemplo para todos os jovens. De tal maneira que ele diz­‑me: «Bem, falamos daqui a dois dias.» Dois dias depois lá estou: «Senhor Paulo Futre, tenho a honra de dizer que vai ser o primeiro atleta a ter estatuto de atleta de alta competição e vai ter adiamento da tropa. Mas não me vai falhar.» Aí comecei a chorar a sério. A partir daí, três minutos antes do jogo ia à casa de banho e gritava «por mim», e benzia­‑me «por Portugal», e benzia­‑me «por Mário Soares», e benzia­‑me. Foi assim durante anos.

Porque aceitou fazer publicidade a um estimulante sexual?
Porque não? Qual é o problema? Acho que foram buscar o único português capaz de fazer o anúncio sem sentir vergonha. Fui bem escolhido [risos].

Incomodou­‑o ser tão gozado com a história do chinês?
Nada. Eu também gozei. O governo Sócrates tinha caído e a notícia ia mobilizar toda a comunicação social numa altura em que precisava dela para a candidatura de Dias Ferreira. Por isso, pus­‑me a pensar no que podia dizer e pensei no chinês. O primeiro ouvinte foi o meu filho. E como ele se riu muito achei que tinha encontrado a solução. E tinha mesmo.

O que faz hoje?
Sou comentador na televisão, escrevo para o jornal Record, divido a minha semana entre Madrid e Lisboa. Trabalho na área do futebol, faço a ligação entre clubes e empresários, ajudo para a solução de algumas situações e para concretização de outras, atendendo aos meus conhecimentos.

Em que investiu o seu dinheiro?
Em terrenos no Montijo. Tenho uma boa vida financeira. Não posso queixar­‑me.

E em que gasta o tempo livre?
Gosto muito de ver séries. Sou apaixonado pela Segunda Guerra Mundial, sobretudo sobre os homens de Hitler, o que os levou até ali. Quem eram aquelas pessoas e como foi possível fazer o que fizeram. Leio tudo o que apanho sobre esse assunto. Procuro todos os documentários e séries de ficção.

Por último: Sporting ou Atlético de Madrid. Torce por qual?
O Sporting foi um pai e uma mãe. No Atlético fui capitão, embaixador, diretor desportivo. Vai ser um dia de alegria e tristeza. Um passará, outro ficará. Sinceramente, não consigo escolher.