Portugal 2028. Uma das crianças do SuperNanny vê o programa gravado dez anos antes

Notícias Magazine

«Só vi aquilo uma vez. Foi o suficiente. Eu devia ter uns 12 ou 13 anos, estava no YouTube e não resisti: fui à procura do episódio da SuperNanny em que eu tinha aparecido uns anos antes. Eu, a minha mãe e o meu irmão. Todos. Aos gritos, em discussões, em guerras, com portas a bater e brinquedos pelo ar. Nós os três e mais aquela mulher. Aquele ar empertigado e sério de quem está ali com vontade de intervir mas faz um esforço para se conter.

Aquela mulher de óculos que eu não conhecia de parte nenhuma e um dia me entrou pela casa e foi ao meu quarto, à casa de banho que eu usava, à sala onde via televisão e comia, à cozinha onde passávamos tanto tempo. Aquela mulher viu a minha roupa, passou perto dos meus brinquedos, opinou sobre os meus cadernos, falou sobre a minha cama por fazer. Aquela mulher que veio com um homem que filmou tudo. Tudo, mesmo.

Foi esse episódio que eu vi. Já me tinham falado daquilo, já tinha sido gozado na escola por aquilo, já tinha ouvido colegas meus chamar nomes à minha mãe por causa daquilo. Mas nunca tinha visto aquilo. E, para grande azar, aquilo era como um acidente na estrada: não dava para parar de ver. Por muito escabroso que fosse, não dava para parar de ver. Aquele era eu. Exposto, desprotegido, exibido. Era eu numa situação que devia ser privada e se tinha revelado pública.

Durante muito tempo quis apagar aquelas imagens da minha cabeça. Tentar esquecer que tinha visto aquele fogo-de-artifício todo que espelhava os dias negros da minha infância, quando eu tinha a mania que era rebelde e não obedecia à minha mãe e gostava de roubar os brinquedos do meu irmão só para o irritar e ficava convencido de que assim conseguia que me dessem mais atenção. Eu não queria pensar mais naquilo. Eu precisava de não pensar mais naquilo.

Um milhão. Um milhão de pessoas viu aquelas imagens. Um milhão viu a figura que eu fiz, os nomes que eu chamei ao meu irmão, os disparates que disse à minha mãe. O que raio tinha ela na cabeça quando achou que deixar uma câmara filmar-me aos gritos e a espernear e a fazer uma birra – e uma estação de televisão difundir essas imagens – seria uma boa ideia? Que paragem cerebral terá tido a minha mãe, que desespero tão grande em entender-me seria aquele para achar que era boa solução exibir o filho para um milhão de pessoas. Mostrar a ansiedade, a frustração e a energia mal canalizada do filho a um milhão de pessoas.

Nos dias seguintes, depois de ver as imagens, tinha vergonha de andar na rua. Tinha medo de ser reconhecido, que apontassem o dedo, que alguém dissesse “olha, aquele não é o miúdo do SuperNanny que fazia aquelas asneiras todas e se portava como um idiota?” Porque na escola isso já tinha acontecido. Eu já tinha sido devidamente gozado. Por colegas e até alguns professores. Mas na rua…? Ao pé de casa? Isso devia ser terreno seguro. Uma zona de conforto onde eu podia passar despercebido sem ter medo de algum dedo apontado e uma gargalhada.

Eu, que até nem tenho muitas fotografias no Instagram e nem uso Facebook, percebi finalmente, quando tinha 12 ou 13 anos, que a minha tinha exposto na televisão quando eu era ainda mais novo, em nome de uma suposta correção parental – que nunca aconteceu depois – e de uma orientação que podia ser útil para ela.

Percebi, finalmente, que a minha mãe tinha exibido o que eu sempre tinha querido esconder: a minha intimidade, as minhas frustrações, a minha falta de habilidade para lidar com situações de stress. Eu, que na escola fugia para a casa de banho para chorar de raiva à vontade, descobri aos 12 anos que tinha estado a chorar à frente de um milhão de pessoas.

Agora tenho 17 anos e continuo sem perdoar à minha mãe pelo que fez. Continuo a não entender o propósito daquilo tudo. E continuo a ser gozado de vez em quando pelos meus amigos.»