Os filhos mais velhos são adultos em miniatura?

Salvador (o mais velho), Vicente e Maria. (Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

Parece quase inevitável. O primogénito acaba por ser o exemplo para os mais novos. Mas, ao incutirem certas tarefas ao “mais crescido”, os pais poderão estar a fazer exigências para as quais a criança não está preparada.

Aos sete anos, Salvador já prepara sozinho o pequeno-almoço para os irmãos mais novos, Vicente, de cinco, e Maria, de dois. Mas não só. No momento de lavar os dentes, é ele quem coloca a pasta na escova dos mais pequenos. Não que a diferença de idades seja muito grande, mas porque a personalidade de Salvador assim o permite.

Quando o pai, Rui Mendes, se ausenta por motivos profissionais, é ele o grande companheiro da mãe, Ana D’Orey. “Acaba por assumir um pouco estes papéis, é um miúdo extremamente responsável e ajuda-nos muito”, explica. Também não é incomum que os irmãos tomem banho todos juntos, com a devida supervisão da mãe.

Há poucos dias, de férias numa autocaravana pela Costa Vicentina, Salvador e Vicente acabaram por partilhar algumas tarefas, como preparar a mesa para as refeições. Assim acontece igualmente durante o ano, em casa. Afirmam convictamente que formam uma boa equipa.

“Tem sido algo instintivo, não foi necessariamente imposto por nós. O que é certo é que há um grande equilíbrio entre ambos. Os irmãos mais velhos gostam de ajudar, vivem muito em conjunto, e todos temos esse espírito de entreajuda familiar. Por outro lado, mesmo que não tivesse sido intencional, o Salvador acaba por ser o exemplo para os mais novos e houve aspetos e regras que [os irmãos mais novos] apreenderam através dele”, acrescenta Ana. De igual forma, garante a mãe, ambos são muito protetores da irmã Maria, “a única menina e mais mimada”.

O exemplo desta família de cinco elementos é provavelmente replicado em tantas outras pelo país afora. Mas afinal, os pais exigem demasiado dos filhos mais velhos? E fazem-no conscientemente? “É sempre importante ressalvar que não há crianças nem famílias iguais. Cada uma deve ser entendida como um sistema complexo em constante ajustamento”, começa por afirmar Magda Oliveira, psicóloga clínica e da saúde do Hospital CUF Porto.

É então importante não generalizar, porque tudo depende do contexto em que as famílias vivem no momento do nascimento de cada criança. “Filhos diferentes requerem abordagens distintas por parte dos pais. As respostas parentais variam em função das competências de comunicação, das necessidades e das exigências de cada criança e das respetivas idades”, sublinha a psicóloga.

“No entanto, é verdade que a literatura revela diferenças no padrão parental em relação aos vários filhos, sendo sobretudo influenciadas pelo modo como os pais percecionam as expectativas que têm em relação aos mesmos.”

O primeiro filho, habitualmente muito desejado, traz consigo enormes expectativas, não só por parte dos pais como da restante família, o que acarreta algumas exigências educativas. “Há um conjunto de ideias preconcebidas em relação à criança e àquilo que se acredita ser ‘uma educação perfeita dada por pais em busca da perfeição’, o que muitas vezes coloca uma enorme pressão sobre a criança e os pais, até nas oportunidades de aprendizagem e lazer que tentam proporcionar-lhe”, esclarece Magda Oliveira.

Também nas férias, a família de Ana D’Orey e Rui Mendes partilha tarefas com o primogénito Salvador (esquerda) e o irmão Vicente. Maria é a única menina e a “mais mimada”. (Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

Tanto Ana D’Orey como Rui Mendes tentam “compensar” o esforço que reconhecem no filho Salvador. Por ser tão responsável e proativo, o casal tem a preocupação de fazer programas diferentes só com ele, dando-lhe espaço e tempo exclusivo. É também o único a ter uma atividade organizada fora da escola: joga futebol. Os irmãos acompanham-no aos treinos e não fazem quaisquer cobranças. “Aconteceu assim e de forma natural”, diz a mãe.

Ajustar a educação ao contexto

Não se pode esquecer o peso histórico e cultural que sempre recaiu sobre a figura do irmão mais velho, habitualmente “o mais preparado e o rosto da família”, considera Magda Oliveira. No entanto, e mesmo que os pais não o façam conscientemente, há que estar atendo aos efeitos do excesso de exigências.

Quando nasce um irmão, muitas vezes “o primogénito sente a perda de estatuto na família”, alerta a psicóloga. Ana D’Orey concorda: “Ser filho mais velho não é fácil. O Salvador é o mais dependente de nós emocionalmente, a sua segurança passa por estar junto dos pais. Por muito que tentemos compensá-lo e por mais mimo que lhe possamos dar, sentimos que falhamos sempre. Foi filho único durante dois anos, e de repente a atenção passa a ser partilhada.”

Tanto os pais como os filhos passam por um conjunto de transformações, perdas e mudanças associadas ao que cada nascimento traz à família, “tanto nos aspetos basilares do dia-a-dia como no que respeita às relações afetivas”, acentua a psicóloga.

O facto de se hiper-responsabilizar os filhos mais velhos pode ser visto por dois prismas essenciais: “É fundamental que sinta que continua a ser criança, a ser cuidada, amada e protegida. O sentimento de segurança e afetos recebidos é importante, até para não sentirem que os mesmos foram canalizados unicamente para o irmão. A perceção de inversão de papéis não deve ser absoluta e é fundamental não passar de portador de cuidados a ‘cuidador’, de criança a adulto em miniatura”, avisa a psicóloga. “Por outro lado, a atribuição de tarefas de alguma responsabilidade ao filho mais velho também pode ser facilitadora da aceitação do irmão que acabou de nascer. E é natural que o primogénito tente obter mais recorrentemente a atenção dos pais, sobretudo da mãe, demonstrando independência, autonomia e competências acrescidas”, reforça.

Ao contrário do irmão Vicente, um verdadeiro “espírito livre que seria capaz de sobreviver na selva”, como a mãe o define, Salvador acabou por sofrer sempre que a mãe teve de estar internada na maternidade para o nascimento dos irmãos, momento definido por Magda Oliveira como “a primeira grande rotura com a presença da mãe”.

Perante um novo nascimento, há ajustes a ser feitos. “Embora pertençam à mesma família, cada criança irá viver a sua realidade familiar e vai ser influenciada pelas relações de um modo muito pessoal”, explica a especialista. “Os próprios pais também tendem a responder de modo distinto à presença de cada filho, em função da fase de vida em que nasceram, características da criança, exigências e recursos disponíveis, entre outros.”

Em cada nascimento, Ana D’Orey viveu um contexto familiar e profissional diferente. Quando Salvador nasceu, tinha 25 anos, um emprego estável com ordenado fixo, mais cansaço e uma procura de descoberta como mãe de primeira viagem.

“Na vez do Vicente, tinha menos dinheiro mas muito mais disponibilidade porque estava em casa, e no caso da Maria estava a trabalhar como efetiva numa empresa mas tinha os outros dois filhos para cuidar. Nós adequamos a educação à criança, mas o contexto e a disponibilidade física e mental são completamente distintos.”

Há um ano, Ana optou por apostar numa carreira de mediadora imobiliária para conseguir gerir os seus horários de acordo com as exigências familiares, sentindo-se hoje mais consciente, aos 33 anos e com três filhos, do que aos 25 e com “apenas” um. “O poder da responsabilidade apoderou-se de mim com o nascimento da Maria”, conta.

Com mais filhos, os recursos tornam-se mais limitados, bem como a energia disponível para cada um deles. Com a intensificação das exigências parentais, conforme vão nascendo irmãos, é menor o tempo para cada um deles, podendo instalar-se fadiga, alterações de humor, maior irritabilidade.

A logística nem sempre é fácil, a quantidade de informação, livros, blogues e guias pela parentalidade positiva aumentam a cada dia, as pressões são mais do que muitas, mas as respostas estão em cada casa, em cada família. “Se conseguir que todos eles tenham uma infância feliz, está tudo certo”, assegura Ana D’Orey. Mesmo parecendo simples, não será esse o maior, e contínuo, desafio dos pais?