Fome, frio e futebol. Viagem às origens de Héctor Herrera

Texto de Pedro Cardoso, no México

Os mortos estão a chegar e Dona Estela anda numa correria. É 2 de novembro e a tarde já vai a meio. No pátio da casa térrea na Rua do Ébano, em Rosarito, a avó materna de Héctor Herrera decora o altar do “Día de Muertos”. “Hoje vamos receber o meu marido, a minha mãe e a minha sogra.”

No meio da azáfama, com um ramalhete das rituais flores de “cempasúchil” na mão, Dona Estela toma um respiro, apoia-se na esquina do altar e recorda o neto: “É o bebé da família, o mais novo dos três irmãos. Era tremendo, não parava de jogar futebol aí mesmo nas ruas. Às vezes atirava as bolas contra as portas de madeira dos vizinhos, que se vinham queixar comigo: ‘Controla esse miúdo!’”.

“Com o coração nas mãos”, Dona Estela acompanhou um percurso que, entre 2002 e 2013, converteu o “rapazito magro como um pau” das praias de Rosarito num dos mais famosos internacionais mexicanos e capitão do F. C. Porto. “Quase ninguém conhece as dificuldades que ele passou. Quando jogou noutros lados, às vezes deitava-se sem comer, só com um copo de água. Dizia-me: ‘Não é fácil, nana (assim me chama), mas tenho de dar-lhe duro’.”

“Quase ninguém conhece as dificuldades que ele [Herrera] passou. Quando jogou noutros lados, às vezes deitava-se sem comer, só com um copo de água.” (Dona Estela, avó materna do jogador)

Uma das filhas de Dona Estela aparece com um enorme quadro com a fotografia do falecido avô de Héctor. Acomoda-o no centro do altar tom lilás. Estela contempla-o. “Quando o meu marido já estava doente, dizia muitas vezes ao Héctor que queria vê-lo na televisão. ‘Vais ver que sim, tata!’, respondia. Felizmente teve esse gosto antes de morrer.”

A comoção desperta-a. “Vais desculpar-me muchacho, mas deixei a comida no fogo.” A urgência justifica-se. Ao anoitecer, quando o avô do capitão do F. C. Porto “cruzar o caminho”, terá à espera um banquete com as comidas preferidas: banana frita com arroz, um típico mole mexicano, e um champurrado, bebida quente à base de milho triturado.

Antes de entrar na cozinha, ainda envia um abraço a Héctor – “Para quando o vires lá em Portugal” – e a típica bênção das matriarcas mexicanas na hora da despedida. Com bom humor. “Que Deus te acompanhe e proteja, meu neto. E cuida das tuas patas, porque disso vives, das patadas.”

“Que Deus te acompanhe e proteja, meu neto. E cuida das tuas patas, porque disso vives, das patadas.” (Dona Estela)

Com os olhos no “Teto”
Da casa da avó Estela, no centro de Rosarito, seguimos a estrada que vai para norte, em direção a Tijuana. Cinco quilómetros depois, encontramos à esquerda Aztlán, o bairro que se ondula em colinas com vista para o Pacífico. Nesta terra árida à beira-mar, o ar é húmido e o sol é fogo sobre as nossas cabeças.

Numa velha loja de ferragens no fundo do bairro, Francisco Meraz ajeita o chapéu, penteia o bigode negro e solta a memória: “Héctor? Sim, conheci-o quando ele tinha uns sete ou oito anos e andava na escola primária. Todos lhe chamavam ‘Teto’ e era um miúdo como todos os outros, passava a vida a jogar futebol aí nas ruas e no campo da escola Plan Libertador”.

Ao lado, um velho senhor interrompe: “Ele era o Teto da Dona Cande, sua mãe, fina pessoa. Vendia donuts no bairro para ajudar a família”. “Sempre que passava por aqui gritava ‘Olá Don Toño!’ e aumentava o preço dos bolos porque sabia que eu não os ia comprar”, ri-se. Com voz rouca e olhos baços, António Meraz continua: “Eu agora estou cego e já não o posso ver na televisão, só mesmo ouvir, mas fico muito contente em saber que está bem. E olha que muita gente não acredita que ele saiu daqui do bairro”.

As “patadas”, como diria a avó Estela, nas ruas empoeiradas de Aztlán foram determinantes. Aos 12 anos, “Teto” já representava a seleção da cidade natal, Tijuana, onde nasceu a 19 de agosto de 1990. Em 2002, num torneio local, o jogo do miúdo franzino chamou a atenção de Angel González “Coca”, diretor de recrutamento do Pachuca, que ali estava como olheiro. “Apesar de ser muito magro, tinha muito boa técnica. Jogava por fora, fintava e centrava muito bem, era bastante inteligente e talentoso”, explica.

“Apesar de ser muito magro, tinha muito boa técnica. Jogava por fora, fintava e centrava muito bem, era bastante inteligente e talentoso”. (Angel González “Coca”, diretor de recrutamento do Pachuca)

Com a bênção da mãe, Héctor entra de imediato no Centro de Formação do Pachuca, em Rosarito. Nos quatro anos seguintes, o treinador Martin Dominguez, que acompanhara Coca no momento da “descoberta”, dedica-se a polir Herrera em pontos muito concretos – “Mudança de ritmo, jogo com os dois pés, posição de médio-ofensivo, médio-defensivo e box-to-box”, revela-nos.

Em 2006, o jovem futebolista viaja com a equipa de Rosarito ao torneio anual dos centros de formação do Pachuca. Mas um dia antes, conta Martin, “andava de rebelde e decidiu pintar uma risca amarela no meio da cabeça, de cima a baixo”. Em Pachuca, o look causa sensação. “Durante o chamado Jogo das Estrelas, um dos olheiros comenta a certa altura: ‘Vejam como joga esse rapaz do Martín!’ ‘Qual?’ ‘Esse aí de Rosarito, esse zorro ou zorrillo (raposa ou doninha), ou sabe lá Deus o que é’.” A gargalhada foi geral, conta Martín, e Héctor nunca mais se livrou das alcunhas.

O futebolista classifica-se entre os 50 melhores jogadores, mas não passa à segunda fase. Impressionado com as qualidades do “miúdo”, Gerson Calixto anota um nome: Héctor Miguel Herrera López “Zorrillo”. Na altura, o técnico trabalhava num dos Centros de Formação da Cidade do México e procurava jogadores para um novo projeto. Poucos dias depois, Héctor recebe o convite para integrar as forças básicas (escalões de formação) da equipa Atlante, na capital do país, sob o comando de Gerson Calixto. Com o impulso de Coca e de Martín Dominguez, aceita deixar para trás as praias de Rosarito rumo à capital.

A casa na montanha
Nos limites da Cidade do México, a delegação Magdalena Contreras é um sobe e desce de ladeiras. A povoação está rodeada por um anel de montanhas com pinheiros e vegetação verde-escura. As ruas cinzentas, íngremes e estreitas, têm um ar musgoso. A neblina fria infiltra-se nos ossos.

Foi a este lado bucólico da Cidade do México (antítese absoluta de Rosarito) que Héctor chegou a 25 de agosto de 2006 para jogar no Atlante. “Trazia umas calças de fato de treino azuis, vinha com a sua mochilita e estava muito calado”, descreve Gerson.

Nos dois anos e meio seguintes, o futebolista viveria com os colegas da equipa na casa da família Calixto Jiménez, acomodada para os receber. “Não era uma casa clube como as das grandes equipas, mas estávamos cómodos e éramos tratados como parte da família”, recorda Rolando Yépez, uma das estrelas desse grupo de dez jogadores.

Entre os jovens, “a camaradagem era enorme”, conta Yépez. E Héctor? “Era um desastre!”, brinca o ex-colega Josué Álvarez: “Sempre muito divertido, com piadas e comentários fora do lugar”. “Às vezes íamos na rua e do nada metia o pescoço para dentro, enrugava a testa e fingia que era um velhote”, descreve Yépez entre risadas. No entanto, a verdadeira sensação eram os espetáculos de breakdance.

“Às vezes íamos na rua e do nada metia o pescoço para dentro, enrugava a testa e fingia que era um velhote” ( Josué Álvarez, ex-colega de Héctor)

“Quando estávamos todos reunidos punha-se no meio da sala a dar voltas e, na verdade, era muito bom nisso”, assegura Andrea Calixto, filha de Gerson. Os jovens treinavam de manhã. “À tarde, quando não jogava, o Héctor levava-me às vezes a mim e ao meu irmão ao circo ou ao cinema”, lembra Andrea. “Eu tinha uns sete anos e ele era o único que me ia buscar à escola. Ainda hoje os meus amigos de primária me perguntam: o Herrera da seleção não era o rapaz que te carregava a mochila?”

Veados e Arrozeiros
O plano de treino dos dez jogadores das forças básicas do Atlante era rigoroso. “Levava-os a correr a 2 700 metros de altitude, no bosque dos Dínamos, para que ganhassem resistência, velocidade e força”, conta-nos o treinador Gerson. Pouco a pouco, o franzino Héctor foi melhorando a estrutura física. Uma ficha de 2006 mostra a evolução: “Técnica: excelente; Físico: muito bom; Psicológico: bom; Tática: muito bom; Observações: é inteligente, a sua qualidade técnica é impressionante. Falta-lhe mais atitude e muito caráter. É ‘morno’. Jogador de primeira divisão”.

A temporada corre bem e o grupo ganha notoriedade em Magdalena Contreras. É dessa época o primeiro autógrafo de Héctor Herrera. No pequeno restaurante de tacos “La Güera”, perto da antiga Casa Clube, Angélica Cabañas relembra: “Um dia quando cá vieram comer, meti-me com eles e perguntei-lhes se já sabiam como iam assinar quando fossem famosos. Puseram-se a pensar, a pensar, e um por um lá foram fazendo uns rabiscos num papelito que acabei por perder”.

A esperança de fama e os planos de continuidade no futebol quase vieram abaixo quando, no final da temporada, o clube anuncia a mudança da sede para Cancún. Para dar a volta ao assunto, o empresário Gonzalo Vazquez, que apoiava financeiramente o grupo, traz a 3.ª Divisão para Magdalena Contreras. Nome do novo clube: Veados de Contreras.

A 19 de agosto de 2007, Héctor e os companheiros estreiam-se como jogadores profissionais num encontro com o Texcoco. No final do campeonato, os Veados arrebatam um surpreendente segundo lugar. Gonzalo Vazquez decide então elevar a fasquia e compra os “Arrozeiros de Cuautla”, uma equipa da 2.ª Divisão no estado de Morelos. Héctor é um dos jogadores eleitos para subir de escalão. Ora como avançado, ora como médio-ofensivo, ganha rapidamente a titularidade. “Ele estava cada vez mais dinâmico, mais rápido, evoluía de forma impressionante”, avalia Gerson.

Herrera “estava cada vez mais dinâmico, mais rápido, evoluía de forma impressionante”. (Gerson, treinador)

Por esta altura, o Pachuca põe o Zorro de Rosarito de novo na mira. Chama-o para fazer provas que passa sem problemas e convida-o para, finalmente, integrar as equipas dos Tuzos (alcunha do clube). “Vai ‘cabrón’, tu estás muito bem, é hora de sonhar mais alto”, empurra-o Gerson, seguro de que a formação desses dois anos e meio o tinha “preparado para dar o salto”.

Em julho de 2008, Héctor despede-se do Cuautla e dos amigos de Magdalena Contreras. Na “taquería” da esquina, Amada Cabañas, La Güera, reconhece “o grande sacrifício de quem, muitas vezes, passou fome e frio, mas que nunca deixou de lutar”. Ao despedir-se de Héctor, encomenda-o aos santos, anjos e arcanjos que se alinham no fundo do balcão e que, assegura, “continuam a interceder por ele”.

Treinador Gerson

O meteorito Herrera
O que parecia ser um regresso pela porta grande ao Pachuca rapidamente se tornou numa desilusão. Antes de jogar nas grandes ligas, a vida ainda tinha outra prova – muito mais dura – para apresentar a Herrera. Quando saiu do Cuautla, em 2008, Héctor integrou a 2.ª Divisão dos sub-20 do Pachuca. No entanto, “apesar de ter todas as qualidades futebolísticas necessárias, não o punham a jogar”, testemunha Martin Dominguez. “A situação causou algum desconforto entre o corpo técnico e a Direção”, diz, e uma inevitável frustração no jogador.

O braço-de-ferro durou dois anos. Em 2010, Héctor recebe a notícia de que o Pachuca o vai emprestar ao Tampico-Madero, um clube da 2.ª Divisão no Estado de Tamaulipas. Começava um enorme pesadelo. “O clube estava em bancarrota e não nos pagava. Estávamos alojados numa casa clube, mas quase não tínhamos comida.” Testemunho duro de Eduardo Fernández, companheiro de Héctor nesses tempos.

Emílio Cuervo era fotógrafo da equipa e amigo dos jogadores. “No inverno, nem água quente tinham, vinham a minha casa tomar banho”, realça. “A situação era tão crítica que durante muito tempo só tinham um equipamento. De tão gasto, o tecido picava a pele.”

Desportivamente, as coisas também não corriam de feição. No final da época, uma dívida do Tampico-Madero à Federação Mexicana de Futebol desqualificou automaticamente o clube do apuramento de campeão. “Tínhamos os pontos para qualificar-nos sem problema, foi muito frustrante para nós como jogadores”, lamenta Eduardo Fernández.

Héctor esperava então o primeiro filho. Sem dinheiro e perspetivas, estava prestes a abandonar o futebol. “Pensava em ir para os Estados Unidos, onde vivia o pai, para trabalhar como bracero [trabalhador agrícola pago por jornada]”, confidencia-nos o amigo do futebolista Pony Alvarado. Mas a sorte do jogador dos dragões estava para dar uma volta espetacular.

Enquanto pensava em arrumar as chuteiras, o Pachuca contratava Efrain Flores para novo treinador da equipa principal. Num “triangular” que organizou entre as equipas sub-17, sub-20 e a segunda equipa de Tampico, Efrain redescobriu Héctor. “Gostei bastante das suas condições técnicas, como se posicionava taticamente, da leitura de jogo e versatilidade”, enumera. “Quando lhe perguntei por que queria vir para a 1.ª Divisão, respondeu-me: ‘Sou de um lugar muito longe de Pachuca e se não me levar para a equipa principal, vou deixar o futebol’. Vi a sua convicção e não hesitei – levei-o comigo para a equipa principal.”

“Quando lhe perguntei por que queria vir para a 1.ª Divisão, respondeu-me: ‘Sou de um lugar muito longe de Pachuca e se não me levar para a equipa principal, vou deixar o futebol'”, recorda Efrain Flores, treinador.

Cruzar o charco
A “excelente temporada” de Héctor na 1.ª Divisão valeu-lhe o surpreendente Balão de Ouro de melhor novato do Torneio de Abertura de 2011. Era apenas o início. Em junho de 2012, integra a seleção sub-23 que ganha o prestigiado Torneio de Toulon, em França, e é eleito melhor jogador da competição. Um mês depois, alinha pela seleção olímpica e arrebata a medalha de ouro dos Jogos de Londres. Em outubro, José Manuel de la Torre chama-o pela primeira vez à seleção principal, que nunca mais abandonou e da qual é hoje um dos indiscutíveis.

O rasto do meteorito Herrera chamou a atenção do futebol europeu. “Um dia estava em Pachuca e ele pediu-me para esperá-lo no final de um treino”, conta o amigo Eduardo Fernández. “Quando nos íamos encontrar, vieram três pessoas e levaram-no para os escritórios do clube. Mais tarde, o Héctor ligou-me: ‘Desculpa não ter ido, é que parece que me querem levar para Portugal, amigo’.”

Nessa época, o argentino Gabriel Caballero era o treinador dos Tuzos. “Numa reunião com a Direção, disseram-me que o F. C. Porto estava interessado nele. Para mim, sempre vai ser mais importante o futuro de um jogador, e dei luz verde”, conta-nos. “Ligaram-me depois diretamente do F. C. Porto a perguntar se o Héctor tinha qualidades para estar na Liga Portuguesa. Respondi que sim, que havia talvez alguns pontos a melhorar, mas que, sem dúvida, daria um contributo excecional.”

Em junho de 2013, o F. C. Porto anuncia oficialmente a contratação do médio. Como se diz no México, para quem atravessa o Atlântico rumo à Europa, era a hora de Héctor “cruzar o charco”.

O resto é a história…que a comunicação social passou a relatar e que a avó Estela avisa, desde já, querer conhecer de perto. Quando dá por terminada a conversa no pátio da casa na Rua do Ébano, em Rosarito, na altura do “obrigado e até logo”, a enérgica senhora pousa novamente as flores amarelas de “cempasúchil” no chão e envia um recado ao neto.

Com história incluída: “Quando ele era criança, chegava sempre aqui a casa com um bando de amigos para comer o meu caldo de carne de vaca. Pois bem, agora, está na hora de cobrar a fatura. Põe mesmo aí na tua revista que a ‘nana’ lhe diz que, por todo o caldo que lhe serviu, ele vai ter de lhe pagar um bilhete para visitá-lo no Porto. E que não se faça de despercebido”. Recado dado.