A catástrofe da generosidade a mais

Somos generosos e solidários perante a catástrofe, o que é bom. Mas nem sempre sabemos ajudar da melhor forma e isso cria um pesadelo logístico que pode prejudicar as operações no terreno. Aconteceu nos incêndios de Pedrógão Grande, aconteceu nas derrocadas da Madeira, acontece frequentemente por todo o mundo. É um problema tão recorrente que já tem nome: «segundo desastre».

A contagem de vítimas mortais a aumentar, o número de feridos a subir, aqueles que perderam a família, as casas e a fé com o seu desespero transmitido em direto, os abrigos locais a encherem-se de pessoas desalojadas, os incêndios ainda descontrolados. Este era o cenário ao início da noite de 17 de junho de 2017, quando estava em curso o mais mortífero incêndio florestal do país.

Entre o choque e a comoção profunda, o país mobilizou-se para ajudar. De tal forma que, no dia seguinte à noite, a então ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, surgiu perante as câmaras a agradecer a vaga de solidariedade, mas pedindo às pessoas para pararem de fazer chegar bens ao local e aos quartéis de bombeiros, uma vez que a quantidade era tanta que estava a criar «dificuldades logísticas».

No dia 19, foi a vez de Jaime Marta Soares, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, pedir a suspensão da entrega de bens alimentares e medicamentos, porque «todos os stocks estavam lotados».

Não foi ouvido. Duas semanas depois, apesar dos apelos, as equipas de reportagem no local continuaram a dar conta de gente que chegava em carrinhas carregadas, sobretudo com o que menos falta fazia: roupa. Muitos deixavam nas tendas o que levavam e eram depois convidados a ajudar de outra forma: levando os bens excedentes para associações e paróquias dos seus próprios concelhos, que precisassem.

A 5 de julho, no Jornal de Notícias, a notícia «Pedrógão Grande já não sabe o que fazer a tanta roupa» dava conta do excesso: «Um traje de Carnaval, um vestido de noiva, milhares de peças de roupa de criança, peluches, vestuário estragado e até um carregamento de 36 toneladas de bananas, para um concelho com quatro mil habitantes e onde a maioria tem mais de 60 anos. (…) Reciclagem ou envio para os PALOP são destinos prováveis do excesso.»

Se o destino foi este ou não, não conseguimos saber. Ao longo de dois meses e meio, apesar das dezenas de contactos com a Câmara Municipal de Pedrógão Grande e com o Gabinete Operacional de Recuperação e Reconstrução (GORR), ninguém se mostrou disponível para nos dizer o que chegou, que dificuldades criou, o que existe ainda
de excedente e qual o destino do que não foi doado. O assunto, nota-se bem, é tratado com pinças por quase todos os intervenientes.

O problema existe, mas não é fácil apontar o dedo a quem deu para dizer que algumas dádivas atrapalham mais do que ajudam. «Identifiquei claramente o excesso e a entropia que provoca. Constitui um sério problema que não tem merecido a devida atenção. Ainda impera a máxima de que toda a ajuda é bem-vinda», diz-nos um operacional que esteve em Pedrógão mas que prefere não ser identificado.

O nome que lhe dão é autoexplicativo: second disarter (segundo desastre)

«Sem prejuízo da mobilização de esforços da comunidade, que é positiva, tudo o que é excessivo, desorganizado e desenquadrado comporta mais efeitos negativos do que positivos.»

Por cá o fenómeno não tem dado muito que falar pela feliz circunstância de termos poucas catástrofes de grandes dimensões. Mas o flagelo é bem conhecido de todos os trabalhadores humanitários e de emergência pelo mundo fora. O nome que lhe dão é autoexplicativo: second disarter (segundo desastre).

Juanita Rilling é uma das pessoas que mais se têm esforçado a nível internacional para chamar a atenção para este problema. A especialista em resposta a catástrofes e ex-diretora do Center for International Disaster Information, da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID), é muito clara acerca dos efeitos das doações não solicitadas: «São um enorme problema. Obrigam ao desvio de recursos da ajuda de emergência para lidar com elas e, por vezes, têm como consequência um atraso na chegada de bens realmente essenciais aos sobreviventes das catástrofes.»

E deixa um exemplo: após o terramoto de 2010, no Haiti, na capital, Port-au-Prince, o pouco espaço do aeroporto estava tão cheio de aviões com paletes de doações de roupa e utensílios domésticos, que houve equipamento e pessoal de emergência das organizações humanitárias que viu os seus voos desviados para a vizinha República Dominicana. Tiveram depois de fazer o transporte por terra, o que resultou numa enorme despesa adicional e atraso na chegada de equipas de emergência.

«A melhor maneira de ajudar os sobreviventes de catástrofes é fazer doações em dinheiro às organizações que estão a trabalhar no terreno com as comunidades», defende a especialista.

«É isso que lhes permite ir ao encontro das necessidades, que nos primeiros dias mudam com frequência. Assim, as organizações estimulam a economia local ao comprarem junto aos locais de desastre, dão às pessoas coisas frescas, não enlatadas e, sobretudo, compram os bens necessários na quantidade e momento certos.» A isto chama-se logística.

Porque há aqui dois lados da história: o lado emocional – das pessoas que se sentem tocadas e querem ajudar – e o logístico – uma operação puramente racional que consiste em fazer chegar os produtos e equipamento certos ao local certo na quantidade e tempo certos. E a logística, já se vê, não se compadece com reações emocionais. «Chega muita coisa que não é necessária e tudo o que não é necessário atrapalha», diz Juanita Rilling.

A 15 de outubro, nos incêndios que atingiram Vouzela, Oliveira do Hospital e outras localidades da zona centro, o cenário de junho repetiu-se. O excesso e o desajuste esteve por todo o lado. A 21 de outubro, a Câmara Municipal de Mira pedia que não lhe fizessem chegar mais bens materiais, pelo menos até ser possível fazer uma triagem para verificar as necessidades.

A Câmara de Oliveira do Hospital publicou um apelo urgente: «Pedimos encarecidamente que não enviem mais vestuário para o Centro de Apoio» e relembrou a população de que podia fazer donativos através da conta solidária gerida pela câmara. No dia 24 foi a vez de o Município de Vouzela pedir a suspensão de donativos de produtos alimentares, roupa e calçado, informando que todas as necessidades estavam supridas. A 30 de outubro, a Câmara Municipal de Seia fazia igual apelo.

A nível mundial há muitos e bons exemplos do quão a generosidade sem critério pode ser, além de funesta, desconcertante. Em dezembro de 2012, quando vinte crianças foram mortas por um atirador na escola de Sandy Hook (EUA) poucos dias bastaram para um armazém ficar cheio com dezenas de milhares de peluches. Os voluntários perderam semanas e gastaram dinheiro precioso para se verem livres de todos eles.

Depois de um tornado em Oklahoma, um doador generoso enviou 28 camiões carregados de mobília. Os trabalhadores humanitários replicaram: que maravilha, mas será que podia esperar uns tempos? É que neste momento não há casas para colocar a mobília.

Juanita Rilling já viu de tudo a ser enviado para cenários de emergência, além da tríade roupa, comida enlatada e água: «Vestidos de gala, perucas, medicamentos para fertilidade, abóboras, comida para gatos, mistura de bolos, roupas para cães, bandeiras e um contentor cheio de bicicletas partidas e desmontadas, entre outras coisas. Nenhuma dessas doações foi solicitada por organizações humanitárias ou comunidades afetadas.»

Mas o maior dos dramas é mesmo a roupa, como bem ilustram as fotografias das praias de Banda Aceh depois do tsunami, em 2004. Toneladas de roupa enviada, não necessária, ficaram acumuladas na praia por falta de necessidade de capacidade de processamento e triagem de tudo. O resultado? Um grande, grande problema de saúde pública.

«As pessoas têm de saber ajudar. Pode parecer politicamente incorreto, mas há quem aproveite para fazer limpeza aos armários»
José Barbeito

Muitas vezes, como na Indonésia, os espaços planos e secos são poucos, o clima não pode ser controlado e chove, os locais de armazenagem são escassos e são usados para as coisas mais urgentes. Tudo o resto fica exposto à força dos elementos e a degradar-se, explica Juanita Rillings.

«Estas pilhas de coisas tornam-se um ninho de ratos e cobras e são um perigo para quem tem de lidar com elas. Mais: deitar tudo fora exige tempo e recursos, trabalhadores humanitários, maquinaria e dinheiro. Mais uma vez, recursos que estão a ser desviado da resposta de emergência que importa.»

Para José Manuel Barbeito, responsável pela Cáritas Diocesana do Funchal, nada disto é estranho. Esteve no terreno quando o temporal e as derrocadas na ilha da Madeira, em fevereiro de 2010, provocaram 43 mortos e 1200 desalojados e sabe desde então a complicação que a generosidade em excesso provoca.

A tragédia ocorreu na madrugada de dia 20 e, no dia 21, já ele estava a fazer o apelo, através dos órgãos regionais: não é necessária mais roupa, por favor, parem de enviar. Reforçou a mensagem nos dias 22 e 23.

«Mas as pessoas não quiseram ouvir, continuaram a fazer-nos chegar coisas que não eram necessárias. Foi um pesadelo logístico, ficaram cheios num instante os sete ou oito contentores disponíveis na zona alta da ilha, cedo deixaram de ser suficientes e a roupa teve se ser levada para diversos armazéns. Demorou-se imenso tempo.»

É significativo que, em vários casos, os pedidos de suspensão de envio de roupa e comida tenham acontecido menos de 24 horas após o alerta inicial

Além das pessoas da ilha, chegaram-lhes coisas por remessa aérea e marítima em quantidades incalculáveis. «Uma coisa imparável. Era roupa que, em cordão, dava várias voltas à ilha», conta com algum desespero na voz. Como as quantidades eram imensas, não conseguiam dar andamento à triagem e isso criou outro problema: quando abriam algumas caixas, viam que vinha lá dentro roupa misturada com alimentos perecíveis já estragados. O cheiro era nauseabundo, não se podia pegar em nada sem máscara e luvas.

«As pessoas têm de saber ajudar. E têm de ter zelo no que é dado: a roupa pode ser usada, mas tem de estar em condição e a roupa interior deve ser nova. Pode parecer politicamente incorreto, mas há que dizer a verdade: há quem aproveite para fazer limpeza aos armários. Até sacos com roupa interior usada e suja recebemos.»

Além do problema logístico, este excesso cria por vezes um posterior problema de credibilidade: deram a quem ficou sem nada, deram a quem não foi afetado mas precisava, ofereceram-na até a quem não precisava.

Mas já não havia quem aceitasse roupa e a única solução, anos depois, foi enviar a maioria para reciclagem. Houve quem ficasse escandalizado por se estar a deitar roupa fora. «As pessoas não ouvem os apelos para parar de dar, mas depois ouvem que há roupa que está a ir para reciclagem e sentem-se muito ofendidas.»

O problema nem sempre se limita ao local da tragédia. Nos incêndios de junho e outubro houve quem se deslocasse ao local, mas outros acorreram ao sítio que tinham mais à mão: os bombeiros locais.

«As pessoas acorreram os quartéis com águas, latas de feijão e esparguete. Mas nem todos os bombeiros tinham feito pedidos, não tinham por isso uma logística organizada para o efeito. Logo essas dádivas deixaram de ser uma vantagem para ser um problema. Os bens ficavam lá, mas depois o que se lhe faziam?», questiona Jorge Dias, chefe da divisão de comunicação e sensibilização da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC).

O responsável refere que os eventos de junho e outubro foram ímpares e que é compreensível este excesso de reação, muito emocional. Mas também alerta para os problemas que isto causa. De resto, é significativo que, em vários casos, os pedidos de suspensão de envio de roupa e comida tenham acontecido menos de 24 horas após o alerta inicial.

«Nesta fase ainda é cedo para se saber sequer o que é necessário», explica. «A Proteção Civil somos todos nós e faz sentido estar alerta e ser generoso. Mas também temos de educar a população no sentido de saber esperar e escutar. Em caso de necessidade, se esgotadas as reservas disponíveis, as entidades responsáveis fazem um apelo que indica quais os bens necessários e a forma de os fazer chegar. E aí as pessoas podem e devem ajudar.»

Ser solidário não é dar o que sobra, mas o que falta.