Escavavam as entranhas da terra, enchiam carros de mão nas escombreiras, conduziam vagonetas, lavavam o minério, transformavam a galena em lingotes de chumbo. Eram tempos duros, de miséria e de fome. As galerias, em Sever do Vouga, fecharam há 60 anos. Restam ruínas e recordações.
As mãos acompanham-lhe as palavras que sequenciam recordações umas atrás das outras, quase num só travo da respiração. António Anjos, 81 anos, não esquece os gestos mecânicos da lavagem do minério que saía das profundezas das minas do Braçal, em Sever do Vouga, da transformação da galena que tornava chumbo num forno de um edifício agora em ruínas.
Mal ali chega, à casa sem teto e sem portas, com uma escada íngreme que dava acesso à estrada onde uma camioneta vinha buscar os lingotes de chumbo que abastecia os camiões que a esperavam no cruzamento da Senhorinha, a memória estala e as mãos não param de replicar os movimentos de há 60 anos. Como se elas nunca tivessem feito outra coisa. “O forno era carregado lá em cima e punha-se um bocado de barro para tapá-lo”, recorda. “Tínhamos de gostar do trabalho, não havia outra coisa.”
António andou dentro e fora da terra. “Oito horas dentro das minas e era sempre de noite. Chorava muito, punham dinamite para abrir as galerias e o coração parecia que ia rebentar. Dez dinamites na mesma galeria, ficávamos às escuras. E até o nosso coração estourava.”
Fez quase de tudo. No início, andou nos campos das minas com uma enxada na mão a grassar mato, depois andou por todo o lado. Carregou e descarregou carros de mão e vagonetas que circulavam pelos túneis, lavou minério, esteve no forno. Trabalhava-se dia e noite, sete dias por semana, em três turnos das oito da manhã às quatro da tarde, das quatro da tarde à meia-noite e da meia-noite às oito da manhã, o período mais pesado.
Há uma frase que lhe salta à memória. “Triste sorte a do mineiro que anda no chão, se lhe cai uma barra em cima, já não precisa de caixão.” Em 1948, morreram seis mineiros afogados nas minas. Depois de um inverno rigoroso, o Rio Mau desviou-se do seu curso, derrubou uma galeria, inundou as minas. Os sinos das aldeias tocaram a anunciar a tragédia. “Quando morria alguém púnhamo-nos a cantar para esquecer”, desabafa António Anjos, que tinha 16 anos quando entrou no Braçal e ali ficou meia dúzia de anos, até ao fim.
“Triste sorte a do mineiro que anda no chão, se lhe cai uma barra em cima, já não precisa de caixão.” (António Anjos)
Aos 14 anos, Américo Martins, conhecido por Almirante por ter trocado Amarante por Almirante quando cantava ao desafio (e a alcunha ficou), chegava massa aos pedreiros e trolhas das minas. Andou pela serração de madeira a ajudar os carpinteiros até que se tornou o homem que descia os mineiros às entranhas da terra. Seis pisos, 120 metros de profundidade, uma campainha que soava em cada patamar. Duas pancadas para descer, três para subir. Tudo na cabeça, mãos nos guinchos para manobras delicadas.
“Descia as pessoas no elevador, às vezes iam seis, e pé no travão”, conta. Era um trabalho de responsabilidade, descer e subir homens, zelar pela sua segurança. João Vidal, engenheiro responsável pela mina, tinha confiança no trabalho de Américo, chegou a tratar da sua instrução quando soube que nunca tinha ido à escola.
Nove irmãos em casa, a freima de tomarem conta uns dos outros, não havia tempo nem dinheiro para estudar. Fez a terceira classe na escola das minas e depois a quarta porque o engenheiro achou que seria uma pena não acabar a primária. Tinha mais de 20 anos e ficou-lhe eternamente grato.
Hoje, aos 88, a memória não apaga aquele tempo. O poço Matias ainda ali está, tapado e sem a Santa Bárbara por perto. “O trabalho não era mau. Aquela meia hora para comer a bucha era um divertimento. Éramos novos, passávamos por cima de toda a folha, saíamos daqui e íamos para as eiras, para as desfolhadas, e era uma animação.”
Mas Almirante levava o trabalho a sério e nem no dia em que se casou, 24 de novembro de 1952, faltou. Entrou no turno da meia-noite. “E a minha pobre lá ficou, sozinha, com fome.” Chegou a ser encarregado dos fornos, andava no turno mais duro, da meia-noite às oito da manhã, ganhava três escudos por dia. A 22 de dezembro de 1958, ouviu o anúncio que as minas iam fechar no final desse ano. Houve tristeza só que a vida tinha de continuar. A consoada de Natal teve um sabor ligeiramente diferente. Pouco depois, Almirante emigrou para França, para a apanha da beterraba.
Vestido preto e avental branco na casa dos patrões
As minas do Braçal, a primeira concessão mineira registada no país, em agosto de 1836, é agora um amontoado de ruínas dispersas por uma floresta. Os poços por onde os homens desciam estão tapados, o forno é uma sombra do que foi, a central elétrica um esqueleto, a lavaria coberta de silvas. Restam paredes dos escritórios, das oficinas, da fundição, do posto médico.
As minas do Braçal, a primeira concessão mineira registada no país, em agosto de 1836, é agora um amontoado de ruínas dispersas por uma floresta.
A casa de João Vidal, que tocava piano e tinha muitos pássaros, que vivia a dois passos de um dos poços das minas, perdeu o teto e algumas paredes. No meio de um jardim, outrora frondoso e que não perdeu totalmente o ar da sua graça, está a casa dos patrões que vinham de Lisboa, vazia por dentro. As minas do Braçal, de onde saía chumbo para o estrangeiro, sobretudo para Inglaterra e Alemanha, tiveram altos e baixos. Os últimos 16 anos foram intensos, até 30 de dezembro de 1958. Depois calou-se e em 1972 a maquinaria foi vendida para a sucata, a peso, por 240 contos.
Há muito tempo que Etelvina Conceição, de 89 anos, não põe o pé no Braçal. “Deve estar tudo em ruínas, tudo desmazelado, não?” A pergunta sai-lhe com o coração pequenino e sem esperar uma resposta. “Fui lá há muito tempo e fiquei muito triste.” Dona Bina, como é conhecida, tem 89 anos, entrou nas minas aos 16 e ali ficou até pouco antes de casar, aos 24. Eram 20 minutos de caminho, a correr, por atalhos. Lavou minério, andou com carros de mão a transportar galena, fazia limpeza aos escritórios e ao posto médico, varria a central elétrica e foi empregada na casa dos patrões de vestido preto e avental branco. Arrumava os quartos, servia à mesa, esfregava o chão.
“Corria aquilo tudo de balde de mão, era assim que ganhava o meu pão, oito escudos por dia, era bem bom. E os patrões falavam-nos muito bem, com muito respeito, mesmo nós sendo pobres”, enaltece. Não havia tempo para parar, oito horas por dia, sempre que fazer.
“Corria aquilo tudo de balde de mão, era assim que ganhava o meu pão, oito escudos por dia, era bem bom.” (Etelvina Conceição)
“Na lavaria, as mesas sacudiam o minério, tirávamos o maceiro e íamos levá-lo ao sítio, havia sempre muita gente por todo o lado.” Chegaram a ser mais de 700 trabalhadores. “O Braçal era lindo e muito arranjadinho. O senhor engenheiro tinha um jardim, tudo era flores, tudo era branquinho, branquinho. Naquela altura, era muito bom e nada custava. Ali ninguém maltratava ninguém.”
Até que um dia, depois de ter estado doente da garganta, a mãe resolveu que nunca mais iria trabalhar para as minas. “O último dia foi num sábado. Deixei tudo arrumadinho e vim-me embora.” Abel, o marido, continuou lá, como eletricista. Entrou ainda rapazito e ficou até ao fecho das minas.
Rubi Martins Pereira, de 90 anos, também trabalhou na casa dos patrões. Rubi e Bina eram amigas. Andou pela lavaria, com os maceiros carregados de minério. “Em cima ficava o grande, em baixo o miudinho. As pedras iam para o lixo”, frisa. E não esquece o movimento que por ali andava. “Trabalhava-se por turnos e de todo o lado vinham homens. Naquele tempo, o que se ganhava já era bom, valia mais do que agora.”
O minério saía das profundezas e Rubi não gostava de pensar como era a vida daqueles homens que andam debaixo da terra à procura do minério. “Andavam só com um gasómetro, devia ser esquisito lá em baixo, a água debaixo dos pés,” comenta. O seu trabalho era bem diferente, de avental passado a ferro, dentro de casa. “O trabalho era limpinho e de responsabilidade.”
À volta, tudo aproveitado. Na enorme mancha florestal, as terras eram cultivadas. Os bois não tinham descanso, as mulheres apanhavam ervas. E os jardins eram sítios lindos de se ver. “Eram a coisa mais rica do mundo.”
Rubi ficou pouco tempo nas minas. Teve de ir para casa para tomar conta dos irmãos, depois da morte da mãe. Voltava às minas para levar o almoço ao pai, que estava na carpintaria, e a dois irmãos, que andavam debaixo da terra. “Tive pena de vir embora.” Restam-lhe recordações entranhadas na pele, gravadas na alma, para sempre à tona das minas.