Anna Wintour: a toda-poderosa do mundo da moda estará de saída?

Texto Maria João Martins* | Fotografias Reuters

Nova Iorque, anos 1970: numa entrevista de emprego, uma jovem jornalista britânica esconde a timidez sob a espessa franja, mas não as desmesuradas ambições. À sua frente está a todo­‑poderosa diretora da Vogue norte­‑americana, Grace Mirabella, que lhe pergunta: «O que quer fazer no futuro?» E Anna Wintour (a jovem é ela) não hesita: «Quero o seu emprego.»

Escusado será dizer que, ante tal excesso de sinceridade, a entrevista ficou por ali. Mas, como se verá adiante, a candidata, rapariga de ideias fixas, há­ de remar contra ventos e marés para obter o que, enredada nas voltas da vida, nunca deixará de pretender. Anos depois, chegará, de facto, à Vogue, atirando Grace Mirabella para a galeria das editoras passadas.

Graças à sua personalidade esfíngica, assertiva (alguns dirão ditatorial) e implacavelmente exigente, ganhou o título de «Nuclear Wintour».

Poderia ser um belo enredo para uma série de TV, mas é mais do que isso. Nascida a 3 de novembro de 1949, Anna Wintour celebra neste ano três décadas consecutivas como editora-chefe da Vogue americana, cargo que, desde 2013, acumula com o de diretora artística da Condé Nast (grupo editorial que publica a revista).

Condecorada em 2017 pela Rainha Isabel II pelos seus serviços em prol da moda e do jornalismo, é muito provável que a agora Dame Anne Wintour sinta que está na altura de encerrar um longo capítulo, em que, doravante, toda a vitória será redundante.

Com o seu penteado imutável (o chamado bob) e grandes óculos de sol, quase sempre Chanel, Wintour tornou­‑se uma instituição em todo o mundo da moda, amplamente aclamada pela extraordinária intuição das tendências seguintes e pelo apoio aos jovens designers em quem decide apostar. Graças à sua personalidade esfíngica, assertiva (alguns dirão ditatorial) e implacavelmente exigente, ganhou o título de «Nuclear Wintour». Ou «Rainha de Gelo», a quem um só olhar bastaria para transformar em estátua qualquer mortal.

Filha mais velha de Charles Wintour (1917­‑1999), editor do London Evening Standard, corre­‑lhe o jornalismo nas veias (o irmão Patrick é editor da secção de Diplomacia no jornal The Guardian). Leitora ávida, em adolescente, de revistas míticas como Seventeen ou Petticoat, o seu interesse pela moda revelar­‑se­‑ia anos mais tarde nas suas primeiras experiências jornalísticas. Aos 20 anos ingressou na redação da Harper’s & Queen, mas soube­‑lhe a pouco.

Em 1988, sentar­‑se­‑ia, finalmente, na sua «cadeira de sonho», aquela que queria tirar a Grace Mirabella desde que se lembrava. Onde permanece, incontestada e temida, enquanto bem entender.

A meio da década de 1970 mudou­‑se para Nova Iorque, para trabalhar na Harper’s Bazaar. Acusada de ser «demasiada europeia» pela direção da revista, regressou a Londres para trabalhar na Vogue UK, onde rapidamente chegaria à edição. Pouco tempo depois voltaria a atravessar o Atlântico para trabalhar na House & Garden. Em 1988, sentar­‑se­‑ia, finalmente, na sua «cadeira de sonho», aquela que queria tirar a Grace Mirabella desde que se lembrava. Onde permanece, incontestada e temida, enquanto bem entender.

Não foi a evolução na continuidade; foi logo a revolução total. A primeira capa deu o mote do que se seguiria: em novembro de 1988, a Vogue US apresentava, na capa, a modelo Michaela Berçu, de 19 anos, nuns jeans desbotados de cinquenta dólares e uma camisola de alta-costura de Christian Lacroix. Era a primeira vez que um modelo de capa da Vogue usava jeans.

No seu primeiro September issue (em 1989) colocou Naomi Campbell na capa: «Pura e simplesmente ninguém podia acreditar que íamos pôr uma modelo negra na capa da maior e mais importante edição do ano.», disse Wintour ao El Pais.

Não se ficou por aí. Numa entrevista recente ao El País, Wintour recorda o sururu causado quando, no seu primeiro September issue (em 1989) colocou Naomi Campbell na capa: «Pura e simplesmente ninguém podia acreditar que íamos pôr uma modelo negra na capa da maior e mais importante edição do ano.»

Dez anos depois, voltaria a quebrar tabus. Na capa da Vogue aparecia a primeira­‑dama dos Estados Unidos, Hillary Clinton. Estava­‑se então no auge do escândalo causado pela ligação do presidente Bill Clinton com Monica Lewinsky. A mensagem de apoio da revista à mulher enganada não poderia ser mais clara.

Reza a lenda que, durante a produção do filme O Diabo Veste Prada, Wintour foi ameaçando personalidades proeminentes da moda sobre o que lhes aconteceria caso fizessem uma aparição como guest stars, ainda que por segundos.

Apesar das polémicas (ou por causa delas), a verdade é que, sob a direção de Wintour, a revista voltou a ter o impacto social conseguido sob a batuta da mítica Diana Vreeland e que, depois dela, perdera para a Elle e a Harper’s Bazaar.

Em 2003, a publicação do romance O Diabo Veste Prada, de Lauren Weisberger, antiga assistente de Wintour na Vogue, caiu como uma bomba no mundo da moda.

Reza a lenda da suposta maldade da editora-chefe que, durante a produção do filme homónimo, Wintour foi ameaçando personalidades proeminentes da moda sobre o que lhes aconteceria caso fizessem uma aparição como guest stars, ainda que por segundos: doravante, seriam boicotadas pela Vogue. Verdade ou não, o facto é que muitos são os mencionados mas só Valentino Garavani ousou dar a cara. Tinha mais de 40 anos de carreira, as ameaças verídicas ou supostas não podiam sequer beliscá­‑lo.

Reza a história que Anna Wintour terá «desaconselhado» vivamente criadores e manequins de fazerem participações especiais no filme O Diabo Veste Prada, em que é interpretada por Meryl Streep.

Sem concessões, Wintour faz exatamente o que quer e é esse querer que dita quem é quem no mundo da moda. O criador Karl Lagerfeld afirma: «Ela é honesta. Diz o que pensa. Sim é sim e não é mesmo não.»

Por sua vez, François­‑Henri Pinault (diretor da empresa-mãe que dirige a Gucci) considera que, ao contrário do que reza a lenda negra da jornalista, Wintour não é agressiva, apenas afirmativa. Di­‑lo, apesar de não ter gostado da maior parte das coisas desagradáveis que ela proferiu quando a Gucci deixou sair o talentoso criador norte­‑americano Tom Ford.

O impacto de Anna Wintour é tal que, ante o rumor persistente da sua retirada após o fecho do próximo September issue, o The New York Times se interroga sobre o que acontecerá depois disso. «Provavelmente o caos»

Como mostra o documentário de R.J. Cutler, The September Issue (de 2009) à opinião de Wintour ficaram a dever a fortuna muitos dos que hoje são considerados os grandes nomes da moda: para além de Ford, John Galliano, Manolo Blahnik, Stella McCartney, Alexander McQueen, Carolina Herrera, Christopher Kane (de quem confessou ser grande fã durante a Semana da Moda de Londres, em 2011), a dupla de joalheiros Thakoon for Thasaki e (como não podia deixar de ser)… Prada.

O seu impacto é tal que, ante o rumor persistente da sua retirada após o fecho do próximo September issue, o The New York Times se interroga sobre o que acontecerá depois disso. «Provavelmente o caos», já que, nos últimos trinta anos, o quem é quem no setor depende totalmente de um código de mensagens cifradas que ela transmite através de convites (ou da ausência deles), presenças, ausências ou um simples franzir de lábios.

Condecorada em 2017 pela rainha Isabel II pelos seus serviços em prol da moda e do jornalismo, a agora Dame Anne Wintour sentirá talvez que está na altura de encerrar um longo capítulo, em que, doravante, toda a vitória será redundante.

Embora a Condé Nast se tenha apressado a desmentir a notícia da reforma da sua editora mais carismática, a própria não o fez. Na verdade, Wintour, que está a um ano de cumprir os 70, é a única das três líderes históricas das edições internacionais da Vogue ainda em atividade depois da morte, em 2016, de Franca Sozanni, que dirigia a Vogue Italia desde 1988 (curiosamente, a filha Bee vai casar-se em julho próximo com o filho de Franca, Francesco Carrozzini), e da retirada de Alexandra Schulman, sua homóloga na Vogue britânica entre 1992 e 2017.

Condecorada em 2017 pela rainha Isabel II pelos seus serviços em prol da moda e do jornalismo, a agora Dame Anne Wintour sentirá talvez que está na altura de encerrar um longo capítulo, em que, doravante, toda a vitória será redundante.

Apesar da rapidez das mudanças na época em que vivemos, apesar da natureza volátil do setor, é bem possível que a sombra do julgamento de Wintour paire, ainda durante muito tempo, na primeira fila de todas as semanas de moda realmente importantes. Ela estará omnipresente em todas as conversas, em todos os silêncios e em muitas opções de público, marcas e criadores.

O closet pessoal

O guarda­‑roupa de Wintour é examinado e imitado por milhares de observadores, na imprensa e fora dela. No início da sua carreira, ela não era um «diabo» vestido de Prada, mas uma rapariga endiabrada que gostava de experimentar, como mostram as suas fotografias sobreviventes das décadas de 1970 e 80.

Ao assumir funções de editora-chefe na Vogue, mudou para tailleurs Chanel com minissaias, que continuou a usar durante as duas gravidezes, abrindo as saias ligeiramente no cós. À medida que os anos passavam, a sua imagem foi­‑se tornando mais austera, mas nunca dispensando uma pitada de irreverência.

Imutáveis são o penteado, a preferência pelas saias (não usa calças em público há mais de uma década) e o colar curto, muito junto ao pescoço.

Ao tweed Chanel foi acrescentando os vestidos de linhas quase sempre direitas by Oscar de La Renta, Prada, Gucci ou os sapatos Manolo Blahnik. Imutáveis só o penteado, a preferência pelas saias (não usa calças em público há mais de uma década) e o colar curto, muito junto ao pescoço.

Ao contrário de Franca Sozzani, Wintour parece ter uma total aversão ao negro. Numa cena de The September Issue, vemos Grace Coddington, a histórica diretora criativa da Vogue (de 1988 a 2016), hesitar em propor um blusão de pele negra devido às opções cromáticas da editora-chefe. «Podia ser despedida por isto», diz, meio a brincar.

* Jornalista, escritora e professora de História Social da Moda, cadeira que leciona atualmente na Universidade Carlos III de Madrid. Tem publicadas várias obras de ficção e na área da história cultural e das mentalidades como O Paraíso Triste ­– A Vida Quotidiana em Lisboa na II Guerra Mundial ou História da Criança em Portugal.