A alta-costura mundial já é “made in Portugal”

Texto de Erika Nunes | Fotos: Artur Machado/Global Imagens

Emília Nunes tinha 14 anos quando integrou a equipa de 20 pessoas com que começou a Calvelex, em 1986. “A minha mãe ficou viúva, aos 44 anos, com sete filhos menores. Tive de vir trabalhar, para ajudar”, recorda, sem pesar, porque acabou por descobrir que gosta do que faz e nunca pensou mudar.

Ao cabo de duas décadas a produzir vestuário na empresa de Lousada, Emília viu a empresa crescer, tornar-se uma família, mesmo se hoje emprega mais de 700 pessoas. “Nunca pensei ir embora, nem nas alturas mais complicadas. Agora, fico até me reformar. Gosto do ambiente, dos patrões, do trabalho cada vez mais complexo”, assegura, enquanto recorta, com cuidado, um tecido de forma a alinhar o padrão nos bolsos de umas calças de gama média-alta que hão de aparecer “nos desfiles da televisão ou nas revistas de moda”.

Um par de calças com aquela qualidade sairá da fábrica a custar cerca de 30 euros, que se multiplicam pela comissão de 2.5 do distribuidor para serem vendidas às lojas por 75 euros e que lhe adicionam nova comissão, em média, de 2.6, para chegar ao consumidor a 195 euros, com IVA. As calças que passam pelas mãos de Emília Nunes destinam-se a mercados europeus exigentes que encontram hoje na indústria portuguesa os parceiros de que necessitam.

Emília Nunes sente-se motivada pela complexidade crescente das peças produzidas na Calvelex

Há pouco mais de uma década, Portugal ainda lutava para conseguir produzir e vender peças de vestuário muito baratas. A maioria das confeções produzia t-shirts de malha de algodão, fatos de treino, camisas de homem e vestuário de malha para bebé. Os novos concorrentes asiáticos, como a China, que aderiram à Organização Mundial do Comércio para inundar o mercado com produtos quase de borla, deixaram o setor à beira do abismo em Portugal.

Fecharam milhares de empresas e, entre 2005 e 2011, desapareceu 34% do emprego. Sobreviveram as unidades que investiram em tecnologia, recursos humanos qualificados e na internacionalização. Portugal deixou de ser um país “simpático e baratinho” para a manufatura e passou a figurar como especialista em produtos inovadores de alta qualidade a preço médio. As exportações têm vindo a aumentar desde 2014, tendo crescido 3% em valor no ano passado, com um peso de 13,3% do total das vendas ao exterior.

“Se não fossem as máquinas, não conseguíamos produzir o que produzimos hoje, dada a falta de mão-de-obra”, explica Nuno Sousa, diretor de internacionalização da Flor da Moda, a empresa familiar de Barcelos que produz para marcas como a Moschino, Karl Lagerfeld ou Ana Sousa.

“Se tivesse mais pessoal, aumentava a produção em 20-25%, era só deixar de recusar trabalho dos clientes que temos”, adianta. Além das costureiras que qualquer confeção emprega, hoje em dia as exportadoras investem em programadores e técnicos de informática, reforçam os departamentos de controle de qualidade e têm equipas que vistoriam cada peça produzida ao detalhe.

“As escolas têm feito um trabalho importante na formação, mas ainda não chega. Vamos ter de criar escolas com maior componente prática e dar atratividade ao setor que, há uns anos, passou por maus momentos. Hoje já não é assim”, garante Nuno Sousa. E exemplifica: “Faltam quadros técnicos e intermédios que podem ganhar entre 2000 a 2500 euros de salário”.

Nuno Sousa diz que a formação de recursos humanos é a chave para manter o crescimento do vestuário de gama alta

Com o aumento contínuo das exportações, a preocupação do gestor é “o que será feito” quando atingirem o limite máximo de produção se não ampliarem a massa humana. “Não podemos perder a oportunidade quando o consumidor não quer dar 200 euros por uma peça made in China, mas não se importa de fazê-lo se for made in Portugal”, sublinha.

A formação tornou-se constante e em qualquer empresa os funcionários rodam entre postos de trabalho, para dominarem várias técnicas e serem polivalentes. “A idade não importa, já temos admitido pessoas mais velhas, sem experiência, mas que são novas para se reformarem. Ensinamos tudo. Têm é de começar nos serviços mais fáceis, a esticar tecido ou a separar resíduos”, exemplifica César Araújo, um dos administradores da Calvelex.

A separação de resíduos não é assunto menor para as empresas que, num passado mais longínquo, tinham má fama no tema poluição. A produção sustentável é incontornável para os industriais e para as grandes marcas que encomendam a Portugal, implicando, inclusive, auditorias minuciosas.

No caso da Calvelex, uma das maiores exportadoras portuguesas para marcas de terceiros (“private label”), afastada a produção massificada ao preço mais baixo e conquistados os clientes exigentes que verificam cada pormenor, o futuro pode implicar “ter de desautomatizar”. Não é opção voltar a um passado de produção única, em que se calibravam as máquinas para produzir milhares de modelos sempre iguais e se espremiam os postos de trabalho para que pesassem o mínimo possível no preço final.

César Araújo defende que Portugal deve promover a indústria da moda com inclusão de vários setores em parceria

Na sala a que César Araújo chama de “Orquestra” são mais de 150 as mulheres sentadas à máquina ou de pé no ferro de engomar que “trabalham em harmonia para as peças de vários modelos começarem do zero, numa ponta, e acabarem prontas, na outra”. Cada exemplar será inspecionado várias vezes e acabado individualmente, antes de seguir para expedição, sendo o percurso acompanhado pelos códigos de barras de cada componente, tratados pelo software informático produzido na empresa. O “private label” vale 20 milhões de euros anuais à Calvelex e ainda é a fatia mais importante do negócio.

“A nossa política é receber três clientes por dia, cinco dias por semana”, adianta César Araújo. Longe vão os tempos em que “saía de carro para visitar os clientes pela Europa fora, em que Portugal estava numa ponta do Mundo”. Hoje, são os clientes que procuram a Calvelex, selecionam modelos desenvolvidos pelos portugueses arquivados na “maior biblioteca de ‘fitting’ do Mundo”, escolhem entre os 20 mil tecidos guardados na tecidoteca que guarda amostras há 16 anos e acrescentam alguns dos 75 mil acessórios disponíveis. Em cerca de seis semanas, têm o produto final etiquetado e pronto a vender.

“Pedem-nos em seis semanas o que antes demorava seis meses. Portugal consegue matérias-primas em duas semanas e consegue produzir em quatro a cinco semanas”, resume César Araújo. “Há 30 anos, Portugal estava isolado num canto da Europa. Hoje, está no centro do Mundo e pode ser um polo logístico de valor acrescentado”, acrescenta.

A concorrência está sempre atenta. Por isso, inovar é imperativo para manter Portugal no topo. “Temos de continuar a crescer porque há países, como a Ucrânia, a Roménia ou a Polónia, que estão agora no ponto em que estivemos há dez anos e vão chegar rapidamente ao nosso patamar”, avisa Nuno Sousa.

Na Flor da Moda, há peças que incluem aromaterapia, que mudam de cor conforme a luz ou que administram tratamentos de pele. “Para nós, o custo de produção é quase o mesmo, mas as marcas conseguem ganhar muito mais com o valor acrescentado”, refere. Além de fornecerem às empresas propostas de modelos e soluções de tecidos inovadores, ainda fazem a gestão de preço final para o cliente. Algo que a concorrência da Turquia ou de Marrocos não consegue.

Portugal começa a estar numa posição confortável no vestuário, mas não pode cruzar os braços, defende César Araújo, enquanto presidente da Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confeção (ANIVEC). Segundo as contas da associação, as exportações de “private label” valem 90% da produção nacional e deverão crescer: “Os clientes da América do Norte que querem transformar as suas marcas em marcas globais encontram em Portugal um fornecedor estável e de confiança”.

É hora de o setor apostar numa nova estratégia que assegure o futuro. Itália trilhou esse caminho há muitas décadas e, antes dela, a França afirmou-se como centro mundial da moda, do glamour e do luxo. Portugal pode bem ser, diz César Araújo, “a nata da nata”.

Se já produzimos para as mais reputadas marcas globais – Burberry, Hugo Boss, Massimo Dutti, Givenchy, Louis Vuitton, Dior, Nina Ricci, Moschino, Karl Lagerfeld, Victoria Beckham, Tommy Hilfinger, Carolina Herrera, Marc Jacobs, Gucci, Zara, para citar apenas as mais famosas – que alimentam os sonhos e esvaziam as carteiras de milhares de milhões dos novos endinheirados da China, por exemplo, por que não revelar ao Mundo que as peças são não só confecionadas mas também concebidas em Portugal?