Rui Cardoso Martins

A cave ocupada

Até ao dia em que, como explica a ciência e o cinema, as máquinas destroem a humanidade porque já são mais espertas do que nós, e não estão para nos aturar, e nem sequer são nossas mas criaturas de si mesmas. Enquanto o futuro não chega, no entanto, a vida de Carlos tem uma prioridade que é a maldita cave. De fato azul, gravata, cabelo espesso em crânio largo, Carlos começou com drama:

– Neste momento, estou impedido de viver na minha morada…

O impedimento está ligado aos encontros funestos com o inquilino de baixo, num crescendo de dias, meses:

– Vê lá se queres que eu vá buscar a pistola e resolva as coisas como resolvi com os que fizeram as obras nas traseiras…

A guerra começou quando Carlos descobriu que a mãe, proprietária do prédio, há muitos anos tinha alugado o rés-do-chão, alargado o contrato à cave e ao jardim. Foi na cave que o vizinho fez o quarto do filho, com porta que dá para o átrio do prédio e uma outra porta interna para o apartamento. O filho cresceu, fez-se comissário de bordo, cavalheiro dos ares, mas sempre a viver na cave.

Um dia, da janela, Carlos gritou: “Filhos da puta, aldrabões, vigaristas, ciganos de merda.” Concluiu o inquérito: “Provocaram no assistente medo, vergonha, perturbação emocional, humilhação”. Carlos foi acusado de ameaças e injúrias agravadas.

– A primeira coisa é que é mentira. Nunca falei de pistolas, nunca tive pistolas na minha vida! Eu sou proprietário do prédio, não sou filho da senhoria, sou proprietário do prédio!

Carlos não escapou à febre imobiliária, às novas possibilidades dos donos de Lisboa.

– Esse senhor João só apareceu uma vez em que eu estava a falar com o pai dele e lhe disse que ia accionar os meios da Justiça para acabar com a ocupação dos espaços, nomeadamente a cave. Ele apresentou-me a mão e não lha apertei, não queria conhecer mais pessoas daquela família.

De repente, o problema gigante da ordem de despejo (quem não passou, quem não conhece alguém que passou por isso no último ano?) surgiu invertido nas palavras de Carlos:

– As pessoas obviamente que não nos querem lá, e fazem coisas como bater nos tectos. Não voltei a viver lá.

A juíza abriu muito os olhos:

– Mas o senhor é que é o dono do prédio. O que o senhor está a dizer é que isto foi uma coisa construída para o tirar de lá…

– Exactamente. Consegui no ano passado, finalmente, tirar a minha mãe de lá.

Para o senhorio Carlos, são os inquilinos a fazer guerra:

– Fizeram uma encenação a fingir que saem de lá, com cheques passados, e à última hora voltaram para trás, não sabendo se saíam. Eles levaram a minha mãe a assinar um contrato muito estranho… mas o contrato existe.

O dia em que ameaçou com a pistola estava de cócoras a apanhar “uns brinquedos que nem sabia que eram brinquedos deles”. Chegou João: “O que é que que o senhor está aqui a fazer?” E ele: “Estou a arrumar coisas na minha cave”.

João entrou no tribunal, camisa de lenhador e comissário de bordo.

– Estava com o meu pai e a minha prima. Íamos ver o Sporting e estava frio. Íamos buscar um casaco. Estava este senhor com a porta aberta a atirar coisas lá para dentro… caixotes. Parecia uma discussão que eu não estava a ter. Eu só queria conversar. Eu apresentei-me: eu sou o filho de… mas ele não me estendeu a mão e começou a gritar “Não, ciganos de merda, filhos da puta!” Fiquei mesmo em estado de choque. Foi sempre a subir. E depois fala na arma.

Uma das frases mais curiosas foi “ciganos de merda, não criem raízes”, parecendo que Carlos queria transformar a família de João em nómadas. E é nisso que tantos portugueses de Lisboa e do Porto se fizeram, um bando de nómadas à procura de casa, arrancados da raiz por um braço mecânico.