Texto de Paulo Farinha, em Bruxelas e Copenhaga | Fotografias de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens, em Bruxelas e Copenhaga
Margrethe Vestager, a comissária europeia da Concorrência, tem 1,78m de altura, pernas compridas e um ritmo difícil de acompanhar quando acelera. Os dez minutos que leva da Praça do Cubo, onde está alojada, à Alfândega, passando pelo Cais da Estiva, Rua da Reboleira, Rua Nova da Alfândega e Miragaia, são uma boa metáfora da forma de estar da dinamarquesa na vida pública: ou se acompanha a velocidade dela ou se fica para trás.
Margrethe está no Porto para participar na conferência anual da Rede Internacional de Concorrência e não se quer atrasar para as reuniões bilaterais à porta fechada agendadas com delegações do México, Japão, EUA e Portugal.
Além do dinamarquês e do inglês, fala francês, arranha alemão, percebe algumas coisas de sueco e norueguês, mas quando tem de aplicar a poderosa legislação comunitária em matéria de concorrência, baseia-se na linguagem jurídica e financeira que um exército de novecentos advogados, economistas e técnicos de várias áreas desenvolve em Bruxelas enquanto passam pilhas de documentação a pente fino.
«Todas as empresas que infringirem as regras serão descobertas. É bom que saibam isso. se quiserem fazer negócios na Europa, têm de seguir as leis europeias.»
Nessa noite de 10 de maio deste ano, num jantar de gala no Palácio da Bolsa, perante seiscentos representantes de reguladores nacionais, organizações internacionais e sociedades de advogados de 120 países, a comissária vai lembrar isso mesmo: as regras são iguais para todos, grandes ou pequenos.
E as empresas têm de sabem o que lhes acontece se não cumprirem a lei da concorrência em espaço europeu. «Todos os negócios que infringirem as regras serão descobertos. É bom que saibam isso.» A voz é doce mas o tom é duro. «Se infringirem a lei, nós vamos descobrir.»
Foi o que aconteceu com a Google, multada em 2,4 mil milhões de euros por abuso da posição dominante no mercado. Ou o Facebook, que forneceu informações falsas quando comprou a WhatsApp e por isso terá de pagar uma coima de 110 milhões de euros. Ou a Intel, multada em 1,06 mil milhões de euros (em 2009, durante o mandato da holandesa Neelie Kroes), também por abuso de posição dominante. Ou a Apple, que tem de devolver 13 mil milhões de euros ao estado irlandês por impostos não cobrados. Ou a Amazon, que tem de devolver 250 milhões ao Luxemburgo. O mesmo país a que a Fiat tem de devolver vinte a trinta milhões. Tanto quanto a Starbucks tem de devolver à Holanda por benefícios fiscais ilegais. Entretanto, a McDonald’s e a Gazprom continuam sob investigação.
Outro ponto que Vestager gosta de reforçar nos muitos discursos que faz e nos contactos com a imprensa é a importância de manter o público informado sobre o trabalho que desenvolvem – e sobre as pessoas que levam a cabo esse trabalho.
Essa é, aliás, uma das prioridades do Presidente da Comissão Europeia, o luxemburguês Jean Claude Juncker. Por essa razão, no dia seguinte, depois de uma corrida matinal junto ao Douro, de uma entrevista para o semanário Expresso e outra para a Notícias Magazine, Vestager terá ainda tempo para um encontro aberto ao público com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, para responder a perguntas que queiram fazer-lhe sobre política e orientações europeias. Não basta sê-lo, é preciso parecê-lo. E mostrá-lo. E esta Europa está empenhada nisso. Margrethe também.
Quatro meses depois, no 27.º piso do luxuoso The Hotel, no Boulevard de Waterloo, com uma vista fantástica sobre Bruxelas, o discurso afina pelo mesmo diapasão. A convite do European Policy Centre, um importante think tank para assuntos europeus sediado na capital belga, Vestager fala para 150 jornalistas, representantes de instituições europeias e mundiais, lobbystas e membros do corpo diplomático que ali foram para a ouvir num breakfast briefing.
Na ementa, além de café e croissants, está também a política de concorrência da União Europeia, o papel regulador e fiscalizador da Comissão e o que esta está disposta a fazer para defender os interesses de 500 milhões de consumidores. A mesma mensagem, mas adaptada a outra audiência. E, no final, as perguntas sobre os mesmos temas que lhe granjearam a fama de durona: Google, Amazon, Apple, Gazprom, etc…
«O tipo de política que estamos habituados a fazer não pode ter lugar aqui”, diz Vestager. «Ou aplicamos a lei ou fazemos política. As duas coisas é que não.»
No final daquele pequeno-almoço ninguém na sala, a não ser a própria, sabia ainda que a Scania tinha sido também apanhada no esquema de fixação de preços que envolve outros fabricantes de camiões como a MAN, Volvo/Renault, Daimler, Iveco e DAF. A revelação seria feita no dia seguinte: por não ter colaborado na investigação, a marca sueca terá de pagar 880 milhões de euros, elevando assim para 3,8 mil milhões de euros o valor da maior multa aplicada pela Comissão a um cartel.
A par da cartelização e do abuso da posição dominante, as fusões e as ajudas estatais são as outras grandes áreas sobre as quais a poderosa Direção Geral de Concorrência se debruça. Até agora nenhuma empresa portuguesa foi arrolada nas investigações da Comissão (que se saiba), mas a equipa de Vestager foi chamada a pronunciar-se sobre o Banif, Novo Banco e Caixa Geral de Depósitos – os 4.160 milhões de euros injetados pelo Estado no ano passado para recapitalizar o banco público só foram possíveis porque isso não foi considerado ajuda estatal.
Boa parte das investigações que culminaram em coimas aplicadas pela comissão começaram durante o mandato do antecessor, o espanhol Joaquín Almunia, mas há um estilo Vestager a que ninguém fica indiferente.
A comissão Juncker – de que Margrethe faz parte, juntamente com o português Carlos Moedas – tomou posse no final de 2014 e desde então a dinamarquesa já conseguiu irritar muita gente. Nomeadamente algumas das maiores empresas dos EUA a operar na Europa, que a acusam de perseguição e de apenas querer mostrar serviço.
Uma das bases do poder de Vestager é a independência das decisões políticas. Lidando com temas que dependem de fiscalização e aplicação da lei, a concorrência não tem (nem pode ter) margem para negociações políticas, o que significa que muitas decisões tomadas não carecem de autorização prévia do colégio de comissários. «O tipo de política que nós, políticos estamos habituados a fazer não pode ter lugar aqui”, diz ela. «Ou aplicamos a lei – que tem de ser neutral – ou fazemos política. As duas coisas é que não.»
O certo é que, graças a ela e ao seu estilo, um portfólio que habitualmente não é muito falado pela opinião pública saltou para as bocas do mundo. E, de cada vez que Vestager vem à sala de imprensa do edifício Berlaymont, sede da Comissão Europeia, com aquele sorriso de quem tem tudo sob controlo, anunciar uma nova coima ou processo de investigação sobre uma grande empresa, o tema merece destaque nos noticiários. E vem acompanhado de uma mensagem subliminar que Margrethe veste como uma segunda pele: a Europa não tem medo de ninguém.
Enquanto a UE se debate com desafios que nunca pensou enfrentar – como o Brexit e a Catalunha – Vestager representa uma ideia de Europa unida.
Claro que, para garantir isso, para trás ficaram meses (ou anos) de trabalho, investigação, audições, entrevistas. Exímia negociadora, direta nas palavras, Margrethe gosta pouco de pisar ramo verde e debaixo daquele ar descontraído está uma mulher que dificilmente é apanhada em falso. Por isso prepara-se muito bem para as reuniões e para as conferências de imprensa em que anuncia novos processos ou multas. «Até termos uma decisão, não temos uma decisão», já respondeu mais do que uma vez a jornalistas.
Enquanto a união se debate com desafios que nunca pensou enfrentar – o Brexit é o maior deles todos, agora a Catalunha, o resultados das eleições na Alemanha, o medo do que poderia ter acontecido em França, etc. – Vestager representa uma ideia de Europa unida – e sobretudo, respeitada e temida.
Europeísta convicta, defensora de um braço musculado na fiscalização das regras estabelecidas, é muito hábil a comunicar. A dar explicações. Usar as palavras certas, no tom certo, no momento certo. É uma das coisas em que marca a diferença: não se limita a aplicar avultadas multas e ordenar processos de investigação a empresas gigantes de que não tem medo, ela faz questão de explicar a forma como o fez. E porque o fez.
«A Margrethe junta várias formas de inteligência», diz o comissário da Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas. «Inteligência analítica e inteligência emocional. E excelente capacidade de comunicar o que para ela é óbvio, conseguindo explicar isso de forma muito simples.»
Durante mais de um ano, a dinamarquesa e o português sentaram-se lado a lado à mesa do colégio de comissários, por causa da idade de ambos (estão entre os mais novos da equipa de Juncker: ele com 47, ela com 49 anos). Por vezes têm de reunir para discutir questões de ajudas de estado a empresas de tecnologia, mas entretanto tornaram-se amigos e conhecem as respectivas famílias.
Foi Moedas que a fotografou, em outubro de 2014, no Parlamento Europeu em Estrasburgo, quando ela tirou uma laranja da mala e, em plena sessão plenária, começou a descascá-la com uma faca. Com a mesma naturalidade com que, em algumas reuniões do colégio de comissários, pega nas agulhas e no novelo de lã e começa a tricotar. Aprendeu a fazê-lo com a avó, quando era criança, e tomou-lhe o gosto de fazer coisas com as próprias mãos – faz camisolas para ela e pequenos elefantes para oferecer a crianças.
Na Dinamarca, antes de ir para Bruxelas, era conhecida como a Rainha do Twitter, tal a frequência com que recorria à rede social. E continua a fazê-lo.
Também nestas pequenas coisas, Margrethe não é como os outros detentores de cargos públicos e gosta de romper com algum cinzentismo e distância que caracterizam a classe política. Ou, pelo menos, a dinamarquesa de cabelo curto tenta projetar essa imagem. Em grande medida, consegue fazê-lo. Uma das principais diferenças está justamente na forma como comunica.
Na Dinamarca, antes de ir para Bruxelas, era conhecida como a Rainha do Twitter, tal a frequência com que recorria à rede social. E continua a fazê-lo: partilha momentos do dia, dá conta de eventos onde está presente e até é capaz de tirar uma fotografia de três pares de pés femininos e escrever «Muito trabalho para fazer em Bruxelas, mas ainda resta um pouco de verão nas unhas dos pés». E depois, claro, partilhá-la. Uma comissária europeia a mostrar os dedos dos pés? Coisa rara essa. E continua a fotografar jornalistas antes de conferências de imprensa. «Aquela é a minha perspetiva, o meu ponto de vista. Gosto de partilhar isso com o público. Mostrar o que eu vejo, da minha posição privilegiada.»
E é precisamente para falar disso, do que vê a partir da sua posição privilegiada, mas também para explicar, uma vez mais o que faz a autoridade da concorrência e prestar contas aos cidadãos, que, horas depois de falar em inglês para lobbystas, jornalistas e diplomatas, fala na língua materna para compatriotas seus da Igreja Dinamarquesa de Bruxelas.
Não é um evento religioso, antes um acontecimento social e cultural da comunidade dinamarquesa local («não é todos os dias que se recebe uma comissária europeia, e logo a Margrethe», dizia uma das participantes uns minutos antes), mas o facto de ter lugar numa igreja dá-lhe outro cunho. Vestager está entre os seus. Literalmente. Não só porque conhece algumas destas 150 pessoas, mas também porque conhece bem esta realidade. Em 1998 foi ministra dos assuntos eclesiásticos e da educação – foi nessa condição que visitou Lisboa pela segunda vez, quando veio à Expo ’98 (a primeira tinha sido num Interrail que a tinha trazido a Portugal e Espanha, com 18 anos).
Num país onde a igreja não está separada do Estado, a filha de pastores luteranos – que acredita em Deus e reza de vez em quando, mas se tivesse um lema seria «confia em Deus, teme a Igreja» – teve aí a primeira experiência de responsabilidade governativa. «Seja o que for que resolvamos fazer na vida, devemos envolver-nos. Aprendi isso com os meus pais.»
Hans, 72 anos, já está reformado das responsabilidades religiosas e Bodil, um ano mais nova, tem uma loja de equipamento eletrónico em Ølgod, na península da Jutlândia, onde Margrethe e os três irmãos mais novos cresceram. Mas continuam a ser uma referência na comunidade. Foram também membros do Radikale Venstre, o Partido Social Liberal a que Margrethe pertence, fundado em 1905, mas esta subiu bem mais alto na estrutura: até ao topo.
A aventura política começou aos 21 anos, ainda antes de acabar o curso de economia na Universidade de Copenhaga – até aí as disciplinas preferidas eram o dinamarquês e a matemática. Naquele ano de 1989 a mãe não se quis candidatar novamente e a jovem Margrethe substituiu a progenitora nas listas do partido. Queria experimentar.
Geringonça à dinamarquesa: «a política na Dinamarca baseia-se muito na ideia de entendimento e compromisso. Os eleitores acreditam que é das ideias de uns e outros que nascem as melhores decisões.»
«Era totalmente seguro e era preciso triplicar ou quadriplicar o número de votos para ser eleita», recorda hoje. Surpresa: com o tempo acabou por consegui-lo. Ocupou alguns cargos de relevância, aos 30 chegou a ministra, aos 33 foi eleita deputada e aos 39 alcançou a liderança dos liberais. O resultado que o partido obteve nas eleições de 2011 e os acordos que fez à direita e à esquerda levaram-na novamente ao governo, mas desta vez com a pasta da economia. Margrethe queria as finanças, Helle Thorning-Schmidt, líder dos social democratas e futura primeira-ministra não cedeu nisso. Cedeu noutra coisa: Vestager tornou-se vice-primeira-ministra.
A extraordinária capacidade de negociação de Margrethe levou-a longe, mas a política à dinamarquesa forneceu o palco para isso. O Radikale Venstre pouco tem de radical e a «esquerda» no nome [«Venstre»] é suficientemente ampla para fazer alianças com partidos de diferentes espetros. Os social liberais sempre se posicionaram ao centro, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, e sempre fizerem alianças. Sempre foi um partido de apoio a coligações e soluções parlamentares – geringonças são coisas naturais em Copenhaga. «A política dinamarquesa baseia-se muito na ideia de entendimento e compromisso. Os eleitores acreditam que é das ideias de uns e outros que nascem as melhores decisões. Mas ninguém leva a maioria. E depois têm de se entender.»
Em 2007, quando assumiu a presidência do Radikale Venstre, o partido mais pró-Europa da Dinamarca, Margrethe não era a pessoa mais amada pela imprensa. Mas era boa a comunicar. E tornou-se ainda melhor. Focou-se no essencial. Mais assertiva, mais direta. E, seguindo a tradição do partido que liderava, e a que os pais já tinham pertencido, foi negociando.
Em poucos anos tornou-se uma das mais carismáticas figuras políticas do país, tendo conseguido aprovar algumas medidas complicadas, como um duro pacote de poupança na segurança social que incluía a redução do número de anos do subsídio de desemprego. A fama que alcançou nesses anos foi tal que até serviu de inspiração à personagem principal da série de televisão Borgen [ver caixa].
A série baseou-se na mulher real, mas a mulher real também tirou partido da série. A prova disso é que, além do que faz em Bruxelas – e de fazer as grandes empresas internacionais porem-se em sentido quando ouvem o seu nome – há uma geração de jovens dinamarqueses que a venera e muitos referem com orgulho não contido o facto de ela «até ter inspirado uma série de TV».
A série Borgen baseou-se em Vestager. E ela tirou partido disso. além de ter grandes empresas internacionais em sentido quando ouvem o seu nome, há uma geração de jovens dinamarqueses que a venera.
No início de setembro, nos relvados de Frederiksberg, em Copenhaga, a Cimeira da Juventude é um bom exemplo disso. Debaixo de um capacete cinzento e uma chuva miudinha, com impermeáveis, galochas e no meio de muita lama, dezenas de jovens entre os 14 e os 18 anos aguardam para ouvir a comissária europeia falar sobre o faz em Bruxelas e a importância de ter as gerações mais novas envolvidas no projeto europeu. O primeiro-ministro Lars Løkke Rasmussen já por lá passou. A ex-ministra da cultura Jytte Hilden anda por ali. Mas, naquela manhã, é por Margrethe que aqueles miúdos vão.
E é novamente a capacidade de comunicação e de adaptação do discurso dela a fazer magia. Também tem (muita) lama nos pés, também tem o cabelo molhado, também tem um impermeável que cobre alguma coisa mas não tapa tudo. Mas consegue mantê-los lá. Não são especialistas em finanças corporativas nem advogados nem representantes do FMI. São miúdos do ensino secundário e estão debaixo de chuva para ouvir Margrethe Vestager.
Primeiro no palco principal, depois na tenda da Europa. Ela responde a todas as perguntas. As do moderador e as dos estudantes. Nomeadamente Natalie, Jasmin, Sameer ou Alfred, alunos do décimo ano que estão a fazer um trabalho de grupo para a disciplina de Estudos Sociais. Têm todos 16 anos, nasceram na Dinamarca, mas os três primeiros são filhos de pais libaneses, iraquianos e paquistaneses. «Somos parte disto e queremos saber o que se passa», diz Jasmin. «E Margrethe é a nossa grande heroína na Europa», diz sobre a mulher que o jornal Berlingske considerou «Dinamarquesa do Ano 2016».
Ella, a filha mais nova de Margrethe Vestager, tem 14 anos, a idade de muitos daqueles rapazes e raparigas que andam por ali com lama até às canelas. É normal que ela saiba falar para eles. Mas, nos últimos tempos, não terá sido com essa filha que Margrethe passou mais tempo. Rebecca, de 18 anos, que por estes dias já terá iniciado o curso de Ciência Política no Reino Unido, viveu com a mãe em Bruxelas durante um ano, depois do regresso a Copenhaga da irmã mais nova com o pai, Thomas Steen Jensen, professor de matemática, com quem Margrethe casou aos 26 anos,. A mais velha, Maria, com 21 anos, estuda medicina em Copenhaga.
Agora Margrethe vai viver sozinha – e já prometeu a Rebecca que vai cozinhar todos os dias, «porque não é saudável comprar sempre comida feita» – mas quando a filha estava com ela, saia de casa pelas 8h30, regressava pelas 19h00 e poucas coisas lhe davam mais prazer do que deixar o trabalho à porta e verem televisão as duas.
O que gosta mesmo, ao fim de um dia a discutir multas de milhares de milhões de euros, é ver qualquer coisa que não obrigue a pensar muito. Preferência? Say Yes to the Dress, a série norte-americana sobre vestidos de noiva.
Viram muitos episódios de Gilmore Girls, já perdeu a conta às vezes que viu West Wing e garante que não gosta de House of Cards: «aquela não é a minha forma de ver a política». Mas o que gosta mesmo, ao fim de um dia a discutir multas de milhares de milhões de euros, é ver qualquer coisa que não obrigue a pensar muito. Preferência? Say Yes to the Dress, a série norte-americana sobre uma loja de vestidos de noiva.
No gabinete da comissária, no décimo piso do edifício Berlaymont, um móvel junto à entrada tem 46 molduras. Todas de membros da família. Até o cão, Karlo, lá está. Não há fotografias de apertos de mão a políticos. E, se houvesse, teriam de ir para outro local (embora a verdadeira admiração de Vestager por outros políticos se reduza apenas a dois nomes: Nelson Mandela, o histórico líder sul-africano, e Madeleine Albright, ex-secretária de estado norte americana).
«As minhas filhas e o meu marido queriam que a mãe e a mulher fosse para casa. Que a pessoa que passeia o cão fosse para casa. Para que lhes servia uma política?»
A família tem um papel essencial na vida da comissária, mas ela sabe – e sente – o quão complicada pode ser essa gestão. O assunto, não sendo tabu, é abordado com delicadeza. «Não vou partilhar a reação da minha família à minha decisão de vir para Bruxelas», diz, mas acrescenta que, com os anos, foi encontrando forma de lidar com isso.
Uma vez perguntaram-lhe se achava que era uma boa mãe, numa referência às exigências profissionais e ausências a que os cargos públicos que ocupou obrigavam. Hesitou um pouco e respondeu que era a única mãe que as filhas conheciam. Assunto arrumado.
Mas aquilo ficou a pairar na cabeça. «A minha vida profissional era muito exigente e isso refletia-se em casa. A minha família não queria uma política. As minhas filhas e o meu marido queriam que a mãe e a mulher fosse para casa. Que a pessoa que passeia o cão fosse para casa. Para que lhes servia uma política?» Agora, garante, já encontrou forma de lidar com isso.
A dinamarquesa é uma das nove mulheres no total de 28 do colégio de comissários. No universo de funcionários da Comissão Europeia, 35% dos cargos de gestão intermédia são ocupados por mulheres e o número desce para 32% quando se fala de diretoras ou equiparadas.
Feminista assumida, Vestager não se cansou ainda de responder a perguntas sobre o equilíbrio trabalho/casa, mas lamenta que não sejam também feitas a homens. «Não devíamos deixar de colocar essas questões a mulheres. Mas era mais justo se os homens também respondessem. Para poderem dar o ponto de vista deles. É uma pena que eles não tenham a oportunidade de falar de coisas diferentes também, como filhos ou o que fazem para lá do trabalho.»
Vestager tem ainda dois anos de mandato como comissária da Concorrência. Depois disso, não sabe o que vai fazer. Ou sabe mas não revela. Quando foi nomeada para a comissão, em 2004 (cargo para o qual se ofereceu, «era uma coisa que eu queria fazer»), a então primeira-ministra Helle Thorning-Schmidt tinha iniciado contactos para ser presidente do Conselho Europeu.
Entre as duas mulheres à frente do governo dinamarquês, apenas uma poderia sair para um cargo internacional – a outra deveria ficar a aguentar o forte em Copenhaga. Não tendo Halle conseguido os apoios para a nomeação, avançou Vestager. E deixou de trabalhar para os 5,6 milhões de dinamarqueses e passou a prestar contas a 510 milhões de pessoas da Europa a 28.
se o banco goldman sachs lhe oferecesse um cargo de topo, como aconteceu a durão barroso, aceitaria? «provavelmente não. não seria apropriado.»
Será que regressa a Copenhaga em 2019, onde tem a família e onde sente falta do mar mas não dos preços? Tentará outro cargo na Europa? A resposta sai-lhe cautelosa: «Só conseguimos um bom próximo trabalho se estivermos a cem por cento no trabalho atual, por isso não penso nisso.»
O puzzle político de Bruxelas faz-se de muitas peças e o facto de Margrethe ser de um partido político que, no Parlamento Europeu, pertence à família ALDE, dos liberais, sem a força do gigantes PPE nem dos Socialistas Europeus, pode não jogar a favor dela. Pelo menos não para o poderosíssimo cargo de Presidente da Comissão.
O facto de a Dinamarca não ter adotado o euro como moeda poderá também pesar. E presidente do Conselho Europeu? Ou Presidente do Banco Central Europeu? Também poderá assumir outra pasta, com mais relevo, no colégio de comissários. «Ela é muito experiente e sabe que na política não basta gostar ou não gostar», diz Elisabet Svane, editora de política do grupo de media Jysk Fynske Medier e autora do livro Hvid Røg, Sort Tårn [Fumo Branco, Torre Negra], (2014), um perfil de Vestager baseado nos tweets da então líder do Partido Social Liberal. «É um jogo de poder. E ela é uma excelente negociadora. Como ser humano não é cínica, mas como política é – quando é necessário.»
Uma coisa é certa: mesmo que tenha algum convite, não irá trabalhar para um desses gigantes a quem a Comissão tenha aplicado uma multa ou tenha investigado. «Não seria apropriado. Não podemos andar em portas giratórias, sair de uma posição de fiscalização e aplicação da lei para outra de lobby. E temos algumas regras quanto a isso, na Comissão» E se lhe oferecessem um lugar num grande banco? No Goldman Sachs, por exemplo, como aconteceu com o ex-presidente Durão Barroso? «É difícil de dizer. O lugar nunca me foi oferecido. Mas provavelmente eu diria não.»