Na semana passada, chegaram à caixa de mensagens da Notícias Magazine dezenas de cartas chamando a atenção de que tínhamos publicado uma receita de um hambúrguer vegan que continha ovos e queijo. Sem querer, tínhamos confundido veganismo com vegetarianismo. E, como o erro é bastante comum, decidimos perguntar à especialista Gabriela Oliveira, jornalista e autora da coleção de livros Receitas Vegetarianas, as diferenças entre uma coisa e outra. Acabámos por descobrir um mundo que não conhecíamos. Leia a entrevista.
Quais são as principais diferenças entre vegetarianismo e veganismo?
Costumo resumir da seguinte forma: um prato é vegetariano quando não tem peixe, carne ou subprodutos (como chouriço ou fiambre), mas pode conter ovos e laticínios (sendo nesse caso, em rigor, ovo-lacto-vegetariano). Já um prato vegan terá de ter somente ingredientes de origem vegetal, portanto, sem ovos, leite, queijo ou mel. Vegan é sinónimo de algo 100% vegetal, sem quaisquer produtos de origem animal na sua composição. Podemos dizer que um hambúrguer é vegan se só contiver ingredientes de origem vegetal, da mesma forma que uns sapatos podem ser classificados como vegan se não tiverem pele nem gorduras animais nas colas usadas para os fabricar.
O termo vegan não se aplica apenas à alimentação?
Não. Aplica-se à alimentação, mas também a outras áreas de consumo, como o calçado, o vestuário, os produtos de cosmética ou de uso doméstico (como os detergentes) – e há cada vez mais marcas que se especializam na produção de artigos sem ingredientes de origem animal e sem recurso aos habituais testes em animais, que são muito contestados, pelas questões éticas que envolvem. Por exemplo, na área do calçado, temos duas marcas nacionais vegan com sucesso internacional (a NAE e a Najha).
Ainda há algum desconhecimento em relação ao termo vegan, no nosso país. Por exemplo, os meus livros de culinária são de cozinha vegan, mas optei por chamar Cozinha Vegetariana, com o subtítulo 100% vegetal, por ser mais abrangente. E não são receitas de saladinhas, são aqueles pratos que à partida as pessoas não iriam associar a comida vegetariana, como bolos, hambúrgueres, pataniscas, gratinados, etc.
Até que ponto a alimentação vegan é uma arma de defesa dos direitos dos animais?Acredito que as escolhas que fazemos enquanto consumidores, atentos e conscientes, são armas poderosas que podem fazer mudar o mundo. Havendo procura, o mercado ajusta-se e isso já está a revelar-se nas prateleiras dos supermercados, nos novos restaurantes que surgem e nos menus com oferta vegan. A mudança já está em marcha e não é uma mera moda, é a tendência do futuro. No Ocidente, na área da alimentação, os segmentos de mercado em maior crescimento são precisamente o biológico e vegan. Veja-se o caso da oferta de leites vegetais, que em poucos anos mudou radicalmente em Portugal. O consumo de laticínios baixou e há um aumento enorme do consumo de leites de soja, de aveia, de arroz, etc.
Podemos encarar vegetarianismo e veganismo como causas políticas?
É considerada uma das grande causas do século XXI, a defesa dos direitos dos animais, que já mobiliza milhares em Portugal e vários milhões de pessoas em todo o mundo. À semelhança de outras grandes causas, como foram a abolição da escravatura, a igualdade racial e de género, agora levanta-se a problemática dos direitos dos animais, que nas últimas décadas têm sido explorados industrialmente de forma massiva, sem paralelo, sujeitos a todo o tipo de sofrimento e privados do seu habitat. Nunca se produziram e abateram tantos milhões de animais, nem o seu consumo foi tão elevado, com consequências para a saúde e o ambiente. Em Portugal, estamos a falar na ordem dos 175 milhões de frangos, 5 milhões de coelhos ou 5 milhões de porcos abatidos anualmente (segundo as estatísticas do INE, dados de 2015).
A alimentação integralmente vegan é indicada para toda a gente? Até para crianças?Sim, uma alimentação vegan ou 100% vegetariana pode ser adequada para qualquer pessoa e idade; desde que seja completa, variada e equilibrada, pode fornecer todos os nutrientes de que precisamos nas diferentes etapas ao longo da vida. Esta noção é corroborada pelas principais associações internacionais de dietética, como a American Dietetic Association, e também pela Direção Geral da Saúde em Portugal, que recentemente publicou três manuais sobre o assunto. É necessário ter alguns cuidados, na escolha dos alimentos (alguns, enriquecidos) e na forma como os combinamos, de forma a evitar possíveis carências, nomeadamente de ferro e de vitamina B12.
Em termos ambientais é sustentável pensar numa sociedade que não consuma produtos animais?
Esse é o caminho apontado para a sustentabilidade do planeta e para a redução, com maior impacto, da nossa pegada ecológica. Quando alguém reivindica o direito a comer os seus 110 quilos de carne por ano (essa é a média nacional), não pode esquecer que, para além das questões éticas, tal seria impossível extrapolar para a população mundial. Não existem recursos suficientes para alimentar a população mundial com os atuais padrões de consumo ocidentais, nem tal seria desejável, pois teria consequências desastrosas para a saúde e o ambiente. As Nações Unidas têm feito alertas nesse sentido, da redução do consumo de carne, para proteger a saúde, poupar os recursos (na produção de 1 quilo de carne gastam-se entre 10 a 3 quilos de cereais que podiam ser usados diretamente na alimentação) e reduzir a poluição. É estimado que a produção pecuária seja responsável por 18% das emissões dos gases com efeito de estufa, uma percentagem superior à do setor dos transportes, segundo um relatório da FAO, chamado Livestock’s Long Shadow.