Seremos mesmo livres como a gaivota? Considerações a propósito do funeral de um Homem Livre.

Notícias Magazine

 

Estou à porta do Cemitério dos Prazeres, no funeral de Mário Soares. Decidi não ser jornalista e entrar no perímetro de segurança, queria estar aqui, com o povo. Adoro estes momentos em que nos unimos por um sentimento, uma ideia, nessa identificação pátria que é tão rara. Já fiz suficiente análise deste sentimento para perceber que nele se encerra, também, a saudade dessas lutas que não vivi e formaram gente como Soares. Também por isso aqui estou, para lhe prestar homenagem, a ele e à grandeza de ter sido o herói dessas lutas a que tanto devo.

A palavra liberdade paira no ar. Não sei como hei de explicar isto a quem não está aqui. Não está assim tanta gente – o velório prolongado espaçou o adeus da multidão. Mas a palavra liberdade está quase sólida no ar. Talvez seja eu que a imagino na cabeça de quem aqui está: se aqui está é porque a preza. Gosto de fazer parte deste grupo de gente civilizada, culta nos valores que norteiam a minha vida. Classe média, urbana, decente, a maior parte grisalha. Gente que sabe respeitar o silêncio, dá palmas fortes e espera, ordeiramente, a abertura das portas do cemitério.

O caixão passa e liberta as lágrimas – de emoção, mas também de saudade, é como um momento físico que marca o fim de uma era. Para mim, desse Portugal combativo de Soares, de um mundo em que a política era mais importante do que a economia, e os políticos não eram tecnocratas amorfos afogados em folhas de Excel.

E dou por mim a pensar no que é a liberdade, hoje. Somos livres? De voar, como dizia a canção? É que a liberdade não é um valor utópico ou vazio. Não é só palavra de boca. Serve para dar aos homens a igualdade que todos merecem para exercer as suas potencialidades, no pensamento humanista que guiou Soares nas suas maiores conquistas. A ideia é garantir a dignidade – e essa, no mundo moderno, passa tanto pelo pão como pela ideologia. Vamos ao pão: não pode ser livre quem não se sente seguro no seu trabalho, quem trabalha e é pobre, quem vive na carne a desigualdade. Dizia Soares: «Isto, para quem sempre sonhou com um Portugal livre, democrático, pluralista e mais justo representa uma imensa e intolerável desilusão.»

E vamos também à ideologia: seremos livres, livres mesmo, quando o espaço público de debate por excelência que são as redes sociais está manchado de intolerâncias várias, e ninguém pode pôr o pé em ramo verde sem ter um vendaval de ódio por resposta? Ou, questão ainda mais profunda, seremos livres quando toda a informação que nos chega através da internet é filtrada por algoritmos? Poderemos ser verdadeiramente livres quando não formos confrontados com o diferente, que faz parte da definição de liberdade? Fico com estas questões na cabeça enquanto me afasto do cemitério. Não creio que vá conseguir responder-lhes nos próximos tempos.

[Publicado na edição em papel da Notícias Magazine de 15 de janeiro de 2017]