A seguir à morte de Dag Hammarskjöld num desastre de aviação, em 1961, na Rodésia do Norte, futura Zâmbia, descobriram-se no seu apartamento, em Nova Iorque, manuscritos de um livro apensos a uma carta que pedia para serem publicados. Havia qualidade, e muita. O malogrado secretário-geral da ONU era membro da Academia Sueca (a que todos os anos escolhe o Nobel da Literatura) e os textos eram pequenas frases, aforismos, pensamentos espirituais e políticos, de um diário feito de flashes que ele anotara desde os seus 20 anos até ao mês anterior à morte. Foi publicado em sueco em 1963, e logo em inglês, Waymarks – caminhos, marcos, balizas de uma vida –, com prefácio e tradução do grande poeta inglês W. H. Auden, amigo de Hammarskjöld.
Secretário-geral da ONU (1953-1961), Dag Hammarskjöld foi classificado por John Kennedy como «o maior estadista do século XX», talvez exagero dito em cima do acidente que o matou. E foi galardoado com o Nobel da Paz. Num cargo cuja razão primeira é conseguir a paz mundial, só Kofi Annan, em 2001 (e este na esteira de a honra ser à ONU inteira), também recebeu esse prémio. O balanço dos mandatos do secretário-geral é sempre comparado com o patamar conseguido pelo diplomata sueco. E é opinião dos historiadores de que ainda nenhum outro lá chegou, nem perto.
Uma das frases do livro Waymarks é: «Para se estar seguro, há que esgrimir o florete sem proteção; mas na solidão da noite de ontem, você não brincou com a ideia de envenenar a ponta da lâmina?» Na definição de esgrima vai de si a ponta do florete ser romba ou ter proteção, se não for assim deixa de ser florete, esgrima e desporto. Mas acrescentar-se veneno ao perigo da lâmina nua, já é batota notória… A frase de Hammarskjöld, pelo cinismo, é notável vinda de quem a alinhou com outras tão morais como «a viagem mais longa é a viagem para dentro» ou «se eu puder crescer: mais firme, mais simples, mais calmo, mais caloroso».
Mas aquela frase do florete traiçoeiro também nos diz como a diplomacia nos areópagos internacionais não é para ingénuos. O cume dos mandatos de Dag Hammarskjöld (1953-1961) foi atingido na crise do Suez. Em 1956, a França e a Inglaterra mandaram paraquedistas ocupar as duas margens do estreito, garantindo o que consideravam ser os seus interesses, contra o líder egípcio de então, o coronel Gamal Abdel Nasser. Antes da ousada manobra militar, sabendo que teriam forte oposição dos soviéticos no Conselho de Segurança, ingleses e americanos auscultaram Washington, pedindo, se não apoio, pelo menos neutralidade dos americanos.
Estes devem ter dado essa garantia porque o lançamento dos paraquedistas foi feito. Ora, depois disso, a ONU serviu de palco à aliança inesperada entre a União Soviética e os Estados Unidos contra a intervenção europeia no Egito – o que levou à humilhação da Inglaterra e da França, que tiver de retirar as suas tropas. O episódio é considerado o anúncio do fim do período colonial europeu e o advento do mundo bipolarizado entre as duas novas grandes potências, EUA e URSS. E o papel ONU de Dag Hammarskjöld foi dar caução a esse novo mundo. Interessam aqui menos os julgamentos morais e mais o reconhecimento das relações de força mundiais. Para um secretário-geral da ONU é um pecado mortal ignorá-las.
O diplomata sueco iria morrer em missão no conflito do Congo Belga, recentemente independente e em convulsão. Pressionado por americanos e russos, o mais frágil colonialismo de então havia desmoronado de forma abrupta. Os soviéticos apostaram num líder, Patrice Lumumba, e os belgas querendo preservar um mínimo dos seus interesses, as minas de cobre do Katanga, apoiaram Tshombe, líder regional. Os americanos jogavam então nos bons sentimentos e ventos da história – e as suas tropas no terreno seriam as de paz e da ONU. Mas os de Tshombe mataram Lumumba e, depois de quatro viagens à região, Dag Hammarskjöld morreu num suspeito acidente de aviação, em setembro de 1961. Nessa altura, ele já estava com um só lado do novo mundo. Os soviéticos queriam substituí-lo por uma troika (velha intenção que iriam repetir, sempre em vão), representando três grupos de países: o do Ocidente, os comunistas e os novos países independentes. Afinal, a ONU já fora criada assim, como quem simplifica num guardanapo uma ideia demasiado vasta.
E foi exatamente em desenho feito à mão numa folha que, em 1943, no meio da Segunda Guerra Mundial, em Teerão, o presidente americano Franklin Roosevelt oficializou a ideia com três círculos: uma assembleia de quarenta países (hoje, há 193 membros), um grupo executivo liderado pelo secretário-geral e, enfim, o núcleo dos padrinhos zeladores da paz mundial, os Quatro Polícias (ou Quatro Grandes). Na altura, segundo Roosevelt, EUA, Reino Unido, URSS e China, aliados na Segunda Guerra Mundial, a que hoje correspondem, com o acrescento da França, os cinco países com direito a veto no Conselho de Segurança (a URSS é a Rússia e a China Nacionalista de 1943 é a comunista de hoje).
No fim da Primeira Guerra Mundial, o presidente americano Woodrow Wilson fundou a Sociedade das Nações e, por isso, foi Nobel da Paz. Porém, os EUA nunca chegaram a ser membros da dita, por oposição do Congresso. No fim da Segunda Guerra Mundial – desta vez decididos a terem um papel de liderança na organização internacional dedicada a limar os impulsos suicidas das nações –, os americanos repescaram Gladwyn Jebb, último secretário executivo da Sociedade das Nações e fizeram-no secretário-geral da ONU interino. A intenção foi dar à nova organização um lastro de tradição que fizesse esquecer as evidentes fragilidades de uma ideia demasiado ambiciosa para um mundo demasiado imprevisível. O britânico Jebb, mundano e snob, serviu sobretudo para sublinhar, por contraste, uma das condições para os próximos e efetivos secretários-gerais da ONU: não pertencer aos países padrinhos do Conselho de Segurança, os cinco com direito a veto. Como se estes quisessem dar aos restantes membros a ilusão de que o poder na ONU era partilhado por todos.
Depois do aristocrata Gladwyn Jebb, outro europeu, mas da plebe. Até mais não: o pai do norueguês Trygve Lie, carpinteiro emigrante, um dia partiu para a América e nunca mais se soube dele. Trygvie Lie era um político social-democrata, de esquerda. No fim dos anos 1930, ministro e sensível às pressões da URSS, expulsou da Noruega o exilado Trotsky, opositor de Estaline. Dez anos depois, por proposta de Moscovo e por ainda não estarmos na Guerra Fria, os ocidentais aceitaram que Lie fosse o secretário-geral da ONU. No seu mandato foi construído o edifício-sede, com traça do arquiteto comunista brasileiro Oscar Niemeyer. Mas a guerra da Coreia iria atirar a social-democracia escandinava mais para a direita e Trygve Lie perdeu o apoio russo.
Lie demitiu-se a meio do segundo mandato e o sucessor, Hammarskjöld, também não o acabou por morte. O quarto líder da ONU (se contarmos com o interino Gladwyn Jebb), o birmanês U Thant, começou por só concluir o mandato do sueco, mas acabou por ser eleito duas vezes mais, por unanimidade. Budista, conciliador por convicção, serviu-lhe sê-lo na crise dos mísseis russos em Cuba, o episódio mais arriscado da Guerra Fria. O austríaco Kurt Waldheim só não foi eleito terceira vez por suspeitas de crimes de guerra quando foi oficial SS, durante a Segunda Guerra Mundial. Seguiu-se um braço-de-ferro entre o Ocidente, que queria um sul-americano, e a China, um africano. Ganhou o peruano Pérez de Cuéllar. O seguinte seria o primeiro africano, mas demasiado sui generis: o egípcio Boutros Boutros-Ghali era um cristão copta. Sem a simpatia dos EUA, ficou-se pelo primeiro mandato.
A África Negra teve o primeiro secretário-geral com o ganês Kofi Annan, em cujo currículo havia falhanço grave: responsável das operações de paz quando ocorreram os genocídios do Ruanda, a sua indecisão fora notória. Já no cargo de secretário-geral, com os quase costumeiros dois mandatos, a sua década (1997-2006) foi marcada por avanços na luta contra as pandemias de tuberculose, sida e malária. No discurso de saída fez críticas às reticências da política americana em relação à ONU, indignas da herança dos fundadores, Roosevelt e Truman.
O diplomata sul-coreano Ban Ki-moon, agora de saída, teve também dois mandatos, em que começou por conhecer a oposição americana sobre um assunto crucial, o aquecimento global, e acabou por ter apoio de Washington sobre essa questão. António Guterres pode dar por garantido um começo igual – e seguramente pior – e não tem por certo um apoio posterior.