O dia em que Eusébio me bateu

Notícias Magazine

Nunca vi o Pantera Negra jogar, mas de alguma forma éramos íntimos. Eu fartei‑me de chorar com ele e fartei‑me de saltar com ele e, apesar de nunca ter estado a menos de dez metros dele, perco a conta às vezes em que o abracei.

O King estava sempre ali comigo, na verdade connosco todos, sempre que o Benfica nos levava ao céu ou ao inferno. Idolatrava‑lhe o passo – por tudo o que ele era, mais bailarino do que jogador, deus e poema num chuto de bola. E por isso é que me doeu tanto quando, no outono de 2013, Eusébio da Silva Ferreira se lançou sobre mim sem qualquer aviso e me deixou com um galo na cabeça.

Aconteceu tudo umas semanas depois das últimas autárquicas. O rei era já um homem doente, não tinha a força de que toda a gente fala quando recorda o Mundial de 1966 – e ainda assim aquela pancada valeu pelo sexto golo à Coreia do Norte.

Eusébio tinha decidido apoiar o candidato do PSD às eleições da freguesia de Arroios, em Lisboa. E, no largo principal do meu bairro, tinham sido instalados vários cartazes com os rostos das figuras públicas que apadrinhavam o partido.

As eleições passaram, o candidato perdeu, mas aqueles cartazes continuaram pendurados durante semanas a fio. À medida que o tempo passava, as estruturas que os prendiam iam‑se degradando e, num dia de ventania extrema, o poster de Eusébio soltou‑se.

Eu tive o azar de estar a passar pelo largo naquele exato momento e levei com o outdoor em cheio na cabeça. Soltei um palavrão, ainda dei por mim a pensar se aquela agressão se devia ao facto de não ter seguido o conselho eleitoral dele. Bola é bola, e na bola Eusébio podia ser deus, mas em termos democráticos o Pantera Negra merecia cartão vermelho.

Irrita‑me a parafernália eleitoral com que o país é invadido a cada eleição. O fenómeno é particularmente visível nas autárquicas, com os candidatos das mais remotas freguesias a encherem as ruas de ruído visual.

A sério, para que serve um cartaz com a fotografia de um candidato e uma frase motivadora sem grande conteúdo? Na maioria dos casos, sobretudo quando o lema é irrefletido e as fotografias mal amanhadas, serve para nos rirmos das pessoas que estão a apresentar‑se a votos.

E talvez o afastamento dos cidadãos da política se explique também um bocadinho por aqui, pela maneira como as candidaturas e os partidos se infantilizam a si próprios, e a nós todos.

Como eleitor, preferia receber em casa uma carta com as propostas concretas de cada candidatura. Preferia não ver as praças mais bonitas do país tapadas por rostos e frases vazias. Preferia não ter acidentes no trânsito por causa das pessoas que tiram os olhos da estrada e os viram para posters inúteis. E preferia que Eusébio não se virasse contra mim depois de tantos anos de amizade profunda.

[Publicado originalmente na Notícias Magazine de 24 de Setembro de 2017]