Texto de Alexandra Tavares-Teles | Fotografia de Orlando Almeida/Global Imagens
Várias vezes lhe vaticinaram o fim político. Engano. Helena Roseta cometeu o feito de contestar pesos-pesados, bater com a porta a dois partidos e ainda cá estar. Centrada na cidadania, sempre relevou as questões sociais, o drama da pobreza e da solidão. Quinta de oito filhos, Lenicha foi a rebelde, a quem as professoras chamavam «general». No gabinete da Assembleia da República, o olhar ainda muito azul, a voz entusiasmada, a inquietação e a atitude enérgicas desmentem que já passaram quase sete décadas de vida. E continua a não saber estar quieta.
Setenta anos em 2017. Vai comemorar de forma especial o número redondo?
Não costumo comemorar o meu aniversário mas é bom ter 70 anos, um percurso e um caminho. E algo de muito importante que se ganha com a idade – não ter de dar contas a ninguém. Agora, só faço aquilo que quero. Desde que tenhamos saúde, a liberdade é a grande vantagem do envelhecimento.
Vivia muito espartilhada por regras?
Há sempre muita gente a pedir-nos muita coisa ao mesmo tempo. Sobretudo, às mulheres. Pedem-nos provas todo o tempo, em todas as dimensões. Temos de ser boas mães, boas profissionais, e isso é muito cansativo. Nesta fase, esse caminho está feito. Estou a fazer coisas na Assembleia porque me convidaram e me dá gosto. Já não precisava de vir para aqui para ganhar o meu dia-a-dia.
Aos 70 anos, quarenta deles em atividade pública, que ideia terão os portugueses da Helena?
Talvez a ideia de alguém que esteve sempre presente na democracia, de alguém independente, capaz de bater a porta a dois partidos e ainda cá estar. Porque bater a porta é fácil, o que é difícil é bater com a porta e continuar aqui. Acho que me veem como alguém muito sensível às questões sociais, ao drama da pobreza e da solidão. Os políticos são por vezes duros e cínicos. Evitei sempre ser assim. Quando, com trinta e poucos anos, me candidatei à Câmara de Cascais, um dos meus adversários disse-me eu não podia ser presidente porque chorava. A política precisa de quem chore.
O que lhe deram estes quarenta anos de essencial?
Há um antes e um depois do 25 de abril. Todos os dias dou graças por ter vivido a passagem da ditadura para a democracia. Mas este privilégio extraordinário também tem o seu reverso, que é o de uma certa frustração. Caramba, nós sonhámos tanto com isto e isto não é exatamente o que nós queríamos. É infinitamente melhor do que tínhamos, mas não era isto o que sonhámos. Quando lutámos, sonhámos, chorámos, batalhámos não era para isto. Era para algo mais genuíno, mais generoso, mais aberto. Acontece sempre isso. Há um primeiro momento que é de encantamento absoluto. Depois, as organizações apanham vícios e defeitos. E essa é a parte de que não se gosta.
«As derrotas são mais importantes que as vitórias porque é com elas que se aprende. E as traições dividem-se entre as traições de facto e o que achamos que são traições. A política tem mais de passional de que de racional.»
Perdeu-se a inocência.
Em Portugal e na Europa. Acreditávamos que os políticos iam lutar sempre pelo bem do país, pelo melhor para todos mas os casos de corrupção, as mentiras, a traição aos ideais políticos, a palavra desonrada, fazem-nos perder a inocência. Surge então um desencantamento e olhe que é preciso alguma capacidade de resistência para não ir abaixo.
Disse a António Costa: «A política é 30 por cento de derrotas, 30 por cento de vitórias e o resto são traições». Dito assim é um caminho a evitar grandemente.
Isso é o dia-a-dia – e o interessante é passar por isso tudo. As derrotas são mais importantes que as vitórias porque é com elas que se aprende. E as traições dividem-se entre as traições de facto e o que achamos que são traições. A política tem mais de passional de que de racional. Há muitos ciúmes, frustrações, arrebatamentos. Muitas vezes, aquilo a que se chama «traição» é afinal uma divergência. Traição é outra coisa – é deslealdade assumida, voluntária. E quando isso me acontece ponho uma cruz nessa pessoa e não penso mais nela.
Fez também grandes amigos.
A Natália Correia, por exemplo, de quem estive muito perto e por quem tinha uma amizade profunda. A Natália foi uma sorte grande na minha vida. Como foi a amizade com Manuel Alegre, Mário Cesariny ou Urbano Tavares Rodrigues. Sendo desprovida de sentido prático, quando lhe morreu o marido a Natália ficou perdida. Tomei conta dela. E do Botequim [da Graça, restaurante e espaço de tertúlias, referência cultural e política nas décadas de 1970 e 80]. Criou-se então uma cumplicidade muito grande uma amizade muito próxima e quotidiana. Os pontos de contacto eram vários mas o que mais nos unia era a poesia e a alegria de viver. O que nós gostávamos de cantar até às tantas da noite.
Mantém essa alegria?
Mantenho. As questões essenciais são as da vida, da morte, do sofrimento, do amor. Essas são as que marcam o percurso de vida. Em algumas dessas questões sou uma privilegiada. Tenho uma família de oito irmãos, com as respetivas descendências somos mais de 80, estão todos vivos e sem doenças muito graves. Grande parte desta tranquilidade e alegria de viver tem a ver com isso. Não passei por pobreza, não tive falta de afetos, conheci pessoas maravilhosas.
«Foram tempos excecionais: na Igreja, o Concílio, nos EUA, Kennedy, na cultura pop, os Beatles. Parafraseando um amigo meu, “os anos sessenta foram os anos em que o homem foi à lua; depois disso nunca mais foi a lado nenhum”.»
O que é determinante na construção de uma amizade?
Muitos mais as razões afetivas e culturais do que políticas. Amigos são aquelas pessoas com quem falamos hoje como se nos tivéssemos visto ontem, apesar de não nos vermos há anos. Ainda esta semana isso aconteceu, com uma colega minha do liceu. Não nos víamos há cinquenta anos.
Recuemos cinquenta anos. O percurso político da Helena começa com e nos movimentos católicos. A figura de João XXIII foi inspiradora assim como a abertura trazida pelo Concílio Vaticano II. Fale-me desses tempos.
Essa foi outra revolução. Pertenço a uma família católica sem grande tradição política. Não tinha, portanto, nenhum enquadramento político. Mas lembro-me de discutir a injustiça, a guerra colonial, e o Concílio – que nos chegava através dos padres que davam Religião e Moral – incentivou esse sentido crítico. Envolvi-me na Juventude Escolar Católica, de que fui dirigente. Foram tempos excecionais: na Igreja, o Concílio, nos EUA, Kennedy, na cultura pop, os Beatles. Parafraseando um amigo meu, «os anos sessenta foram os anos em que o homem foi à lua; depois disso nunca mais foi a lado nenhum». É um bocado verdade.
Tal como os ideais de Abril, também muito do Vaticano II ficou por cumprir.
Mas temos agora um papa que está a retomar toda aquela esperança. Há coisas que são uma «terrível esperança» como dizia Yeats. É muito difícil que a realidade consiga estar perto da esperança mas é bom que a esperança se mantenha. É inspirador.
Continua crente?
Por razões que têm a ver com a luta das mulheres, tenho tido os meus desaguisados com a Igreja Católica.
E com Deus?
Essa é uma parte mais íntima. É difícil falar disso. Fiz toda uma escola católica, fui muito empenhada e sou capaz de lhe citar o Evangelho de trás para a frente. E com prazer, porque é um texto que me diz muito. Mas a partir de certa altura, tive grandes dificuldades em lidar com a Igreja. Por causa da pílula, choquei com a Humanae Vitae [Encíclica de Paulo VI]. E, mais tarde, pela questão do aborto. Aí tive de cortar, porque deixei de me sentir confortável.
O catolicismo é, no entanto, um dos pilares da sua vida?
Sem dúvida. Tenho um texto escrito em que digo que as pessoas são como os terrenos, feitas de estratos sucessivos. Um dos estratos básicos na minha vida são os anos todos de militância católica. Não posso ignorar esses fundamentos. Não há falha sísmica que me faça negar isso.
Na idade da Helena, são vários os estratos. Quais são os outros pilares?
O ideal de liberdade, o 25 de abril, a arquitetura e o direito à habitação, a cidadania. E as grandes amizades que ficam para a vida.
«Tinha a mania de mandar. uma das minhas professoras de liceu contou-me que, entre elas, chamavam-me general. Fiquei derreada»
Só na faculdade, foi confrontada com um país que não conhecia, pobre, em consequência das cheias de 1967. Até lá, Lenicha Salema era apenas a menina-bem rebelde?
Nunca fui muito menina-bem, não acompanhava muito os meninos de Cascais. Os meus pais tinham casa no Estoril, era o meu meio, é verdade, mas saía muito para fora e fazia muitas coisas que não tinham nada que ver com o que me circundava. Em 1967, já estava em Belas Artes, uma escola aberta, bastante radical e, é verdade, com as cheias ganhámos consciência da pobreza das pessoas. Para ter uma noção, numa só noite morreram 500 pessoas. Nessa altura, fiz uma separata para o jornal da JUC [Juventude Universitária Católica], com uma entrevista a Nuno Portas e a Ribeiro Teles sobre as causas da tragédia. A partir daí, o jornal da JUC passou a ir à censura.
Na JUC conheceu António Guterres?
Não tive grande contacto com ele nessa altura.
Falava da censura.
E à censura juntava-se a guerra colonial – o regime cortava-nos as pernas. Era um muro à nossa frente. Um muro de repressão, por vezes com aspetos muito ridículos: o liceu Maria Amália tinha umas vigilantes que iam nos autocarros para ver como é que as meninas se comportavam e não se podia entrar sem meias no liceu. Coisas estúpidas.
Coisas estúpidas que acatava? No liceu foi uma aluna brilhante.
No liceu sim. Tive uma falta de castigo e fui chamada à reitora porque não coloquei o cinto da bata.
Como reagia a família tradicionalista à rebeldia da filha?
Havia algumas turras, naturalmente, mas isso há sempre. Quinta, de oito filhos (quatro rapazes e quatro raparigas), fui a mais rebelde. Os meus irmãos tiveram um percurso mais calmo, fizeram o caminho tradicional. Eu saí um bocado fora do baralho.
A que atribui isso?
A minha mãe era muito católica e muito praticante, ia muito à Igreja e era completamente devotada às causas sociais. Portanto, em mim, a sensibilidade à injustiça social e à pobreza é instintiva. Com o meu pai aprendi que as coisas têm de ser claras, retas, nada de trafulhices, mentiras, trapalhadas com dinheiro. Tinha um enorme sentido de dever e uma ética inatacável.
Que dizia da filha: «teimosa até mais não».
Muito teimosa, de facto. E muito marrona. Super-marrona e com muita energia. Ainda hoje sou muito energética.
Muito segura de si?
Talvez. De facto, tinha um bocado a mania de mandar. Mais tarde, uma das minhas professoras de liceu contou-me que, entre elas, chamavam-me general. Fiquei derreada»
Chefe de turma, portanto.
Sempre chefe de turma. As pessoas aceitavam com alguma facilidade a, como agora se diz, minha liderança.
«Na primeira aula, Nuno Portas perguntou aos alunos por que razão tinham escolhido aquele curso. Com presunção inaudita respondi: “vim para arquitetura porque quero resolver o problema da habitação em Portugal”.»
Teve cedo consciência de que gostava de mandar?
Sei que essa característica foi identificada muito cedo. No relatório da escola infantil enviado aos meus pais está escrito, a certa, altura: «E gosta muito de mandar». Tinha 3 anos. Quando li isto fiquei traumatizada. Que horror. Mas está lá. Talvez porque tive muito mimo.
Entre oito irmãos?
Nasceram cinco, depois houve um intervalo e nasceram mais três. Eu fui a última antes do intervalo. Muito mimada, portanto.
De alguém tão afirmativo e seguro, com o dom da palavra, espera-se mais um curso de Direito do que as Belas-Artes. Porquê arquitetura?
Nuno Portas, na primeira aula, perguntou aos alunos por que razão tinham escolhido aquele curso. Com presunção inaudita respondi: «vim para arquitetura porque quero resolver o problema da habitação em Portugal».
De onde surgiu essa ideia? Ainda não tinha passado pela experiência das cheias.
A gente sabia dos bairros de lata. Meninas do Estoril, nas nossas férias, as tias punham-nos a fazer enxovais para levar aos pobrezinhos. Era muito paternalista, mas era assim.
Foi bastonária da Ordem. Hoje, pensa em si como arquiteta?
Arquiteta não praticante.
O que lhe ensinou a arquitetura?
A arquitetura deu-me ferramentas essenciais para a resolução de problemas. Eu não sou arquiteta, sou uma problem-solver. Para além da sensibilidade e da arte, naturalmente, a arquitetura ensinou-me a pensar.
Trabalhou desde logo na recuperação de bairros degradados.
Não tenho arquitetura de placa, nem nunca quis ter. Andei sempre metida nos bairros pobres, a pensar como poderia melhorar aquelas vidas.
Em março de 1973 participa no Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro.
Com um grupo de amigos, colaborei numa tese sobre habitação que iria ser apresentada em Congresso. O evento aconteceu exatamente na véspera de nascer a minha terceira e última filha. Estava já na maternidade quando um colega me levou a tese para eu assinar. Engraçado foi ver a cara das enfermeiras quando lhes apareceu um senhor, que não era o meu marido, a pedir para falar comigo urgentemente.
«Comecei a aproximar-me de Sá Carneiro em 1978 quando há uma cisão entre os que achavam que ele estava demasiado enfeudado à direita e os que achavam que ele tinha razão.»
26 anos e já três filhas?
Casei com 21 e tive as três filhas seguidas. E devo dizer o seguinte: quando se dá o 25 de abril, acumulava as três filhas com três empregos. Tempos fáceis para uma mulher trabalhar porque com a guerra colonial havia falta de mão-de-obra. Mesmo com três crianças pequenas dava tempo. Hoje seria impossível.
Foi presa por um dia, em 1973. Como é essa história?
Fui presa porque o meu diminutivo constava da agenda de uma colega de atelier, que a PIDE considerava suspeita. Foi o suficiente para a PIDE passar um mandato de detenção em nome de Lenicha. Fui para Caxias sobretudo preocupada com o trabalho. Deu-se então uma situação muito portuguesa: o dono do atelier foi a Caxias, descobriu que tinha sido colega do oficial de dia, conversou com ele, pagou-lhe uma multa qualquer e safou-me.
Entre o PPD e o PS, não hesitou?
Naquela altura, via o PS como o partido das pessoas que não estavam em Portugal. De gente que vinha de fora para dentro. Hesitei, sim, entre o PPD e o MES (Movimento de Esquerda Socialista). No MES, estavam muitos amigos, gente ligada à ação católica. Mas o MES era a crítica da crítica, não faziam propostas concretas. Ora eu queria fazer. O primeiro PPD era muito castiço e muito genuíno. Era um partido que conhecia bem o país – o meu marido fazia parte do grupo fundador do PPD e era muito amigo de Sá Carneiro.
Em 1975, chegou à Assembleia Constituinte. Que expetativas tinha nesses anos?
Estava muito envolvida no gabinete de estudos onde se produziam os documentos programáticos do PPD mas de produção legislativa não sabia quase nada. Mas queria participar. A Constituinte é uma espécie de milagre. Passávamos a maior parte do tempo na rua, em manifestações e pelo país fora, a explicar as diferenças entre os vários partidos. O que eu fiz na Constituinte foi política. Na área que me dizia respeito, participei na redação e orgulho-me do artigo 65, do direito à habitação.
Iria cumprir o objetivo enunciado: resolver o problema da habitação em Portugal.
Uma habitação com condições, com serviços, planos de ordenamento, enfim, tudo o que não havia. Não o escrevi sozinha mas está lá a minha mão.
Cria com Sá Carneiro uma relação cúmplice logo em 75?
Posteriormente. Em 75 Sá Carneiro esteve doente e ausentou-se. O PPD tinha como presidente a figura romântica de Emídio Guerreiro. Marcelo [Rebelo de Sousa] e eu éramos secretários-gerais adjuntos. Comecei a aproximar-me de Sá Carneiro em 1978 quando há uma cisão entre os que achavam que ele estava demasiado enfeudado à direita e os que achavam que ele tinha razão. Nessa altura opto e fico com Sá Carneiro.
Fale-me daquele Marcelo.
Sempre em ação, como hoje, mas mais radical e esquerdista. Brilhante em qualquer caso.
A Helena entra na revolução à esquerda, vira à direita numa primeira fase, deixa depois o PSD e vira, de novo, à esquerda. Há nisto alguma falta de rumo?
Tenho a tendência para ser rebelde. Quando a coisa se desloca muito para esquerda, logo vou para o outro lado. E vice-versa. O meu mundo tem sempre um grau de incerteza. Mas uma coisa é permanente: lutar contra os abusos de poder, à direita ou à esquerda.
Não confia nos excessos?
Nada. E no poder é muito fácil resvalar.
«Sempre que convidei mulheres para uma lista, a primeira pergunta era sempre a mesma: “para fazer o quê?” Os homens começam por perguntar “para que lugar?”»
Havia poucas mulheres na Constituinte.
Muito poucas. As que havia no PPD, vinham com os maridos. Era uma espécie de pacote.
Em 76 candidatou-se à Câmara de Lisboa.
Estava no gabinete de estudos e sabia que a eleição estava perdida. Se é para perder não me importo de ser candidata, disse. Foi um honroso último lugar. Candidatei-me porque o PPD não tinha ninguém para se candidatar.
Mais ou menos, como aconteceu agora.
Pois, mas passaram 41 anos.
O que vai fazer o movimento Cidadãos por Lisboa nas próximas eleições?
O movimento foi lançado há dez anos, andámos muito caminho, temos de ver à luz de hoje o que faz sentido e o que falta fazer. Estamos a fazer essa reflexão.
Disse a certa altura que as mulheres têm mais feitio para as câmaras [municipais]. Porque diz isso?
Estamos em 2017 e as mulheres continuam a ter menos tempo livre que os homens. E, por isso, sentem necessidade de organizar bem o tempo. Pois para gerir a Câmara é muito importante organizar bem o tempo, ter noção das coisas práticas. Coisas tão simples como as horas das reuniões, porque em regra, fazem-se reuniões a horas estapafúrdias. Não há ninguém com uma família normal organizada que possa ter aqueles horários desregulados.
Há diferença de género no que toca a fazer política?
Fiz essa pergunta a Simone Veil. «Os homens querem ser, nós queremos fazer», respondeu-me. Tendo a concordar. Sempre que convidei mulheres para uma lista, a primeira pergunta era sempre a mesma: «para fazer o quê?» Os homens começam por perguntar «para que lugar?»
Um estereótipo.
É um estereótipo mas acontece. Há estereótipos e há, também, a construção social da diferença, como diz a professora Lígia Amâncio.
Fale-me de mulheres notáveis na política portuguesa.
Maria de Lourdes Pintasilgo, sobretudo, porque foi a primeira a lançar os movimentos de cidadania e uma candidatura de cidadania. As coisas não correram como ela queria, ficou muito marcada, muito magoada, mas fez história. Era uma mulher do futuro. Temos tido várias mulheres muito competentes, à esquerda e à direita. Manuela Ferreira Leite, por exemplo. E temos agora uma senhora a liderar um partido. Não temos qualquer proximidade política mas é bem-vinda.
Porém, nas presidências de 1986, preferiu Soares a Maria de Lourdes Pintasilgo.
Mário Soares é alguém a quem devemos muito e naqueles anos difíceis, em que o Sá Carneiro nem cá estava, teve um papel muito importante. Tinha um grande respeito por ele. Entendi que devia mesmo apoiá-lo. Deu-me muito prazer acompanhar a campanha.
Amiga de Freitas do Amaral, prefere Soares por causa de Cavaco Silva?
Já estava em grande conflito com Cavaco Silva e com o autoritarismo dele. Percebi que Freitas ia arrebanhar aquela gente que rodeava Cavaco e eu não queria aquilo.
Como reagiu o seu marido, Pedro Roseta?
O Pedro era muito amigo de Freitas mas também tinha as suas distâncias.
O processo decisório é solitário?
Nessa altura conversámos. Para as miúdas foi a coisa mais simples do mundo. «Lá em casa, ganhamos sempre porque ou ganha a mãe ou o pai».
«O apoio a Cavaco foi o meu maior erro político. O que me desagrada em Cavaco Silva é a maneira de estar na política, o lado autoritário, a imagem de quem raramente se engana e nunca tem dúvidas.»
Na véspera da primeira volta das eleições [presidenciais de 1986] entregou a carta de demissão do PSD. E filiou-se no Partido Socialista, a convite de Jorge Sampaio, no dia em que Cavaco Silva obteve a segunda maioria absoluta, em 1991.
Para mim, a simbologia é importante.
Nunca conversou com Cavaco – que apoiou em 1981, nas críticas a Francisco Pinto Balsemão – sobre o que os separou?
Nunca senti necessidade. Trata-se de alguém muito distante da minha maneira de ver e pensar o mundo. O apoio a Cavaco foi o meu maior erro político. O que me desagrada em Cavaco Silva é a maneira de estar na política, o lado autoritário, a imagem de quem raramente se engana e nunca tem dúvidas. Tudo isto é o meu oposto. Tenho muitas dúvidas e ainda bem, é assim que se vai avançando. Com ele é tudo «eu, eu, eu». Nunca diz «nós».
Desafiou várias direções partidárias e vários líderes: Balsemão, Cavaco, Guterres, Sócrates.
Sócrates tinha também atitudes muito autoritárias. Tive com ele confrontos diretos, nomeadamente no congresso de Santarém, por causa de um problema dos realojamentos na Amadora. Ele ficou muito zangado comigo.
Acaba por sair do PS, em 2007, para se candidatar à Câmara de Lisboa. Teve noção que vários socialistas respiraram de alívio?
Quando eu saio, ficam sempre muito aliviados. Sempre que alguém incómodo sai, é um alívio. O que se esquecem é que a pessoa vai fazer mossa noutro sítio. A gente sai pela porta e entra pela janela. Saí do PS para dar duas maiorias absolutas ao partido socialista em Lisboa. Entrego sempre o cartão antes, para não ter processos disciplinares. Cartão e cargos. Quando o governo de Balsemão recusou a amnistia aos presos políticos entreguei o meu lugar de deputada.
Outro momento muito importante foi, em 2007, a candidatura de Manuel Alegre à presidência, neste caso com um papel importante no lançamento do movimento.
Ajudei a construir aquele movimento e essa foi uma experiência decisiva para mim.
Em 1986 apoia Soares em rutura com Cavaco. Em 2007 está com Alegre em rutura com Sócrates. Não se dá bem com maiorias absolutas.
Nada bem. Não gosto nada de maioria absoluta. Em regra, esquece-se que é preciso construir uma decisão coletiva e esse é o trabalho que é bonito. E essa é a beleza da geringonça. Há ali uma metodologia a que não estávamos habituados. Há divergências mas vai-se avançando.
«[António] Costa negociava com Deus e com o diabo, resolvia problemas que em quarenta anos ninguém conseguira resolver. Tem uma característica rara num político e, sobretudo, num jurista: é criativo.»
Trabalhou vários anos com António Costa.
António Costa é um personagem. Agora, todos dizem que tem aquela habilidade negocial mas eu, que o conheço de Lisboa (Câmara), digo-o há muito tempo. Costa negociava com Deus e com o diabo, resolvia problemas que em quarenta anos ninguém conseguira resolver. Tem uma característica rara num político e, sobretudo, num jurista: é criativo. Tem sempre muitas ideias. E como é muito inteligente, as ideias são boas. É culto de pai e de mãe, o que ajuda muito. E tem uma estrelinha na testa. Ao longo dos anos, disse-lhe várias vezes: «Tens de ir fazer no país o que andas a fazer em Lisboa». Mas também tivemos pegas. Zangava-se mas rapidamente voltava à postura zen. Aquele sorriso enigmático que nos deixa sem saber o que é que está a pensar. Misto de postura zen e imenso sentido de humor.
A Helena tem sentido de humor?
Algum, mas preciso de companhia. Dou e dei grandes gargalhadas entre amigos, com a Natália Correia, com a minha grande amiga Fernanda Mestrinho, com o Paulo Portas, de quem fui muito amiga, com a Helena Sacadura, uma mulher com uma imensa fúria de viver, com Marcelo Rebelo de Sousa. Eram célebres as gargalhadas do Marcelo.
Deixou de ser amiga de Paulo Portas? Conhece-o desde novo e chegou a ser colunista no Jornal Novo, que dirigiu.
O Paulo é brilhante mas fez a sua escolha política. E cortámos, deixámos de conviver. Se o encontrar dou-lhe naturalmente um abraço e tenho gosto em vê-lo mas, tirando algum sentido crítico da vida que, sei, ele tem, não partilhamos as mesmas coisas.
Conhecendo bem Paulo Portas e olhando para Passos Coelho, não lhe parece, à partida, uma relação improvável?
O poder explica muita coisa.
O que pensa de Passos Coelho?
Não me interessa nada falar sobre ele. Nos quatro anos da troika, tive uma palavra de ordem: resistir.
«Tu vais pela esquerda, eu vou pela direita», disse-lhe Marcelo quando deixou o PSD. Acertou.
Em relação a mim, nem sempre. Marcelo vaticinou o meu fim político várias vezes. Pois bem, enganou-se na profecia. Agora, na presidência, está a fazer um trabalho muito interessante, de muita proximidade, de dessacralização do lugar. Isso é bom. Eventualmente fala demais, mas em Marcelo é impossível ser de outra forma.
Há só um Marcelo?
Marcelo é heteronímico, é verdade. Neste momento está a dar só o seu melhor. E está a gostar. A ideia de que a política tem de ser um sacrifício e uma coisa chata não serve. A política tem de ser vivida com alegria, prazer e paixão.
«O que me motiva e interessa é poder mobilizar a energia social em defesa de causas. Não sinto falta de pertencer a um partido.»
Dizem os seus críticos que ainda vai acabar no Bloco de Esquerda. Vimo-la ao lado de Marisa Matias. É uma possibilidade?
Estou muito bem fora dos partidos políticos. Apoiei a candidata presidencial Marisa Matias porque, entre as candidatas mulheres, me era a mais próxima, mas o que me motiva e interessa é poder mobilizar a energia social em defesa de causas. Não sinto falta de pertencer a um partido.
Até os contesta. Não é perigosa tanta crítica aos partidos?
Os partidos estão fechados, não se abrem à sociedade. A forma de organização partidária continua a ser em pirâmide quando a sociedade de hoje funciona em rede. Isso faz muito mal à democracia.
Os movimentos de cidadãos não vão dar ao mesmo? Veja-se o Podemos.
Por isso mesmo nunca quis transformar o movimento Cidadãos Por Lisboa num partido. Sabia que ia dar ao mesmo. O movimento existe e se for preciso tocar a rebate, tocará a rebate.
Está, desde 1976, ligada às autarquias. Nestas quatro décadas, quais foram os momentos mais reconfortantes?
Na Câmara de Lisboa, pude voltar à minha base, às associações de moradores. Ouvir pessoas e promover a participação, sobretudo nos bairros sociais, foi sempre um prazer. Em Lisboa, há 22 mil casas municipais com rendas sociais. Parece pouco, eu sei, mas há 22 mil famílias em Lisboa que pagam uma renda social. E foi também esta a responsabilidade que tive de assumir. E aceitei com muito prazer. Mas o melhor de tudo foi o programa Bip-Zip, um processo participativo que ajuda, com um valor anual que vai até cinquenta mil euros, projetos de associações que se apresentem coligadas. Têm aparecido iniciativas fantásticas. A maior parte dos projetos na Mouraria são Bip-Zip. Poder demonstrar que há uma energia social enorme e que as pessoas não precisam que se lhes faça tudo, foi das minhas maiores alegrias.
Na AR, coordena o grupo de trabalho na área da habitação. O que está a ser feito?
A lei da renda apoiada foi a primeira que fizemos. Nos quatro anos anteriores, tinham sido feitas dezenas de iniciativas legislativas para mudar a lei e nenhuma passou. Conseguimos pacificar esse processo ouvindo as pessoas, promovendo o diálogo e construindo a decisão coletiva. Falta agora que os cidadãos possam participar de forma mais consistente. Para isso, acabo de lançar um site pessoal [www.helenaroseta.pt] que permitirá a participação direta dos cidadãos na elaboração das leis que tenho em mãos e que têm a ver com a habitação, com a reabilitação urbana, com o arrendamento, com as políticas da cidade.
Recebe muitos e-mails?
Muitos e todos eles merecem uma resposta. Alguns comovem, outros revoltam-me. Ainda há poucos dias recebi de uma senhora da Cova da Moura a denúncia de uma discriminação inaceitável – a empresa Chronopost recusou fazer a entrega de uma encomenda pré-paga com o argumento de que a zona não era segura. Há também pouco tempo, um senhor sem domicilio fixo contou-me que vive sem cartão de cidadão porque os serviços não aceitam colocar um apartado como morada. E como ele não frequenta sequer os albergues noturnos, vive sem cartão. Logo, sem direitos. Não existe. Para resolver situações como estas, quero fazer uma iniciativa legislativa chamada «direito à morada».
Tinha como sonho povoar o centro de Lisboa. Ainda falta muito.
Não é de um dia para o outro que se consegue inverter o mercado imobiliário, desregulado como sempre foi e ainda mais agora, com a pressão turística. Mas o trabalho de regulação vai ter de ser feito. É preciso compatibilizar a renda com o rendimento familiar. Está na Constituição. E fazer, finalmente, a Lei de Bases da Habitação, que defina competências do Estado, dos municípios, direitos dos cidadãos e como os fazer valer.
Quando não atinge os objetivos, como lida com a frustração?
Convido uma amiga, vamos jantar, bebemos um copo e vou dormir. Depois se verá. Perante uma chatice nada melhor que um copo de vinho e uma noite de sono.
Foi muito frustrante não ter chegado à presidência da Câmara de Lisboa?
Não e não tenho pena nenhuma.
Vai tentar ainda?
Quero fazer, não quero ser. Para ser basta-me ser quem sou. Não preciso de acrescentar nada. Há um tempo para cada coisa e eu fiz tantas coisas. Sou uma privilegiada.
Não sabe estar quieta.
Nunca. Depois disto, veremos o que a vida me reserva. Estou sempre disponível.
«Vai coser meias»
Desde a Constituinte até hoje, a situação da mulher evoluiu muito. Qual considera ter sido a maior conquista?
Desde logo, a primeira e ainda antes da Constituinte – a alteração do Código Civil, obra de Maria de Lourdes Pintasilgo, de Salgado Zenha e de Leonor Beleza, com ajudas muito importantes, como a de Madalena Barbosa e outras. Muita gente boa. Depois, a questão da Interrupção Voluntária da Gravidez e o que tivemos de fazer para lá chegar, com um primeiro referendo perdido.
Envolveu-se muito nesse debate, enfrentou Guterres que decidira deixar a questão ir a referendo. Como recebeu a derrota do sim?
Foi um travo muito amargo. Mas sabíamos que o resultado estava contra a história. Mais tarde ou mais cedo íamos mudar a lei.
Dura, essa campanha pelo sim. Foi destratada?
Por acaso não. Os piores momentos de campanha vivi-os quando me candidatei à Câmara de Cascais, em 82. «Vai coser meias» e frases do género.
Nos anos 80 havia muito sexismo no parlamento? Assédio?
De assédio, não tenho memória. O Pedro (Roseta) estava aqui e esse facto era desmobilizador. Com a Natália, uma mulher lindíssima, que ninguém se metesse. Tinha sempre a caneta à mão.
Foi sempre feminista assumida?
A partir do momento em que começaram as discussões sobre a IVG. Aí assumi mais. Ao princípio não me apercebia nem dos problemas. A partir de uma certa altura era fundamental assumir.
O caminho está a fazer-se para a frente ou nota alguma regressão?
Já evoluímos em muita coisa mas cada geração acaba por aprender à sua custa. Nada está adquirido. Há para aí homens das cavernas.
«Casa é a coisa mais séria do mundo»
O que a inquieta hoje em dia?
O estado do mundo é a música de fundo. O mundo está muito sombrio. Olhamos para isso e julgamos estar a reviver os anos 30. A história tem um movimento pendular.
Está assustada?
Estou. Temos de pensar que nenhuma conquista é adquirida. Pensávamos que nunca mais viria o fascismo. Como é possível Trump ter chegado a presidente?
Como se combate o populismo?
Resistindo e apresentando soluções concretas às pessoas. O populismo vive do descontentamento. Ignorar o desalento e a zanga das pessoas com a política – e as suas razões – é um erro. É necessário dar soluções.
O que há da miúda da Constituinte de 1975?
Está cá no fundo. É imagem dos estratos. É um dos muito importantes da minha vida. É um estrato constituinte.
Continua a ler muito?
Muito. É um prazer. E nunca ando com um só livro. Quando gosto de um autor, tenho de ler-lhe toda a obra. Marguerite Yourcenar foi das primeiras autoras que li de fio a pavio. Marcou-me muito.
Ler, nadar, cozinhar, estar com a família na quinta de Sintra. Sendo arquiteta, o que significa para a Helena a casa?
Casa é a coisa mais séria do mundo, é o sítio onde estamos connosco próprios. Não desenhei a casa onde vivo, mas tenho arranjado as minhas casas. Tenho facilidade em tornar acolhedor o que estava escalavrado. Para mim, casa é uma porta aberta, uma mesa posta e uma cozinha grande. Parece a «casa portuguesa» mas é isto mesmo.
«A felicidade não um estado. São momentos de grande harmonia entre lá fora e cá dentro.» É verdade, isto que diz Yourcenar?
Essa frase acompanha-me. São momentos fulgurantes, intensos e inesquecíveis muitos dos que tenho vivido.