Mónica Ferro, 44 anos, investigadora, ex-deputada do PSD e defensora ativa dos direitos humanos e, em particular, das mulheres, é a nova diretora da Representação Regional em Genebra do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População. Conversa sobre a missão que tem pela frente e sobre o caminho que percorreu para aqui chegar.
É, a partir de 1 de Abril, a nova diretora da Representação Regional em Genebra do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População. Este cargo é o ponto final numa carreira na política partidária?
Os lugares de trabalho público internacional são lugares de exclusividade. Os funcionários internacionais não podem solicitar ou receber instruções de entidades exteriores à organização. Nesse sentido a política partidária está, pelo menos, suspensa. Mas mentiria se dissesse que não pensarei nisso. Ser só funcionária internacional. Não sendo fatalista, e sabendo que as coisas acontecem porque trabalhámos para elas e mobilizámos os recursos necessários, acredito que minha vida e o meu caminho me foram trazendo para aqui.
Vai trocar Lisboa por Genebra. Foi apanhada de surpresa?
Quando me candidatei a este cargo acreditava, naturalmente, que poderia ser bem sucedida. Na realidade, significaria continuar a trabalhar a mesma agenda, uma agenda de dignidade para todos, de empoderamento das mulheres e das raparigas e de realização de potencial dos jovens. Apenas mudava a sede. Mas só quando o lugar me foi oferecido, tomei consciência do desafio tremendo que vou ter em mãos. A primeira sensação, por isso, foi de esmagamento. E a segunda, também: ao fim destes dias continuo a sentir-me esmagada. Sinto-me ainda mais pequena. Junto de uma enorme alegria. A oportunidade de dedicar a minha vida, de uma maneira ainda mais intensa, à causa dos direitos humanos é um privilégio.
A agência de Genebra é um quartel-general e sede europeia do Fundo. Muitos não saberão da sua importância. Quer explicar por que razão é tão importante?
Genebra é vista como a capital mundial da saúde, dos Direitos Humanos e dos assuntos humanitários. Em Genebra têm sede a Organização Mundial de Saúde, o Conselho de Direitos Humanos e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, para além de uma série de organizações internacionais. Mas também pela missão a que se destina.
Que missão e poderes passará a ter?
Em Genebra, o trabalho assenta em algumas áreas fundamentais. Serão minhas competências assegurar a representação do FNUAP junto de outras organizações governamentais, junto do Conselho de Direitos Humanos, da OMS, dos Estados com sede permanente em Genebra e das organizações não governamentais. Compete-me interagir com todas as partes do sistema, no sentido de garantir que a visão do FNUAP é acolhida nos documentos que forem sendo negociados, e que é percebido o caráter fundamental do nosso trabalho. Sendo a estrutura do Fundo piramidal, respondo perante um diretor e, naturalmente, o diretor-geral.
O processo de avaliação inicia-se com a análise curricular. Segue-se a fase das entrevistas. Pode dizer qual foi a primeira pergunta que lhe fizeram?
O que me tinha levado a candidatar ao lugar. Que é a vontade de dar continuidade a um trabalho que me fascina e motiva.
Presumo que façam uma confirmação rigorosa da dedicação do candidato aos direitos humanos e aos valores fundamentais do Fundo.
Acredito que o percurso de cada candidato em termos de defesa dos direitos humanos é muito relevante. O nosso compromisso com esta agenda de Direitos Humanos tem de ser total e, nesse sentido, é fundamental que não haja nem declarações nem práticas consideradas contrárias aos ideais das Nações Unidas.
Enquanto deputada e vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, nem sempre votou alinhada com o partido, falo das questões relacionadas com Direitos Humanos, nomeadamente com os direitos sexuais e reprodutivos. Votou favoravelmente a procriação medicamente assistida, a maternidade de substituição. Também não seguiu a maioria dos deputados da bancada na coadoção e no casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em algum momento sentiu pressão para votar de maneira diferente?
Nunca. Posso dizer-lhe com total honestidade que nunca senti qualquer pressão no sentido de verificarem previamente qual seria o meu sentido de voto ou de o tentarem alterar ou influenciar. Até porque nunca estive sozinha, fazendo parte de um grupo de deputados e de deputadas do partido que votaram a favor, provando que no partido convivem pessoas com leituras muito diferentes do tempo social. O PSD tem muitas coisas que me encantam e das quais gosto particularmente e essa é uma delas. Há, claro, discussões e momentos acalorados, sobretudo à porta fechada, mas sinto-me muito confortável no PSD: nunca senti que teria de votar contra a minha consciência. Nem votaria. De certeza absoluta.
Como católica teve dúvidas no referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez? Quer dizer como votou?
Votei sim. E não tive dúvidas.
Entre as diversas questões relacionadas com População e Desenvolvimento, contam-se os direitos sexuais e reprodutivos, o planeamento familiar voluntário, a igualdade de género, a mutilação genital feminina e o casamento infantil. De que forma se relaciona com os fundamentalismos religiosos, sempre oponentes dos direitos pelos quais o Fundo se bate?
Não há qualquer conflito entre o planeamento familiar voluntário e qualquer um dos textos religiosos fundadores, porque todos estes textos têm como valor fundamental a dignidade. E sabemos, pelos números, que poucos fatores têm impacto maior na dignidade e na vida das mulheres que uma saúde sexual e reprodutiva plena. Desde logo, a questão do planeamento familiar voluntário permite às mulheres, por exemplo, a frequência de ciclos escolares mais longos, e consequente emprego remunerado. Ora, é esse emprego esse que dá às mulheres uma voz. ” Porque todas as pessoas contam” foi um dos lemas originais do Fundo. Quem não é contado não é tido em conta e as mulheres não foram contadas durante muito tempo.
Com que idade percebeu que era feminista?
O feminismo é resultado de uma reflexão, de um caminho. E só cheguei aí no fim da adolescência. Mas antes já tinha noção do que era a desigualdade. E de como as mulheres eram tratadas de forma muito desigual e inferior.
Que recorda da adolescência?
Curiosamente, recordo muito pouco. Era uma leitora compulsiva, lia tudo o que estava à mão. E ouvia muita música. Lembro-me de tardes inteiras passadas a tirar a letra das músicas a partir de cassetes. Lembro-me naturalmente do Liceu do Cerco do Porto e de ser boa aluna. Sempre aprendi com facilidade.
Continua a ler muito?
Tudo. Mas hoje sou muito seletiva. Não tenho tempo para ler maus livros. A certa altura, só lia livros escritos por mulheres. E ficou-me o gosto por algumas. Mas gosto do realismo mágico de Gabriel Garcia Marques, embora a sua obra-prima seja Amor em Tempos de Cólera. Gosto de Vargas Llosa, desde o magistral A Guerra do Fim do Mundo ao perturbador A Festa do Chibo, passando pelo hilariante Pantaleão e as Visitadoras. Gosto de Eco, de Paul Auster, de Julian Barnes. E de Ian McEwan li tudo.
Com que idade se cruzou pela primeira vez com a noção de injustiça?
Essa fase veio mais cedo. Sempre li muito. Viajava para fora do meu quarto nos meus livros. E fui lendo histórias de violações de direitos humanos que me mostraram outros mundos. E isso inquietava-me.
O que queria ser quando fosse grande?
Nunca quis ser muita coisa. Queria mudar o mundo. Como, logo decidiria. Da infância tenho mais memórias. Lembro-me de brincar no pátio das traseiras de casa com os meus vizinhos. De saltar à corda, jogar ao elástico, às cartas e às escondidas. Nunca aprendi a andar de bicicleta.
Nasceu no Porto em 1972. Uma portuense portista em Lisboa.
Sou do FC Porto desde pequenina mas não sei o nome dos jogadores. Interessa-me contudo o futebol e as suas paixões. Vibro com as vitórias do FC Porto e, claro, da seleção, ou melhor, vibro com a alegria das pessoas com as vitórias da seleção. Lisboa surge na minha vida por causa do ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas) onde estudei relações internacionais e onde fiquei a lecionar. Era e é a melhor escola do país.
No processo de avaliação para o cargo de diretora da Representação Regional em Genebra do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População fez uma série de testes. De personalidade, psicométricos, e jogos de simulação. Que caraterísticas da sua personalidade são essenciais para desempenhar este cargo?
Considero-me alguém perseverante e com visão estratégica. Com sentido de dever e grande capacidade de trabalho, aliada a um sentimento de pertença a um coletivo. Mas acima de tudo, talvez, esteja uma identificação muito grande com esta agenda de dignidade e direitos humanos.
É-lhe fácil tomar decisões?
Nunca tive medo de tomar decisões e neste cargo esse é um aspeto relevante.
Quem sabia da sua decisão de se candidatar?
Meia dúzia de pessoas. Fora do âmbito familiar, informei a minha faculdade e o Ministro dos Negócios Estrangeiros. O governo sabia e escreveu uma carta de apoio da minha candidatura.
Sente que relacionam o facto de ter sido escolhida com António Guterres?
[sorriso] Já me colocaram várias vezes essa questão. A eleição de António Guterres enche-nos de orgulho e leva Portugal mais longe, mas este foi um concurso internacional competitivo.
Qual foi a reação das filhas (com 6 e 9 anos)?
Este é um projeto de família, nós somos uma família e as famílias fazem as coisas em conjunto. As minhas filhas ficarão em Portugal, com o pai, até terminarem ano letivo. Em julho, a família reagrupa e, a partir daí, a nossa vida passará a ser em Genebra. A decisão foi ponderada, o concurso foi encarado como um projeto comum. E sabem que a mãe precisa dessa energia para poder continuar o trabalho que, a partir de agora, tem pela frente.
Que prazeres diários a renovam e servem de pausa a uma agenda muito cheia?
Chocolate preto com pimenta. Ver um filme com o Pedro [o marido], sossegados. Beijos e abraços das minhas filhas Carlota e Caetana. E do Lourenço e da Maria – os meus afilhados.
Mónica Ferro nasceu no Porto, em 1972. Com mestrado e frequência de doutoramento em Relações Internacionais é docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e investigadora associada do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género. Na Assembleia da República, foi vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Ocupou o cargo de vice-presidente do Fórum Europeu de Parlamentares para a População e Desenvolvimento (2015 e 2017), depois de ter sido durante 3 anos (2012/2015) membro do Conselho Consultivo do mesmo organismo. Entre 2011 e 2012 coordenou o Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento e o grupo parlamentar do PSD na Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas. Foi secretária de Estado da Defesa no XX Governo Constitucional. Dedica-se há vários anos ao estudo das questões relacionadas com População e Desenvolvimento, no âmbito dos Direitos Humanos. É, a partir de 1 de Abril, a nova diretora da Representação Regional em Genebra do Fundo das Nações Unidas de Apoio à População. Criado em 1969 e dirigido atualmente pelo médico nigeriano Babatunda Osotimehin, tem como principal objetivo «entregar um mundo onde cada gravidez é desejada, todo o parto é seguro e o potencial de cada jovem é cumprido».