Entrevista Alexandra Tavares-Teles | Fotografias Jorge Simão
«Desta vida na música a parte de que menos gosto é a das entrevistas. Desculpa, é a verdade, faço-o apenas por obrigação, porque tem de ser.» Matias Damásio, nascido em Benguela no ano de 1982, não esconde a franqueza. Nem a falta de à-vontade diante do gravador o leva a evitar questões, temer perguntas, reprimir a expansividade. Assim, a conversa abre com um abraço do músico e a promessa de total disponibilidade, falhada há uns meses a primeira tentativa de entrevista. O palco foi o Atlântico Blue Studios, em Paço de Arcos, nome de oceano que liga Angola a Brasil e a Portugal, e conjuga três continentes caros ao músico. Num dos estúdios revestidos a pedras de basalto, xisto, calcário e ardósia e a madeiras àcer importadas do Canadá para que o som possa ser mais definido e aberto, Matias Damásio foi contando de si e da sua música, cumprindo o prometido: praticamente sem pressa.
Uma estreia hoje, a 2 de agosto, no Meo Sudoeste. O palco é o local onde se sente mais confortável.
Antes do palco, gosto muito da fase de criação. O violão, o papel é onde tudo começa. Mas o palco é, de facto, uma satisfação muito grande. Ali é a minha casa, nele encontro as minhas energias completas, estou a vontade para mostrar quem sou. Em palco, consigo mostrar-me. Tenho até um defeito, sou um bocado egoísta: quando entro para o palco faço uma festa só com os músicos. Dou conta que estão a bater palmas apenas no fim de cada música.
Essa importância do palco revela-se em que aspetos? Por exemplo, subia a um palco agora, com essa roupa (calças, colete e camisa)?
A roupa do dia-a-dia não entra em palco. Ajudam-nos nesse processo vários estilistas, pessoas que trabalham com moda, assessores que trabalham connosco. São muitos concertos e uma das coisas mais importantes é não repetir a roupa.
É assim tão importante?
As pessoas tiram fotos e existem redes sociais. Facilmente se consegue identificar se o Matias usou ou não a mesma roupa. E como o design do palco é sempre muito parecido, corre-se o risco de parecer o mesmo espetáculo. Portanto, a diferença tem de estar no guarda-roupa.
A palavra final é sua?
Sim, no sentido em que eles buscam aquilo que eu gosto ou dentro desse padrão. Tenho de me sentir à vontade com a roupa.
Que padrão é esse?
Não sou muito extravagante. Tem sempre que ver com os temas, com a postura musical que temos tido e com o tipo e fãs que fomos conquistando. Gosto de usar blazer, colete, calça, sapato, um estilo de alfaiataria, mais formal. Não uso roupa sport num show. O palco merece uma coisa mais trabalhada. O palco é um lugar sagrado, merece um certo respeito.
Improvisa em palco?
Nunca canto a mesma canção da mesma maneira. Depende do ambiente. Se, por exemplo, tenho ou não o mar ao meu lado.
Que se passa nos momentos que antecedem a sua entrada em palco?
Um copo de vinho tinto não pode falhar.
Que mais não pode faltar no seu camarim?
Só bebo vinho e não sou guloso. Talvez um salgadinho.
Em setembro esteve nos Coliseus (Lisboa e Porto). Não foi uma estreia, mas foi diferente. Ou não?
Muito diferente. Cantámos nos Coliseus há uns cinco ou seis anos, numa altura em que a minha carreira era virada apenas para a minha comunidade. Hoje, estamos num processo novo, noutra fase, com fãs que fomos conquistando sobretudo em Portugal – 80 a 90 por cento são portugueses – e, por isso, estes Coliseus foram especiais. Marcaram uma reentrada no mercado português com um posicionamento diferente, com uma editora, a Sony Music, e com uma produtora.
«Sou a primeira geração da minha família a vir a Portugal.»
Quando há dez anos se apresentou pela primeira vez em Portugal, Portugal não pareceu muito interessado. Agora sim. O que mudou?
Costumo dizer que a parte do artista termina quando o CD está pronto. Na verdade, nunca tivemos editora em Portugal, e isso faz muita diferença. Por outro lado, Anselmo Ralph e C4 Pedro têm ajudado muito à divulgação da musica angolana. O Anselmo abriu muitas portas e outros palcos. E as pessoas foram despertando, começaram a interessar-me pela música de Angola. A kizomba, que teve um impacto muito forte no mundo inteiro graças também ao impacto que teve em Portugal, foi buscar as músicas. Neste caso, partiu-se da dança para a música.
Quem é o seu público?
Olha, o nosso público chega até nós de forma natural. Sou uma pessoa das canções, das letras. A minha música vem da viola e da poesia, li muita poesia angolana, estou muito ligado à poesia. Acho que se trata de um público transversal a idade, estrato social e cultural.
Quantos já venderam em Portugal?
O último disco, Por Amor, vendeu perto de 15 mil CD. É disco de ouro. O single Loucos é platina.
Neste momento vive em Lisboa ou Luanda?
Em Luanda. Mas como venho a Lisboa muitas vezes aluguei aqui um apartamento. Para ter uma ideia, estou a viajar 5 vezes por mês, numa uma agenda repartida e muito cheia entre os dois países. Há uma semanas, estive nos Açores num sábado e fiz um espetáculo no dia seguinte, domingo, no estádio dos Coqueiros, em Angola.
Como se recupera?
Dormindo muito. Um dos remédios para recuperar a voz é dormir. Não há muitos excessos até porque não gosto da noite. Então, aproveito as viagens de sete horas para dormir. E, quando chego, é descanso absoluto. Apenas exercícios vocais para manter a voz no limite.
Como é a sua vida em Lisboa?
Olha, é uma vida muito corrida. Aproveitamos para fazer as entrevistas e o resto do tempo estou em estúdio. Ou como músico ou como produtor. Depois, tenho os ensaios e os espetáculos.
Tem cá família?
Sou a primeira geração da minha família a vir a Portugal.
Gosta da gastronomia portuguesa?
Adoro comida portuguesa. Gosto muito de robalo. Com legumes e batata.
Tem cuidado com a alimentação?
Nenhum, como de tudo. Estou até no ginásio para diminuir um bocado ao peso. É o que dá comer sem regra, sem horas, muitas vezes em hotéis. 70 por cento da minha, da nossa, vida é vivida nos hotéis. Mesmo que se queira fazer um plano regrado, tecnicamente é impossível.
«”Filho, não gosto de musica africana nem de kizomba mas quando ouvi um preto a falar ‘Camões não inventou palavras’ descobri que era um preto que tínhamos de seguir’. Acho que foi coisa mais frontal que eu ouvi e de uma senhora de quase 70 anos.»
A família costuma acompanhá-lo?
Não, mas temos um amigo fantástico – o whatsapp. Todos os dias falo com os meus filhos. O Eli, de 13 anos, o Matias Raul, de 10 e o mais novo, o Gabriel, que tem 7.
Além de Portugal e Angola, em que outros países tem dado concertos?
Nos países de língua oficial portuguesa, sobretudo em Moçambique, Cabo Verde e São Tomé. Mas também na Europa, nas comunidades portuguesas, sobretudo em França.
No contacto diário, que imagem tem dos portugueses?
São simpáticos e disponíveis. O público chega a horas e é muito participativo.
Muito reconhecido na rua?
Já paro muito e já janto às meias. Quer dizer, janto e levanto, janto e levanto.
Começou agora em Portugal uma discussão sobre o nosso racismo e até onde ele pode ir. Já o sentiu em algum momento?
Não. Não mesmo. Para os angolanos, Portugal é um destino natural, quase obrigatório. Já passo férias com os meus filhos no Algarve há mais de dez anos. Uma tia minha diz que o angolano é a única pessoa no mundo que só pensa comprar casa em Portugal, não importa se tem um, dois, cinco ou mil milhões de dólares. Não escolhe Miami ou em Itália. Porquê? Porque aqui estamos em casa. Como se fosse uma coisa também nossa. Os angolanos preferem ter dez casas em Portugal a uma em cada país do mundo.
O que tem Portugal de Angola?
Respondo com o Beijo Rainha, um bloco do meu espetáculo em que convidamos algumas pessoas do público para subirem ao palco e dançarem connosco. Bem, eu que achava os portugueses sem jeito para dança, enganei-me redondamente. Têm tanto ou mais que nós. O jeito do português para dançar semba e quizomba deixa-me admirado. Dão toques como se fossem africanos. A ginga está lá, só é preciso libertá-la.
O que tem Angola de Portugal?
Assim de repente e depois da língua, claro, lembro-me da adoração por bacalhau. Em Angola, todo o mundo quer comer bacalhau. É uma coisa impressionante, sendo que não temos bacalhau nos nossos mares. Ah, e a vaidade. O português quando chega gosta de ser reconhecido. Acho que herdamos isso dos portugueses.
Qual foi o maior elogio que ouviu em Portugal?
”Filho, não gosto de musica africana nem de kizomba mas quando ouvi um preto a falar ‘Camões não inventou palavras’ descobri que era um preto que tínhamos de seguir’. Acho que foi coisa mais frontal que eu ouvi e de uma senhora de quase 70 anos.
É adepto de algum clube desportivo português?
Claro. Adoro o Benfica e sou um grande torcedor da seleção portuguesa. Gosto muito de futebol.
Nasceu em 1982. Foi, como já disse, o primeiro da sua família a visitar Portugal. Em criança, marcado pela guerra, que imagem tinha dos portugueses e o que imaginava ser Portugal?
Sou de uma geração em que o meu vizinho já é português, em que já havia, de novo, muitos portugueses em Angola. Benguela é das cidades onde sempre viveram mais portugueses. É a cidade mais mestiça do país. Lidar com portugueses era algo a que estávamos acostumados. Portugal era o sonho. Amigos que tinham vindo para Portugal mandavam fotografias tiradas em pontes, roupa e ténis muito bonitos e essas eram as referências que tínhamos. Referências de sonho.
Quando se é pobre dá-se muito valor a coisas simples. A uma sombra, a um copo de água, ao mar, às coisas que são para todos, que não custam dinheiro, coisas que se olham e das quais se diz «isto também é meu».
Que histórias ouviu do colonialismo?
Em casa, nenhumas. Na escola, sim, ouvi falar da necessidade do povo angolano se reinventar. Uma das coisas mais bonitas que aconteceu ao meu país foi essa capacidade de recomeçar, sem medo de errar. E sem nunca se render. Como diz um tio meu, é por eles terem ido embora que nós não continuamos nos bairros de indígenas e podemos ocupar os prédios da cidade. É fantástico as pessoas poderem viver na cidade, ter acabado a regra de que preto morava no bairro indígena e branco na cidade. Termos tirado os portugueses do nosso caminho para recomeçarmos foi muito bom.
De menino pobre a um dos artistas mais galardoados e queridos em Angola é impossível permanecer a mesma pessoa.
Sem dúvida. Quando crescemos pobres temos objetivos muito curtos. Ao longo do meu caminho a forma de pensar e a capacidade de acreditar foi mudando. Comecei a querer ter coisas, a comprar coisas. O dinheiro fez-me comprar coisas com que sempre sonhei. Por vezes, coisas desnecessárias e fúteis, mas tive de passar por esse processo.
Por exemplo?
Carros caros, casa com piscina sem necessidade, viagens para certos sítios apenas porque queria mostrar que também podia viajar. Outras menos fúteis: pude comer o que não comi quando era miúdo. Queijos, fiambres, nunca tive isso na mesa durante a minha infância. E as vaidades.
Vaidades?
Já gostei muito de carros, hoje nem por isso. Há quatro anos que não compro um mas nos primeiros anos tive todas as máquinas. Comecei a ter dinheiro desde o início da minha carreira. Mal gravei o meu primeiro CD, aos 24 anos, entrei para a história e ganhei alguns milhares. Não desequilibrei muito porque tive a meu lado a minha mulher. Nem nunca fui arrogante, isso não. Mas a cada dia que passava, ia despertando, compreendendo e desejando as iguarias e as delicias da vida. Desde logo, dar uma vida melhor à família e uma escola melhor aos miúdos.
«É bom que esteja claro que para mim a música nunca foi uma questão de arte – entro para a música para resolver o problema financeiro da minha vida.»
Filho mais velho de dez, deixou Benguela arrasada pela guerra, e a família, aos 11 anos para ir para Luanda. Viveu sozinho durante quatro anos. Decisão sua?
Decidi sair porque queria ajudar a minha mãe e limitei-me a seguir o exemplo de outros amigos, da mesma idade. A guerra provocou isso, crianças que saiam de uma cidade para outra à procura de melhor vida. É a guerra. Em Angola somos 34 milhões e cada um de nós já perdeu um familiar na guerra. Precisávamos de 24 milhões de psicólogos para recuperar disso. Porém, conseguimos superar e seguir em frente.
«Canto pelas pessoas que perdi e pelas coisas que passei». A palavra guerra traz-lhe que primeira memória?
Amigos mortos. Crianças como eu. Ajudei a enterrar corpos de crianças.
De amigos?
O Luís, amigo de infância, as gémeas Marisa e Sofia. Morreram na guerra. Tiros. Durante os tiroteios ficávamos 48, 78 horas dentro de casa. Saíamos depois para enterrar os mortos, por causa do cheiro. Sem sabermos se no dia seguinte estaríamos vivos. Vivi de perto os confrontos de 1992 em Benguela.
Tinha dez anos.
E sabe qual era o meu sonho, nessa altura? Era ser fotógrafo. Não tinha uma máquina mas adorava fotografia. Era uma das coisas que mais gostava.
Porquê a fotografia?
Via muitos fotógrafos e achava a fotografia uma coisa linda.
Fale-me do embondeiro de Benguela.
Quando se é pobre dá-se muito valor a coisas simples. A uma sombra, a um copo de água, ao mar, às coisas que são para todos, que não custam dinheiro, coisas que se olham e das quais se diz «isto também é meu». O embondeiro ficava perto de minha casa. Era nesse embondeiro que os meus amigos Guito e Timóteo tocavam violão. Ia ouvi-los quando podia e foi ali que eles me ensinaram a tocar. O Guito e o Timóteo deram-me a primeira viola. O embondeiro e o mar. O mar também é grátis. Passei muito tempo no embarcadouro de Kapossoka, onde atracavam os barcos de pesca. Ali, miúdo, escamei muito peixe, e mergulhei vezes sem fim no mar.
«Acreditei na viola e a viola salvou-me a vida», diria mais tarde.
A música e a viola mudaram completamente a minha vida e a vida da minha família.
Quando passa da paixão pela fotografia pela música?
Antes de aprender a tocar viola cantava coisas sobre a paz e sobre as saudades que tinha dos meus pais. Depois, aos 14, 15 16 anos, fui tocar em bares. Em 2003, com 21 anos, candidatei-me a um concurso na televisão pública. Fiz os testes, não passei, mas ficaram com o meu contacto, caso alguém desistisse. Acabariam por chamar-me e ganhei o concurso. Foi nessa altura.
De quem foi a ideia de concorrer?
Vi por acaso um anúncio na televisão e lembrei-me de experimentar. Ganhei um carro com zero quilómetros que vendi logo depois, por vinte mil dólares. Comecei a perceber que a música poderia ser a minha salvação. Até esse momento, não era uma coisa que eu achasse que iria ser a minha vida. É bom que esteja claro que para mim a música nunca foi uma questão de arte – entro para a música para resolver o problema financeiro da minha vida. A arte eu tinha, cantava em bares, mas a maior motivação foi perceber que poderia ter grande retorno financeiro. Dediquei-me a produzir, a cantar, a escrever, para mim e para outras pessoas, e comecei a ganhar dinheiro de várias formas.
Às vezes levo o filho mais velho ao sitio onde nasci, ao meu bairro em Benguela, o bairro da lixeira, lixo que as pessoas limparam para aí construíram as suas casas. Porque não tinham terrenos. Quero que ele conheça a minha realidade, que tenha tarefas em casa.
Quando se apercebeu do jeito, do talento?
Quando ganhei o concurso e o carro entre muitas centenas de concorrentes, percebi que poderia ser uma estrela. Foi um concurso nacional. Ganhei como compositor e como interprete, sendo que algumas das músicas concorrentes tinham sido escritas por grandes compositores. E «eusinho» ganhou aquilo. Senti-me com um reizinho na barriga, confesso.
Nem dormiu.
Nem um segundo, sempre a pensar no carro. Liguei umas dez vezes a perguntar quando mo iam dar. Uma semana depois, deram-me a chave. Vendi-o imediatamente à organização do concurso. O carro nem saiu dali. Entrei, tiraram-me uma foto, e vendi-o. Na altura, os meus pais já estavam em Luanda, juntámos forças, comprei um terreno e fizemos a nossa primeira casa, um quarto/sala que ainda hoje existe.
O que diziam os pais ao filho artista?
Os meus pais acreditavam que a única forma de sobreviver à pobreza era estudar, ser engenheiro, doutor ou professor. Tinham medo que me magoasse com a arte e nunca apoiaram essa parte. Repare, os meus pais são praticamente analfabetos. A minha mãe era lavadeira, empregada doméstica, e o meu pai vinha da tropa e foi reenquadrado nas forças armadas.
Foi um bom aluno?
Fui obrigado a ser. Mas sempre gostei e ler. Sou viciado em literatura angolana. Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Jacinto de Lemos, li tudo e todos. Sou pobre em literatura internacional, muito pobre, não leio quase nada mas de autores angolanos li tudo.
Esse gosto pela leitura começa na escola?
E em casa. O meu pai, como todo o pai pobre, fez muitos filhos. Mas foi sempre muito dedicado aos 10. Puxava muito por nós. Éramos obrigados a tirar positiva, a desenhar para a turma toda para ganhar uns ténis.
É técnico de ciências de educação, deu aulas de português e matemática. Imagina-se a regressar ao ensino?
Depois da música seria muito difícil.
Como é a relação do seus filhos com o dinheiro?
Os meus filhos não têm luxos. Desde logo, não usam marcas. Roupa bonita, sim, mas ponto final. Às vezes levo o mais velho ao sitio onde nasci, ao meu bairro em Benguela, o bairro da lixeira, lixo que as pessoas limparam para aí construíram as suas casas. Porque não tinham terrenos. Quero que ele conheça a minha realidade, que tenha tarefas em casa. Que lave o carro, o quintal, as cuecas quando vai tomar banho, que ajude a tia a lavar a loiça.
Quem lhe trata dos negócios?
A minha mulher é gestora dos nossos negócios, inclusivamente é a diretora geral da Arca Velha, a minha produtora. A empresa tem uma uma vertente social, quer apoiando outros artistas, quer algumas causas. Como o autismo, um problema que afeta o nosso filho Matias. Temos alguns projetos ligados a famílias que vivem o mesmo problema. Tanto mais que se trata de uma doença em que há ainda poucas certezas.
Um embate enorme.
O embate foi enorme. Nunca tinha ouvido falar em autismo. Nem sabia o que era. Depois do meu filho ter sido diagnosticado li muito sobre essa doença, fiz pesquisas e cursos, falei com médicos, procurei pessoas que pesquisaram esse tipo de problema e descobri que há poucos estudos. Foi muito choro diário, uma fase dificílima para todos. Sofremos muito. O Matias tinha 7 anos quando me chamou pai pela primeira vez.
Como reage à adversidade?
Julgava ser mais forte mas isso é algo que não se aprende. Não há forma de olhar para isto de forma simples. A única coisa que não tenho é pena. Não consigo ter pena da pessoas. Sofri muito mas continuo uma pessoa sensível. Não endureci. Do mesmo jeito que luto, choro. Do mesmo jeito que luto, caio. Não tenho capacidade anti-bala. Desmorono-me e reergo-me. E continuo a conseguir sorrir para a vida.
Como define a sua voz?
É muito difícil responder. Oiço os elogios mas não me sinto um grande cantor. E admiro muito aqueles que o são. Mas sou fã da sinceridade com que canto. Não canto nada que não sinta. A minha música nasce da viola. Tenho de pegar na minha viola e deixar sair uma letra que tenha alguma coisa a ver comigo, com a minha vida, com alguma coisa próxima a mim. Há uns dois anos comecei a ouvir dizer que o meu timbre de voz é muito bonito. Não ouvia esse elogio antes, confesso. Um dia destes começo a a creditar que tenho uma boa voz.( risos)
E a sua música? Não gosta de ser chamado um artista de kizomba…
Porque não sou. Sou um músico, venho da trova, do violão, da voz, que é base da minha música, uma música com melodia e poesia, que pode ser enquadrada num beat de kizomba, de semba, de fado, não interessa. O estilo para mim é acessório. A musica é o violão e letra.
No seu caso, o que nasce primeiro, a música ou a letra?
Em simultâneo. Pego na viola e ao primeiro acorde saem as primeiras letras.
Componho em qualquer lugar e a qualquer hora: no avião. No hotel, em Angola ou na China, no Algarve, de madrugada ou à tarde. O violão está sempre comigo.
A preparação de um CD leva quanto tempo?
Não tenho uma altura para gravar. De três em três anos, de quatro em quatro. Estamos a falar de quatro CD.
Quais são as suas influências musicais?
Michael Jackson e Michael Bublé. Sobretudo, sou fruto da música angolana dos anos 1940, 1950, 1960. André Rui, Rui Mingas, Filipe Mukenga, Bonga, David Zé, Artur Nunes. Uma música de intervenção à qual fui buscar a entrega, a harmonia e a alma.
Do futuro. O que deseja?
Estou satisfeito com a minha carreira mas quero muito mais. Quero cantar no mundo inteiro se possível. Se a minha voz permitir.
Onde gostava de cantar?
Nos maiores festivais do mundo, nos EUA, no Brasil. E desde já quero agradecer às muitas pessoas que passaram pela minha vida. E sobretudo a Angola e aos angolanos. Devo-lhes esta música e esta vaidade que trago comigo e que levo para o palco.
«O Luaty devia fundar um partido. Fazer a revolução não é fazer um motim»
Quais são os grandes problemas de Angola e de África?
Falamos de um continente que sofreu muito, que foi muito muito roubado, muito injustiçado. Tem de se olhar África como um continente que precisa de ajuda e de apoio. A colonização e as guerras civis são em grande parte responsáveis pelo atraso. Por outro lado, o desenvolvimento não é um processo mágico. Ainda temos muitos anos de trabalho pela frente. Veja, Angola perdeu 30 anos a colocar minas no chão. Uma mina para cada angolano. Nasci em 1982 e ainda tinha de ir para a escola por um só caminho. À minha volta era terreno minado. Vivi assim durante muito tempo e foi só há 14 anos. Por vezes exige-se muito de países que passaram por processos complicados. Falamos de alterar mentalidades, construir consciências. Sabe, há pessoas na minha família que ainda não sabem ler, que vivem nos matos e nos municípios onde só agora estão a chegar as estradas. O colonialismo impediu a formação de uma classe de intelectuais e de quadros médios e superiores. Não é possível alterar esta herança em vinte ou 30 anos.
Afirmou há pouco que fã de Jay-Z (rapper), que o admira como pessoa e artista. Conhece a musica do rapper Luaty Beirão?
Conheço o Luaty, sei que canta mas não conheço a música. Também me parece que ele nunca a deu a conhecer.
Sabe que Luaty esteve em greve de fome, na prisão.
Sou de opinião que as pessoas podem e devem manifestar-se. E que Luaty devia fundar um partido político e lutar nas eleições. Em Angola há muitos partidos políticos. Se tem a convicção de que pode ajudar o país, deve encarar a questão de forma menos emocional. Fazer a revolução não é fazer motim.
Ler livros deve ser crime?
Não é bem assim e há sempre dois lados da história. A única coisa que acho e quero dizer é que o país precisa de pessoas com ideias diferentes, que as defendam com toda a grandeza. Fundando, por exemplo, um partido.