Texto Ana Tulha | Fotografia Pedro Granadeiro/Global Imagens
A manhã de sábado ainda mal despertou e o corrupio já se nota junto ao rio. Os carros chegam quase ininterruptamente ao parque de estacionamento do Clube Náutico de Ponte de Lima, com dezenas de crianças e jovens com sacos de desporto a tiracolo. Muitos trazem os casacos azuis do clube e a pinta de desportistas vai-lhes da cabeça aos pés.
Mas os imaginários destes jovens craques não são preenchidos pelos golos de Cristiano Ronaldo. Aqui, os exemplos andam de canoa e caiaque e têm a pagaia como companhia. Neste clube, os ídolos são de carne e osso e treinam ao lado deles.
O maior de todos chama-se Fernando Pimenta e também cá está, ombros largos e olhos pequeninos, a lembrar aos mais novos que ninguém se faz atleta de alta competição sem uma boa dose de sacrifício.
Aquele que é considerado o melhor canoísta português de todos os tempos é simultaneamente causa e consequência do sucesso de um emblema que vai no 26.º ano de vida e que, na última década, se tornou um fenómeno na modalidade, com um domínio inquestionável a nível nacional e resultados históricos fora de portas.
No meio da agitação, um homem que conhece os cantos à casa como ninguém vai comandando as tropas. «Acho que não há nada neste clube que eu já não tenha sido», diz Hélio Araújo, «sou um faz-tudo.»
A história do treinador de Fernando Pimenta e diretor técnico do Náutico – por agora – confunde-se com a do emblema. Começou na canoagem aos 16 anos, na Escola Desportiva Limiana, e aos 18 já era um dos sócios-fundadores do Náutico de Ponte de Lima. Estávamos em 1991. «Por essa altura entrei para a Faculdade de Desporto, mas faltava ene vezes para vir ajudar aqui.»
Vinte e seis anos depois, a dedicação ao clube mantém-se intacta, mas não será exagero dizer que quase tudo o resto mudou. A começar pela sede, que nos primeiros anos não passava de um edifício degradado no Largo de São João, no centro de Ponte de Lima, e que hoje engloba uma ampla e moderna infraestrutura junto ao rio (ver caixa).
Os limianos são campeões nacionais há dez anos consecutivos e na época passada venceram todas as 23 provas internas em que participaram. Ao todo, o clube teve nada menos do que 44 campeões nacionais.
Outra coisa não se esperava, até porque o número de atletas também disparou: dois anos depois da fundação do clube rondavam os quarenta, hoje ultrapassam os duzentos. Junte-se a isso o facto de o Náutico ter agora oito treinadores, estar aberto 12 horas por dia e até proporcionar várias carrinhas que permitem deixar as crianças em casa depois do treino.
O clube evoluiu muito ao longo do tempo. Os resultados desportivos também. Tudo com um orçamento anual que ronda os 140 mil euros, fruto de quatro fontes de financiamento fundamentais: as mensalidades pagas pelos atletas, as quotas dos sócios (quase 2500), o apoio municipal e ainda os patrocinadores. «Embora não sejam muitos», lamenta Hélio.
Depois de uma passagem pelos balneários, começa a roda-viva no hangar – o local onde estão guardados os caiaques e as canoas. Sem precisarem de instruções, os jovens atletas de pés descalços pegam nas embarcações, põem-nas ao ombro e encaminham-se para o rio.
Num espaço mais recatado da plataforma, também Pimenta se vai preparando para entrar, num processo mecanizado que não o poupa à curiosidade alheia. «Olha o saiote», comenta-se no cais, enquanto o craque vai pondo aquela espécie de capa nas pernas. «É para proteger da chuva e do frio», explica-nos Daniel Sousa. Aos 10 anos, o miúdo de cabelo ruivo que dá nas vistas é também uma das imagens de marca desta escola. «Sou campeão regional e nacional», conta, orgulhoso. E, no entanto, só chegou há dois anos. «Quando vim até tinha medo da água. Mas as minhas irmãs mais velhas passaram todas por aqui e a minha mãe insistiu.» Agora, é vê-lo falar sem grandes dúvidas. «Quero ser canoísta profissional.»
Daniel é um dos rostos dos êxitos que o clube tem multiplicado na última década. Os limianos são campeões nacionais há dez anos consecutivos e na época passada venceram todas as 23 provas internas em que participaram. Ao todo, o clube teve nada menos do que 44 campeões nacionais.
Numa das salas do edifício principal, percebe-se a dimensão do êxito. De uma ponta à outra, do chão ao teto, os troféus são tantos que a única questão que resta é como se vai arranjar espaço para os próximos triunfos. Nas paredes, os cartazes com os campeões do mundo e da Europa contam o resto da história.
«Se não existisse este clube, era menos uma medalha olímpica que Portugal teria, isso é garantido. E também é importante a formação cívica que se faz aqui. Não se criam só atletas, mas também cidadãos», diz Fernando Pimenta.
É que o trajeto de sucesso do Náutico está longe de se resumir aos triunfos nacionais, como comprovam as quase oitenta medalhas internacionais. Se Fernando Pimenta, com três títulos de campeão da Europa e uma medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012 (K2 1000), continua a ser o nome mais sonante, não faltam exemplos de outros canoístas com grandes feitos fora de portas. Como Nuno Barros, João Amorim e Samuel Amorim, campeões do mundo em maratonas (os dois últimos em juniores e sub-23, respetivamente). E dos campeões europeus Rui Lacerda, Duarte Silva e Ricardo Coelho.
Tudo à custa de horas diárias de treino e sacrifício. Até pelas condições atmosféricas, que, por vezes, não ajudam nada. «Se apetece na mesma ir para dentro de água com mau tempo?», pergunta Nuno Barros. «Sim. A competição é um pouco assim e temos de ultrapassar esses entraves. É óbvio que é mais difícil, até pelo risco de ficarmos doentes ou nos lesionarmos, mas ninguém atinge o êxito sem espírito de sacrifício e trabalho.» E ele bem o pode dizer. O soldado da GNR sai da cama às cinco da manhã para poder fazer treinos bidiários e continuar a competir ao mais alto nível.
Se a chuva não é um entrave aos treinos diários, com os ventos fortes a história é outra. Tanto que, para prevenir eventuais lesões, os atletas optam muitas vezes por um treino diferente, longe do rio, dentro das quatro paredes do ginásio. «Há sempre o risco de virar, porque nestas condições é mais difícil controlar o barco. Os movimentos são mais inesperados. O maior risco é para as canoas, porque são eles, com a pá, que controlam a direção do barco. E no inverno, quando se vira, há uma espécie de choque térmico. Nos primeiros dez segundos, quase não nos conseguimos mexer», diz o treinador Roberto Martins, mais um dos que ajudaram a transformar o Náutico numa espécie de ecossistema de canoístas bem-sucedidos.
Perto do rio encontramos outra prova dessa tendência vencedora. Francisca Carvalho, 17 anos, é campeã nacional em K1 500 há quatro anos consecutivos. Atualmente passa a maior parte da semana em Montemor-o-Velho, na residência universitária da Federação Portuguesa de Canoagem, mas tem a certeza de que o ambiente e as referências com que cresceu no Clube Náutico de Ponte de Lima fizeram toda a diferença. «Vejo o Pimenta como um exemplo», diz ela, que também já serve de inspiração aos dois irmãos mais novos, que convenceu a inscreverem-se na escola.
Quanto a Pimenta, há muito se habituou a servir de modelo de conduta. Mas nem assim o vice-campeão olímpico, que chegou ao clube em 2001, na altura com 11 anos, perde a modéstia. «Se sou o exemplo deles ou não, não sei. Sei que aqui não faltam exemplos. Têm de tentar absorver a parte boa de cada um para depois se construírem a eles. Claro que nós também fazemos esse trabalho, de tentar aconselhá-los.»
No final do mês, Ponte de Lima acolhe o campeonato da Europa de Maratona em Canoagem. E a vila já se candidatou à realização de um campeonato do mundo.
E lá vai destacando a importância que o Náutico tem tido na vida de todos eles. «Se não existisse este clube, era menos uma medalha olímpica que Portugal teria, isso é garantido. E também é importante a formação cívica que se faz aqui. Não se criam só atletas, mas também cidadãos.» Fernando sabe bem, até porque, na altura em que começou, também teve uma mãozinha dos mais velhos.
Um deles foi Nuno Barros. «Quando o Pimenta cá chegou, era um miúdo descoordenado, que sentia dificuldades em fazer alguns exercícios», recorda o atleta mais velho do clube, que já ganhou «tudo o que havia para ganhar» (só nunca esteve nuns Jogos Olímpicos porque a vertente de maratonas da canoagem não é olímpica). Mas não se cansa. E o papel junto dos mais novos ajuda à motivação.
«Eu também tive a vantagem de ter tido modelos a seguir. E isto é como uma corrente. Depois de encarreirada, segue aquele fio. Puxa-se o novelo e vem sempre a seguir.» E isso traz aos mais velhos uma boa quota-parte de responsabilidade. «Aqui somos uma família. Nem que não queiramos, acabamos sempre por ser referências.»
Entretanto, a pacatez do rio Lima dá lugar a um agitado colorido de caiaques e canoas que rasgam as águas com crescente velocidade, enquanto as pagaias se movem em sintonia. Mas, num grupo que inclui crianças desde os 8 anos, nem todos são tão ousados. É caso de Matilde, uma das benjamins do Náutico. Junto à margem, parece querer ganhar coragem para se aventurar. «Não consigo entrar sozinha», vai lamentando, com a irmã a acompanhar pela margem.
Os treinadores não a perdem de vista. A segurança é outra das grandes preocupações do Náutico. Além dos vários técnicos que vão com os grupos dos mais novos para dentro de água, todos começam por aprender o que fazer caso a embarcação vire, o que é «frequente nos primeiros tempos», garante Roberto Martins. «Quando estão a aprender, os professores incentivam-nos a virar, mesmo aos mais habilidosos, para depois saberem o que fazer quando acontecer sem querer».
Os cuidados são ainda mais importantes se tivermos em conta o elevado número de crianças que passam pelas instalações do clube para ter aulas: ao longo de uma época, serão mais de duas mil. É aqui que volta a entrar Hélio Araújo, o «faz-tudo» que não só esteve na génese do Náutico como ainda lhe garantiu uma vasta base de recrutamento.
«Orgulho limiano, escola de campeões.» O lema do clube salta à vista mas paredes da sede mas também se sente bem nos habitantes da vila, que habitualmente incentivam os filhos a experimentar. «É um verdadeiro embaixador do concelho», resume Vítor Mendes, presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima.
Foi ele que, a partir de 2005, desenvolveu um projeto de atividades náuticas em contexto educativo, que se traduziu em parcerias com muitas escolas do concelho. «É por aí que chega a maior parte dos atletas. Muitas vezes vêm fazer a primeira aula e querem logo inscrever-se.» O próprio Pimenta todos os anos vai a várias escolas de Ponte de Lima para motivar os mais novos para a prática da modalidade. Depois, há ainda as férias desportivas que, todos os verões, juntam no Náutico perto de oitenta crianças.
«Orgulho limiano, escola de campeões.» O lema do clube salta à vista mas paredes da sede mas também se sente bem nos habitantes da vila, que habitualmente incentivam os filhos a experimentar. «É um verdadeiro embaixador do concelho», resume Vítor Mendes, presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima. Por isso, a proximidade à autarquia também é grande. «O sucesso é tanto que quase nos obriga a apoiar.»
Além de ter cedido a infraestrutura onde se encontra o clube, e de existir um protocolo que garante um apoio financeiro periódico, a câmara ainda investiu, nos últimos anos, qualquer coisa como 1,6 milhões de euros no Náutico, aplicados «na requalificação e ampliação das infraestruturas e na reconstrução do açude no rio Lima» (dado que, na altura do verão, o nível da água baixava tanto que impossibilitava a prática da canoagem).
O resultado está à vista: de 30 de junho a 2 de julho, Ponte de Lima vai acolher o Campeonato da Europa de maratonas, havendo ainda candidaturas para a realização de uma Taça do Mundo e de um Campeonato do Mundo. Tudo fatores que ajudam a fazer do Náutico uma espécie de case study. «Há até várias delegações que se deslocam aqui para avaliar a forma como este sucesso foi possível, mesmo em termos de desporto escolar», diz o autarca.
Luís Capitolina, presidente do clube, resume a fórmula vencedora: «A filosofia abrangente de, através das escolas, chegar a todos os jovens do concelho, a capacidade técnica dos nossos treinadores e a dimensão que alguns dos nossos atletas já conquistaram, que também serve para chamar os mais jovens – é a junção de tudo isso que nos faz produzir tantos campeões.»
Com o aproximar da hora de almoço, o rio vai esvaziando. Entre os mais jovens, que, aos poucos, chegam à plataforma e vão saindo das embarcações, não faltam cabelos molhados. «Viraste?», perguntam a um dos mais pequenos. Nem precisa de responder. A T-shirt encharcada que vai despindo fala por si. Mas não parece desanimar nem um bocadinho. Até porque, se a motivação faltar, basta olhar para uma das extremidades da plataforma, onde o vice-campeão olímpico Fernando Pimenta termina mais um treino.
Número de atletas aumenta em todo o país
Se os títulos fazem prova do crescimento do Clube Náutico de Ponte de Lima, também o número de atletas valida a consolidação do emblema limiano: nos últimos cinco anos, passaram de 192 a 229, com o ano de 2013, que se seguiu à medalha de prata de Fernando Pimenta nos Jogos Olímpicos, a registar um número de inscrições recorde: 242. Mas o aumento do número de adeptos da modalidade está longe de se circunscrever ao Náutico, como revelam os dados fornecidos pela Federação Portuguesa de Canoagem (FPC). De 1972 praticantes em 2006, passaram a ser 2357 em 2012 e, na última época, foram já registados 2891. Vítor Félix, presidente da FPC, destaca cinco pilares que ajudam a explicar o crescimento da modalidade: «Os clubes, enquanto principais formadores de jovens talentos, a marca NELO, maior construtor de caiaques no mundo, a construção do Centro de Alto Rendimento de Montemor-o-Velho, os centros de treino existentes em Portugal e a melhor geração de sempre de atletas da canoagem portuguesa.»
Infraestrutura de topo
O Clube Náutico de Ponte de Lima conta hoje com instalações de topo, bem diferentes do edifício degradado que ocupava em 1991. Cedida pela câmara municipal local em 1997, a infraestrutura sofreu, nos anos recentes, obras de remodelação (igualmente suportadas pela autarquia), que fazem dela uma referência. Além dos dois hangares, por onde se distribuem as cerca de trezentas embarcações que o clube tem, há ainda dois balneários e três ginásios, em que, além das máquinas de exercícios habituais, são disponibilizados aparelhos próprios para os canoístas, como ergómetros, onde os atletas simulam o movimento feito dentro das embarcações, sendo possível perceber o número de pagaiadas por minuto, para aferir o rendimento.