Nos últimos anos, aliás, as minhas férias têm tido a mesma percentagem no mergulho – metade em água salgada, outro tanto em água doce. A aldeia, afiançava‑me o meu amigo, tinha rios e ribeiros incríveis, cascatas que aterravam em poças de águas translúcidas, praias fluviais desafogadas. Tudo perfeito, um diamante para os dias estivais. Mas eu continuava a torcer o nariz, e fazia‑o por um único motivo. A terra do Rui fica ali ao lado de Entre‑os‑Rios. E isso causava‑me arrepios.
Passaram 16 anos desde que a Ponte Hintze Ribeiro colapsou, precisamente em Entre‑os‑Rios, matando 59 pessoas. Até ao incêndio de Pedrógão Grande, em junho deste ano, aquela tinha sido a maior tragédia deste século no país. Ambos os acontecimentos são francamente perturbadores e a psique coletiva tem dificuldade em esquecê‑los.
Aos que morreram nada sobra senão a homenagem da memória, mas como é que se resolve a sensação de vulnerabilidade dos que ficaram? Ao fim de um tempo não importa tanto que a catástrofe tenha chegado na corrente da água ou no inferno do fogo. Importa mais o que ela diz: podia ter acontecido a qualquer um de nós.
Era por isto tudo que eu tinha tantas reservas em ir passar uma temporada ali: as férias são os dias em que acreditamos que a vida é bela e dura para sempre. A insistência, no entanto, acabou por funcionar. E ainda bem que isso aconteceu. Aquele último trecho do Douro, o que se aproxima do litoral por terras de Penafiel, Gondomar e Castelo de Paiva, revelou‑se mais arrebatador do que alguma vez o tinha imaginado.
Em boa verdade, as minhas férias foram tudo o que umas férias devem ser. Tiveram gargalhadas constantes e tiveram um bailarico no alto da montanha, tiveram comida de lamber os dedos e tiveram vinho sem demasiados efeitos secundários, tiveram saltos para a água e «olha a bomba». Tiveram uma subida épica de um afluente do Douro, o rio Mau, com água pelo peito e sapatos encharcados. Durante esses dias eu tive outra vez 12 anos. E fui imortal, como são todos os miúdos de 12 anos em férias.
No lugar que mais temi lembrar‑me da minha fragilidade, afinal, os dias duravam para sempre. Antes de me ir embora, o dono de um café junto à praia fluvial de Melres atirou‑me esta frase: «Toda a gente acha que isto é um inferno mas quem aqui vem pode bem descobrir o paraíso.» E eu fiquei a pensar naquilo. Que ninguém gosta de voltar ao lugar de uma tragédia. E que, quando a tragédia é de muita gente, os lugares ficam condenados a um certo purgatório.
O Douro foi classificado Património da Humanidade poucos meses depois da queda da Ponte Hintze Ribeiro. E, desde 2001, o vale que rodeia o rio afirmou a sua pujança como nunca antes. Este trecho onde ele se junta ao Tâmega, no entanto, foi‑se tornando cada vez mais invisível. É de uma beleza assombrosa, mas quase ninguém a quer ver. Entre‑os‑Rios como Pedrógão Grande são paraísos onde todos nós vimos o inferno. Não podemos mudar‑lhes o nome, mas talvez possamos dar‑lhes uma oportunidade. Só regressando aos lugares das tragédias lhes podemos quebrar a maldição.