Texto de Rui Pedro Tendinha
Fotografia de Nuno Pinto Fernandes/Global Imagens
É uma história de mulheres. Onze mulheres portuguesas. Com idades variadas, vão de Vinhais (Trás-os-Montes) até Fátima para as cerimónias do 13 de Maio. Nove dias de peregrinação, quase 450 quilómetros, muitas discussões, bolhas nos pés e um espelho do país.
Assim é este Fátima, realizado por João Canijo como se fosse um documentário. Uma «ficção documental» que envolve atrizes que se prepararam a sério para estes caminhos de fé. Fizeram peregrinações antes e algumas – Rita Blanco, Teresa Tavares, Cleia Almeida e Anabela Moreira – estiveram em Vinhais a viver e a trabalhar para encontrar as personagens que criaram em conjunto. É este o método de João Canijo. Tem sido assim ao longo dos anos.
Numa tarde chuvosa de março, o realizador e uma das protagonistas, Anabela Moreira, fizeram-se à estrada onde filmaram esta odisseia de fé. Para a reportagem da NOTÍCIAS MAGAZINE, voltaram a percorrer alguns dos caminhos por onde andaram em 2015.
Não se pode dizer que foi justiça poética colocar Canijo também a caminhar, pois ele próprio jura que foi de Coimbra até Fátima a pé para perceber o quanto custa pagar promessas. «Custa imenso, é muito difícil.»
«No meu próximo filme também não haverá homens. Em todo o mundo as atrizes são melhores do que os atores. Gosto mais de personagens femininas», João Canijo.
Anabela Moreira sofreu horrores: «Foi muito complicado, mas quis mesmo ir até ao fim para perceber o que estes milhares de pessoas sentem. O Canijo exige que o trabalho que fizemos antes apareça no ecrã. A rodagem em si não foi tão complicada, até porque éramos largadas da carrinha para a estrada e, depois, gritavam “ação”. A parte dolorosa foi o facto de não haver maquilhagem e eu ter de correr para ficar suada para o momento em que se começava a filmar.»
Para João Canijo, o importante neste relato de peregrinação não era fazer um discurso sobre a exaltação da fé. «Nada disso.» O cineasta de Sangue do Meu Sangue quis apenas observar, sem julgamentos. Quis que o espetador estivesse no interior de uma peregrinação e percebesse o que move quem está na estrada.
Depois, claro, não é a primeira nem será a última vez que Canijo filma maioritariamente mulheres. Assume-se como cineasta de atrizes e diz que gosta de estar no meio delas. «O único problema é a ciumeira entre elas, são muito venenosas entre si», diz antes de ser interrompido pela atriz fetiche. «Ele está a mentir, o João é um provocador. Já aprendi a conhecê-lo.»
Canijo ri-se, mas disso tem a certeza: «No meu próximo filme também não haverá homens. Em todo o mundo as atrizes são melhores do que os atores. Gosto mais de personagens femininas. As mulheres são provavelmente mais extremas, é isso… E as atrizes têm muito mais capacidade de entrega. Duvido que houvesse algum ator que fizesse isso dos nove dias a pé para preparação [Anabela fez uma peregrinação antes, para se preparar]. Eles dizem que adorariam fazer parte desses processos mas depois não fazem, mesmo os tipos mais novos com quem já fiz algumas experiências.»
O que se pode ver durante as duas horas e meia de Fátima, o calvário destas 11 mulheres, filmou durante semanas esta peregrinação no Portugal do interior, nas estradas dos confins e está aqui um espelho possível do país. «Um país desertificado e sem grandes perspetivas no interior. Portugal está completamente destruído e descaraterizado por ignorância e por necessidade de fugir à miséria.
Fátima foi filmado com o mesmo registo estético de um documentário. Anabela Moreira interpreta uma personagem, Céu, tem um guião, mas não há artifícios. «Não havia maquilhagem. Eu tinha de correr para ficar suada para o momento em que se começava a filmar».
As aldeias que estão bonitas não têm lá ninguém, estão abandonadas! As aldeias históricas são mentira… O Portugal que já filmei em 2007 no Mal Nascida está pior.» Anabela Moreira fala em «arquitetura selvagem». «Destruiu-se tudo o que havia. Não há planificação nenhuma.»
Apesar da dureza, esta ficção com contornos de documentário conserva um humor que nasce das embirrações destas mulheres. Parece improvisado mas surge do tal processo de escrita coletivo. Onze atrizes juntas numa situação extrema proporciona um tipo de comicidade genuína que não se fabrica, acontece… O estágio em Vinhais, que o espetador não vê, compensou.
O ponto de partida para este projeto, a pergunta a que Canijo queria responder era só uma: Porquê? «O porquê da necessidade de crença que leva as pessoas a fazer esforços até ao limite da resistência. A outra ideia-base passa pelo paradoxo da necessidade de acreditar na metafísica ou no transcendente com a mesquinhez do quotidiano e das relações humanas que podem sobrepor-se à necessidade de fé numa peregrinação.»
Nesse sentido, é também um filme onde o espetador é convidado a sentir, muito mais do que a espreitar, o que se passa num grupo de peregrinas. Apesar de se considerar ateu, Canijo tem muito respeito por todas essas sensações de desespero que nascem de um esforço físico destes.
«Tive muitas dores e a minha lesão do Ronaldo, como eu lhe chamava, tornou a peregrinação muito difícil. Mas não quis mesmo falhar, quis ir até ao fim. Se os outros conseguem, também tinha de conseguir», Anabela Moreira.
Para se preparar para a personagem Céu, a atriz fez a mesma peregrinação, o mesmo percurso que é recriado no filme: andou 430 quilómetros a pé, de Vinhais a Fátima, em 2014, com um grupo de peregrinos. Em 2015, durante as filmagens, com as outras atrizes, andou durante cinco dias em vários locais do país, para filmar em todos os cenários do percurso a convivência entre todas.
Andaram muito, mas não tanto como ela no ano anterior. O esforço valeu-lhe uma inflamação no tendão rotuliano num joelho. Foram mais do que uma prova de esforço. Foram uma prova de vida. Anabela não voltou a ser a mesma e os tempos em Vinhais em pesquisa para a personagem deram-lhe também uns quilos a mais – entretanto já perdidos, como se pode ver semanalmente na RTP na série Filha da Lei, em que é protagonista.
«Tive muitas dores e a minha lesão do Ronaldo, como eu lhe chamava, tornou a peregrinação muito difícil. Mas não quis mesmo falhar, quis ir até ao fim. Se os outros conseguem, também tinha de conseguir. Se sou atriz que gosta de sofrer? Não, não gosto de sofrer, embora cumprir a primeira peregrinação tenha sido um ato de fé. E depois conheci muitas pessoas, muitos peregrinos. Cheguei a criar amigos, como o Ti-Chico, que era quem organizava a logística das peregrinações. Ele convidou-me agora para me juntar a eles quando vier cá o Papa. Poderá ser uma forma de encerrar todo este processo, mas não sei se tenho coragem de o fazer.»
Para garantir o registo documental, João Canijo filmou sem margem de erro, sobretudo nos dias em que usavam peregrinos verdadeiros para compor as sequências. Nada podia falhar, tudo era complicado a nível de produção e de exigência. Anabela garante que houve dias em que as atrizes chegavam ao fisicamente limite.
Obviamente, esse «limite» foi bom para o filme. Canijo queria que no ecrã ficasse esse sentimento de cansaço, de irritação. E queria também um espelho de mulheres do interior reais nas suas personagens. Por exemplo, em virtude do estágio transmontano, Teresa Tavares chegou a ter borbulhas no rosto, coisa que agradou muito a Canijo. «As borbulhas estão a desaparecer. Come mais chouriço Teresa!», dizia-lhe o realizador. Nesse processo, ainda em Vinhais, e até antes, Anabela Moreira ia registando em vídeo o que via para depois enviar para Canijo.
De tanta filmagem nasceu igualmente o documentário Portugal – Um Dia de Cada Vez (2015), cuja realização é partilhada pelos dois. Em breve chegará aos cinemas o segundo volume, Diário das Beiras (título não definitivo). Um processo gigante… Talvez por isso, Fátima chegue aos cinemas com duas versões: uma de duas horas e meia e outra com mais 50 minutos, esta apenas em exibição no Cinema Ideal, em Lisboa. «A outra versão é a curta-metragem do filme. Só vou estar na apresentação da versão longa.»
CÚMPLICES
João Canijo descobriu Anabela Moreira num curso da ACT, Escola de Atores, em 2001. Foi professor dela e nunca a esqueceu. Em 2007, chamou-a para ser a protagonista de Mal Nascida e desde então nunca mais se largaram. No cinema e na vida.
Sangue do Meu Sangue, É o Amor, Portugal – Um Dia de Cada Vez e O Dia do Meu Casamento foram os filmes que se seguiram, os dois últimos com Anabela a partilhar os créditos como realizadora. «O próximo terá só o teu nome como realizadora», avisa João Canijo. São cúmplices. Um casal de cinema. Anabela não fala da vida pessoal, mas admite: «Somos companheiros em tudo.»