Texto de Cláudia Pinto | Fotografia de JFS
É um local de contrastes. Situado numa quinta, em São Domingos de Benfica, em Lisboa, dificilmente se perceberia tratar-se de um centro educativo, não fosse a presença de seguranças, os portões fechados à chave, as regras para entrar e circular, e em algumas zonas, vedações de arame farpado como forma de evitar eventuais fugas.
No Centro Educativo Navarro de Paiva (CENP) estão internadas 15 raparigas e 21 rapazes. Apesar de ser um centro misto, as unidades feminina e masculina estão separadas e não há contacto entre elas. É ali que passam os dias, deixando para trás uma vida de delinquência. Roubos, furtos, abuso sexual, carjacking, violência física, entre outros.
São os chamados «factos equiparados pela lei como crimes» que levam jovens dos 12 aos 18 anos [em alguns casos, pode prolongar-se até aos 21, dependendo da medida aplicada e se os atos foram cometidos antes dos 16 anos, quando ainda são considerados inimputáveis] a viver num dos cinco centros educativos existentes em Lisboa, Coimbra e Porto.
«O nosso papel não é formar artistas, mas ajudar estes jovens a desenvolver relações de confiança, a perceber que nem tudo é mau…e fazemo-lo através das artes», diz filipa baptista.
Os nomes são fictícios mas carregam histórias reais. São jovens com sonhos, projetos de vida e alguma revolta, com uma vida que se pretende diferente no futuro. Joana tem 18 anos e acaba de comemorar o seu segundo aniversário no Centro. Está a dois meses de ir embora.
«Vim para cá porque não cumpri com normas da sociedade», diz. Conta que no começo foi difícil «aguentar as regras», mas orgulha-se de ter já atingido a terceira fase, de um total de quatro, estando cada vez mais perto da autonomia. Estes jovens são avaliados todos os dias em cinco variáveis: higiene, relação com pares, relação com adultos, atitudes e cumprimento de normas e regras.
Consoante a avaliação, vão superando as fases (a primeira é a integração, seguindo-se a aquisição, consolidação e, por fim, a autonomia, que é uma espécie de preparação para a vida no exterior). Consoante avançam, vão tendo direito a regalias. Este passa a ser um objetivo para quem ali mora. Além das aulas e do calendário rigoroso de atividades, estes jovens participam no projeto «Artes circenses para a inclusão social», promovido pelo Chapitô.
Frequentam ateliês diversos, desde capoeira a rap, artes plásticas, performativas e circenses, com o objetivo de prevenir a reincidência criminal, através do desenvolvimento de competências pessoais, de autoestima, de aquisição de hábitos de trabalho e de disciplina. Têm ainda possibilidade de aprender o backstage do circo, ao nível da luz, do som, dos figurinos e dos adereços.
O projeto valeu ao Chapitô uma menção honrosa na 2ª edição do Prémio BPI Solidário no passado mês de junho. «São jovens que, não tendo tido grandes oportunidades na vida, conseguiram sobreviver, e com este apoio descobriram outros caminhos que podem abrir vias diferentes nas suas vidas», explica Teresa Ricou, fundadora do Chapitô, que trabalha há mais de três décadas com jovens infratores. Maria, há dois anos internada no Centro Educativo, distrai-se dos problemas no barro e nas artes plásticas. «Cometi três roubos mas em setembro vou sair.
«[O projeto do chapitô] é divertido, ganhamos mais confiança, aprendemos coisas novas. É a única parte do dia em que nos sentimos mais livres.»
Vou começar a estudar e tirar um curso de apoio à infância», afirma convicta, em contagem decrescente para uma nova vida. Apesar de o percurso não ter sido fácil, o discurso é fluido e as regras parecem estar interiorizadas. «Temos de pensar pela nossa cabeça. Se queremos algo, vamos conseguir.» Na atividade promovida pelo Chapitô, afasta «a raiva» e fica «mais relaxada».
A relação entre as jovens e os formadores é forte. Chamam-nos à parte, desabafam problemas, sentem- -se próximos. «Ouvimos muita coisa. O que falam connosco não é divulgado, trabalhamos a confiança e a nossa presença aqui acaba por ser um escape», explica Filipa Baptista, coordenadora executiva deste projeto no CENP e noutro, na Bela Vista, em Lisboa.
«Para estes miúdos, o Chapitô é uma descoberta. Há até uma resistência inicial. Dizem-nos: “não consigo”. Mas o nosso papel não é formar artistas, é ajudá-los no desenvolvimento de competências pessoais e sociais. Queremos fazêlos perceber que nem tudo é mau e fazemo-lo através das artes», diz a responsável. Por semana, são mais de 120 horas de atividades, e por ano são realizadas sessões a cerca de 150 jovens de três Centros Educativos: o Navarro de Paiva, em Benfica; o da Bela Vista, em Lisboa e o Padre António de Oliveira, em Caxias.
«Estes jovens estão a viver percursos de exclusão e têm de ter uma socialização acrescida. A possibilidade de refundar as suas vidas passa também por ter encontros sociais validados, devidamente reconhecidos e com marcas de positividade. Aqui confrontamo-nos, de certa forma, com uma contradição: jovens que necessitam de socialização positiva estão fechados.
O Chapitô funciona como um parêntesis no quotidiano deles», diz Américo Peças, consultor científico do projeto. Com o valor de aproximadamente 32 mil euros atribuídos pelo BPI Solidário, vai ser possível dar uma nova dimensão à iniciativa. «Queremos aumentar o número de formadores (atualmente, são cerca de vinte), contar com mais parceiros e promover mais espetáculos ao vivo.» Esta é aliás uma das particularidades que mais aproxima estes jovens da vida lá fora.
«Além da participação nos ateliês artísticos, estes jovens são colocados em situação, protocolada e negociada com eles e com os nossos parceiros, no sentido de apresentarem espetáculos ao vivo, a partir destas competências adquiridas, em escolas, centros de dia, jardins-de-infância, bairros sociais. Entendidos até agora pelo seu lado sombra, têm aqui a oportunidade de ser valorizados pelo seu lado luminoso», acrescenta o consultor. Para o coordenador do CENP, iniciativas como a do Chapitô são benéficas para o futuro destes jovens.
«Além das skills que levam, a partir dos diversos ateliês, ganham uma abertura para aspetos que antes da entrada no Centro não conseguiam ver porque não tinham interesse nem acesso, o que também lhes dá maior abertura para a vida lá fora. Alguns destes miúdos ficam fechados em determinado contexto, ou no bairro, ou no grupo de amigos. Não têm visão para além daquilo. O Chapitô é por isso um bom parceiro.» Na unidade masculina, a manhã é dedicada à capoeira, aos malabares e às artes circenses. Há quem se refugie nas pinturas e é com eles que falamos. «A vida é dura e difícil aqui mas já fiz algumas amizades», explica António.
Foi o roubo e o tráfico de droga que o levou para o Centro. Estará no CENP durante dois anos mas já tem projetos para o futuro: «quero ter uma vida melhor, tirar o 12.º ano, tirar a carta, arranjar um trabalho e gostava de ser educador num centro educativo como este», diz-nos. O colega Filipe conta que cresceu revoltado. A morte do pai, quando tinha 7 anos, levou-lhe a serenidade. «Nem sempre ia à escola, ficava na rua com amigos, fumávamos e roubávamos.
Um dia, fui apanhado», explica. Assume a vida no centro educativo como uma forma de «manter a mente limpa» e o que lhe custa mais é a saudade. «Gosto de receber a visita da minha mãe ao fim de semana e de lhe contar os meus progressos aqui dentro.» É a ela que oferece alguns desenhos que vai fazendo nas atividades em que participa. «Gostava de acabar os estudos e de arranjar um trabalho», diz. No Centro Educativo Padre António de Oliveira (CEPAO), em Caxias, vivem 24 rapazes. Aqui, o projeto do Chapitô distingue-se pela presença de uma enorme tenda de circo.
É aí que acontecem momentos de descontração, com acrobacias no trampolim, música de fundo e uma piscina por perto. Mas nunca estão sozinhos. «Têm de estar em permanente vigilância de um adulto, sobretudo por uma questão de proteção. Só num ambiente seguro é que podemos intervir da melhor forma», explica Sandra Borba, diretora do CEPAO. É por esse motivo que dormem em quartos individuais. «Investimos no sucesso destes jovens e trabalhamos para tentar reverter o seu “fado”.»
São muitas as regras e todos eles as interiorizam ao longo do tempo. Essa é uma das exigências das medidas cautelares, o que para alguns representa um enorme desafio. É o caso de Guilherme, quase maior de idade. «Só pensava em mim e fazia o que queria. Não gostava que me dessem ordens.» Está no Centro há ano e meio e tem o mesmo tempo pela frente. «Podia ter evitado… Consumia e vendia droga, não ia à escola e fazia alguns furtos», conta.
As saudades da mãe e do irmão são o que mais pesa em dias que demoram a passar. A idade não se coaduna com o discurso. Tem mais certezas hoje. Não quer voltar à mesma vida. «Sinto que cresci. Há muitos jovens que vivem num centro educativo e acabam por ir parar a cadeias ou sítios semelhantes a este. Outros morrem de overdose. Mas há os que têm sucesso e eu gostava de fazer parte desse grupo.» Não tem sido um percurso fácil, este, o da desejada mudança.
«O propósito deste Centro é fazer-nos mudar de vida. Caso contrário, continuávamos na rua e sem objetivos.» O projeto do Chapitô traz-lhe algum ânimo. «É divertido, ganhamos mais confiança, aprendemos coisas novas. É a única parte do dia em que nos sentimos mais livres.» Equaciona a hipótese de aperfeiçoar a formação em artes circenses (ver caixa). «Estou a trabalhar para isso», diz. Para a diretora do CEPAO, o Chapitô faz um trabalho «que lhes traz liberdade cá dentro. Para além das atividades de treino físico, mental, e enriquecimento artístico, trabalham um conjunto de emoções, adquirem noção de grupo e criam um grande sentido de união.
Tem sido possível apresentar um espetáculo para as famílias e para a comunidade. Ultrapassam uma série de limites criados por eles próprios e isso é extraordinário. É um grande contributo para a reconstrução destes jovens.»
CASA CHAPITÔ RECEBE JOVENS
Neste momento, o Chapitô tem quatro jovens saídos de centros educativos a aperfeiçoar os seus conhecimentos. «Temos vindo a instituir um programa pós-medida, sobretudo para os que revelam competências artísticas e vontade de aprofundar estes conhecimentos, durante o percurso que integram o projeto. Disponibilizamos uma casa de autonomia, onde podem estar seis rapazes, e mais duas pequenas casas, na zona do Castelo, onde podem estar até quatro raparigas. Podemos acolher até dez jovens que frequentam a nossa escola de artes do espetáculo, onde podem obter certificação académica e profissional», explica Américo. Para Teresa Ricou, o mais importante é mesmo «prevenir a reincidência após o cumprimento da medida e na saída para o exterior. Porém, o grande trabalho é proporcionar-lhes alternativas para não voltarem ao “local do crime”. O Chapitô é uma alternativa, procurando sempre incluir a família dos jovens na busca concertada de soluções criativas de qualidade.» Não tem sido incomum a descoberta de talentos desconhecidos por parte de alguns jovens, descobrindo assim novas perspetivas.
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