Nasceu na Ucrânia e aos dois anos, em 1922, desembarcou em Maceió, primeiro, Recife, depois, no Nordeste brasileiro, lugar certo para aprender o português mais legítimo. Numa cidade vizinha, ouvi uma analfabeta dizer ao correr da pena: «Maria Bonita, a mulher de Lampião, era um estrupício.» Clarice Lispector bebeu lá o português que ela levaria até lugares não frequentados. O escritor americano Benjamin Moser, que lhe fez uma biografia, diz dela: «A melhor escritora judia desde Kafka.» Isso não sei, mas ler Clarice Lispector lava os olhos.
Na feira do livro, comprei A Descoberta do Mundo, crónicas publicadas, entre 1967 e 1973, no Jornal do Brasil (editora Relógio d’Água). Já conhecia algumas. Como aquela, «Crónica Social», que abre assim: «Era um almoço de senhoras. Não só a anfitrioa…» e vai por aí fora. Por favor, não se corrija «crônica» e «anfitrioa»! Faz lembrar aqueles que escrevem «o autor por decisão própria não escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico», e depois estendem-se por um palavrório que, se respeita (e bem) o antigo e lindo «sumptuoso», boceja frases de polícia de trânsito a passar multa.
Nesta página, em Clarice Lispector ninguém mexe. Até por prudência. Um dia, Henfil, um ilustrador do jornal Pasquim, muito dado a acusações raivosas, meteu-se com ela. E ela respondeu: «Se me encontrar com ele a única coisa que direi é: olha, quando você escrever sobre mim, Clarice não é com dois esses, é com c, viu?» Ela é assim, com c e de português enxuto. Então, nessa crónica social, ela escreveu sobre nada. O poeta Manuel Bandeira disse de outro cronista: «Rubem Braga é sempre bom, mas quando não tem assunto então é ótimo. » Naquele almoço de senhoras, Clarice vai mais longe: escreve sobre nada e sobre ninguém. E tão bem. Descreve o pormenor de um garçom e uma das senhora se encontrarem leve e repetidamente, o cotovelo dele, o penteado dela, quando ele a servia. Saímos do almoço derreados de prazer.
Em outra crónica, Medo da Eternidade, Clarice fala de uma iniciação. O chiclet feito de chewing gum, estrangeirismos traduzidos do português de lei, chicles (na terra dela), chuinga (na minha). Foi uma irmã, mais velha, que a iniciou no mascar eterno, na meninice, no Recife. Como era possível uma coisa durar sempre? Foi mascando que ela descobriu um dos mistérios do universo, igual aos que animam os religiosos, com Deus, e os cientistas, com o moto-contínuo. «Acabou-se o docinho, e agora?», temeu ela. E a irmã: «Agora mastigue para sempre.» Clarice preferiu, disfarçadamente, deitar fora a coisa já sem gosto. Ela acabou a crónica aliviada, «sem o peso da eternidade sobre mim».
Como é bom ler bom. Frasesinhas: «Avisei a meus filhos que amanheci em cólera.» Ou crónicas inteiras, como A Entrevista Alegre. Pediram-lhe uma entrevista para um dos livros da série Livro de Cabeceira da Mulher. Ela acedeu, logo se arrependeu, mas já não deu para desmarcar. Apareceu-lhe em casa uma entrevistadora, jovem e encantadora. E Clarice faz a crónica da entrevista que Cristina lhe faz. Moça linda e adorável, Cristina. «Cristina pergunta-me: o crime não compensa, a literatura compensa?» Clarice é menos empolgada, responde: «De jeito nenhum, escrever é um dos modos de fracassar.» E assim por diante.
Cristina continua fascinando: «Cristina, você representa o melhor da juventude brasileira», escreve a crónica. E esta acaba com Clarice Lispector a convidar a entrevistadora para um jantar: «Até breve, Cristina, até ao nosso jantar. Você parece que também gostou de mim. O que é bom. Mas não sei por que, depois que li a entrevista, saí tão vulgar. Não me parece que eu seja vulgar. E nem tenho olhos azuis.» Como é possível ser tão grande cronista e, além disso, exímia com a carabina Winchester 94 calibre 30-30?