Carta a Donna Karan

Notícias Magazine

Tenho de confessar que conheço mal o seu trabalho, mesmo apreciando muito a frescura de alguns dos perfumes. Bem sei que as suas criações têm alcance mundial, mas em matéria de trapos sou o avesso das ideias feitas sobre a mulher. Nunca sei as tendências da estação, as cores da moda e os indispensáveis do roupeiro. Muitas horas a entrar e sair em lojas ou a experimentar peças deixam‑me com falta de ar. Hesito na escolha de combinações e até nos colares evito correr riscos. Viajo com o mínimo possível e nunca tenho bolsa de maquilhagem na mala.

Sempre me senti desligada da moda e adepta de que ninguém se deve deixar tiranizar por ela. Um quase desleixo que não me impede de respeitar quem leva o que veste muito a sério. Até porque a maneira como nos vestimos, penteamos ou maquilhamos fala. Diz coisas sobre o nosso temperamento e estado de espírito. Sendo coerente, revela um pouco do que somos. Com toda a liberdade que essa linguagem implica.

A verdade é que a roupa ainda é uma forma de opressão. Desde logo no local de trabalho, onde as mulheres são escrutinadas de uma forma claramente desigual. E o que dizer das brigas entre namorados quando ele não quer que a namorada vista isto ou aquilo? Ou do controlo social associado a comentários como «andar assim vestida já não é para a tua idade»?

Já começa a imaginar a razão por que decidi dirigir‑lhe esta carta aberta. Senti‑me surpreendida com as suas declarações no contexto do escândalo hollywoodesco envolvendo Harvey Weinstein. Bem sei que logo a seguir se desculpou e lamentou o comentário «estúpido», que atribuiu à fadiga e ao desconhecimento de pormenores sobre o caso de assédio.

Mas as palavras perduram: «Pela forma como nos expomos e como nos apresentamos enquanto mulheres… O que estamos nós a pedir? Estaremos a pedir que nos aconteça, ao mostrar toda a nossa sensualidade e sexualidade?» Claro que não pode ter querido dizer tal coisa. Porque o que vestimos fala, mas só os preconceitos arrancam à roupa coisas que ela não diz.

Gostar de exibir um decote não é sinónimo de oferecer o corpo. E uma mulher escolher um vestido insinuante não dá a ninguém o direito de achar que se está a pôr a jeito. Não é disso que se alimenta a indústria da moda, de beleza e sensualidade? De criatividade, arrojo, direito a transgredir as convenções?

No calor da polémica, apressou‑se a recordar que tem uma carreira de defesa dos direitos das mulheres. E é certo que a moda pode efetivamente ser uma arma de liberdade e de luta contra estereótipos. De defesa de culturas ameaçadas. Ou ainda de alerta para problemas ambientais. Mesmo sem perceber nada de passerelles já me senti comovida com as mensagens transmitidas por alguns estilistas. Com escolhas simbólicas como a de vítimas de violência convidadas a desfilar. Com a forma inteligente como figuras públicas usam o que vestem de forma ativista.

Costuma dizer‑se que nós, mulheres, somos muitas vezes as nossas maiores inimigas. Volta e meia não consigo deixar de sentir que é verdade. Nenhuma de nós deveria sentir‑se insegura com os quilos fora de sítio ou a celulite que atrapalha na hora de vestir biquíni. Nenhuma de nós deveria maquilhar‑se apenas para agradar seja a quem for. O espelho serve para nos devolver uma imagem, apenas isso. Não nos deve fazer perder demasiado tempo ou causar‑nos dúvidas sobre o que somos.

Apesar dos sinais de maturidade dados por desfiles de moda XXL, continuamos sem conseguir libertar‑nos. E estranhamente somos prisioneiras por uma coisa e pelo seu oposto. Continuamos agarradas a ideais impossíveis de beleza. E ao mesmo tempo críticas de quem mostra pernas, seios e o que mais lhe apetecer.

É por conhecer tão bem a indústria e ter tanto trabalho feito que as suas declarações me deixam de boca aberta. Os trapos podem servir para muita coisa, mas nunca para menorizar seja quem for. E para chegar a esta conclusão não é preciso gosto ou estilo. O bom senso basta.