“Ainda há crianças que não sabem que os animais podem sentir dor”

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Entrevista de Ana Pago

Houve uma série de alterações significativas em 2017, nomeadamente o facto de os animais terem deixado de ser considerados coisas. Estamos no bom caminho?
Sim, mas importa lembrar que isto que se conseguiu em 2017 é fruto de um trabalho de sensibilização de décadas, do qual resultou que a sociedade fosse exigindo aos políticos que tomassem medidas para estabelecer que os animais também têm direitos e sentimentos, experimentam dor. Não são propriedade nossa. Merecem ser tratados com dignidade e afeto. E nós temos de respeitá-los na justa medida, por isso acho que estamos no caminho certo.

Luís Montenegro, diretor clínico do Hospital Veterinário Montenegro, no Porto.

Ao nível do que de melhor se faz lá fora?
Tirando alguns fatores culturais que nos fazem ser diferentes de outros países e até ter outras formas de nos relacionarmos com os animais, no cômputo geral parece-me que também estamos na vanguarda, sabe? Não podemos dizer que só lá fora é que se faz tudo bem, porque não é verdade. Estamos a aproximar-nos. Nos últimos anos demos saltos qualitativos que nos colocam ao mesmo nível numa série de temáticas. Eu diria que estamos no caminho certo em relação ao que se faz pela Europa fora. Agora importa é estarmos sensíveis para que estas leis amadureçam e tenham aplicabilidade.

Por fatores culturais refere-se às touradas?
Refiro, se bem que mesmo elas já não encontram grandes aficionados junto das camadas mais jovens, pelo que irão acabar por desaparecer de forma natural. Inclusive, muitas das pessoas que defendiam as touradas gostam de animais. Vinham era com uma série de ideias feitas, incutidas durante anos pela sociedade e a cultura, que as levava a achar que aquilo não era fazer mal aos animais. Mas a situação está a evoluir positivamente: há cada vez menos aficionados, menos interesse. A médio prazo, de forma gradual, acredito que as touradas têm os dias contados.

E em que ponto fica a morte de animais para alimentação? Também é uma forma de exploração a ser combatida, como as outras?
Isso preocupa-me muito, confesso. Da mesma forma que houve várias situações que melhoraram e ganharam uma visibilidade que as beneficia junto da opinião pública, no caso dos animais de produção julgo estar a haver um retrocesso que faz com que possam estar a viver pior agora do que há umas décadas. E não só em Portugal. A questão coloca-se em todo o mundo civilizado. Sem cair em fundamentalismos, era importante ir incutindo a ideia de que estes animais também merecem melhores condições.

Devíamos fazer muito mais pelos animais de produção. Sentem a dor como os outros.

Enquanto consumidores, queremos é comprar um frango muito barato…
Ou uns bifes de porco a baixo custo, nem mais! Comemos demasiada proteína animal e não pensamos que o facto de nos chegar a esse preço implica que nasçam num sítio confinado, sejam tratados para terem um crescimento rápido e mal vejam a luz do dia antes de entrarem no circuito da comercialização e nos caírem no prato. Devíamos fazer muito mais por estes animais. Sentem a dor como os outros. Além de que se essa carne de consumo fosse criada em ambientes naturais, seria mais saudável também para nós. Mais: animais em pastoreio asseguram a manutenção e limpeza dos espaços florestais e agrícolas, reduzindo largamente o risco de incêndios.

(Foto: Shutterstock)

Como se consegue que todos percebam que eles têm direitos como nós, a serem respeitados como os nossos, quando ainda há quem atente contra o direito de outros seres humanos à vida, à liberdade, à integridade corporal?
Haver uma lei que criminaliza os maus-tratos faz com que as pessoas pensem duas vezes antes de maltratar, por aí já é bom. Depois cabe-nos educar a sociedade começando por sensibilizar as camadas jovens, porque fazendo-lhes chegar a mensagem são elas que à noite, ao jantar, vão transmiti-la à família e aos adultos de uma forma que nós não conseguiríamos. Temos um programa de ação junto das escolas, na zona do Grande Porto, em que estamos disponíveis para ir a qualquer uma explicar a necessidade de se tratar bem os animais. Por incrível que pareça, ainda há crianças que não sabem que um cão pode sentir dor, então atiram-no do primeiro andar para ver o que acontece.

Cuidamos melhor daquilo que conhecemos?
Em regra sim, razão por que apostamos muito na formação escolar. A 24 e 25 de fevereiro de 2018 teremos ainda o XIV Congresso Hospital Veterinário Montenegro, no Europarque, em Santa Maria da Feira, com uma novidade: uma sala de formação, destinada essencialmente a bombeiros e socorristas, gratuita para quem tem carteira de bombeiro, que visa responder às muitas corporações que nos pedem ajuda para saber como devem recolher os animais em segurança quando são chamadas. Este ano houve os incêndios, mas todos os dias são atropelados animais que não podem ficar a sofrer na via pública, abandonados. E para isso é preciso dar formação, porque falar é fácil. Depois é preciso fazer.

Que mudanças estão também por fazer ao nível dos apoios à saúde animal por parte do Estado?
Este governo já propôs, e bem, uma medida que pode ser um sinal de que as coisas estão a mudar, que é as pessoas poderem deduzir no IRS 15 por cento do IVA gasto com a saúde dos seus animais. Claro que isto é apenas um rebuçado. Entrará no mesmo pacote em que pomos as faturas do cabeleireiro ou do mecânico.

(Foto: Shutterstock)

Não deixando de ser positiva, vai dar muito pouco na conta final…
A saúde tem cada vez mais que ser uma só, a exemplo do que acontece noutros países: é impossível haver humanos com saúde se as pessoas não puderem garantir que os animais a têm. E nós ainda somos dos que taxamos a saúde dos nossos animais a 23 por cento quando a medicina humana não está sujeita a IVA. É algo que devia ser pensado muito a sério, tanto mais que se trata de saúde. De saúde pública.

As coisas estão a evoluir favoravelmente de forma muito acelerada.

O que se responde a alguém que diz que não quer saber dos direitos dos animais quando há tantas crianças a morrer de fome em África? É que há quem o diga, de facto.
A única resposta possível é que uma coisa não tira lugar à outra, nem ninguém está a tentar inverter a ordem de prioridades. Queremos, sim, que a sociedade deixe de praticar atos gratuitos de malvadez contra os nossos animais, sobretudo se os maltrata porque, até há uns tempos, era quase cultural atirar-se uma pedra a um gato ou dar pontapés a um cão. Ninguém aqui defende que toda a gente deva ter um animal, muito menos quem não os quer: essa é uma opção individual. Na dúvida, não sabendo se a família está preparada, é melhor não ter. Outra coisa bem diferente é fazer-lhes mal, e ainda por cima fazer-lhes mal sem motivo.

Mais de cinco mil queixas por maus-tratos a animais em 2016 são números vergonhosos. O que é que isto diz de nós enquanto sociedade? Enquanto seres humanos?
É terrível, porém tais números também significam que já há uma parte significativa da sociedade mais amadurecida nesta temática, que está atenta e denuncia. Vindo eu de um meio rural, ainda me lembro de que há duas décadas as pessoas consideravam um desperdício gastar dinheiro com a saúde dos seus animais, e agora não é assim. Mesmo aquelas famílias que não têm animais, se virem um cão fechado numa varanda, à fome, maltratado, denunciam. Existe uma crítica social positiva sobre a questão dos maus-tratos e a premência de se proteger os animais. As coisas estão a evoluir favoravelmente de forma muito acelerada.

O problema dos defensores dos animais é serem muito extremistas. Perdem a razão por isso.

Ser veterinário é mais do que tratar cães e gatos, passa muito por saber tratar também os donos. O que tem vindo a mudar no modo como encaramos os animais em Portugal nos últimos anos?
São família. Para nós, humanos, que integramos o animal da nossa família e o amamos, o mais difícil é justamente assimilar que o tempo de vida do animal é tão curto em relação ao nosso. Os avanços na medicina veterinária aumentaram-lhes a esperança média de vida para cerca de 15 anos, mas um dia vamos ter se saber parar. Um dia vai ser o fim. E custa-nos muito a perceber que, apesar de lhes termos dado tudo, de termos posto todos os recursos ao serviço deles, o normal vai ser nós termos várias gerações de animais ao longo da nossa vida.

O artigo 4º da Declaração Universal dos Direitos do Animal proclamada pela UNESCO afirma que «toda a privação de liberdade, incluindo aquela que tenha fins educativos, é contrária a este direito». Onde ficam os jardins zoológicos no meio disto?
Acho que temos de ser ponderados. Andar por aí a querer fechar os zoos seria fundamentalista, e o problema dos defensores dos animais é serem muito extremistas. Perdem a razão por isso. Se não fossem os zoos, muitos de nós não fariam ideia do que é um animal selvagem. Muitas espécies estariam extintas. Além de que, hoje em dia, os jardins zoológicos estão a mudar de formato e já não têm todas as espécies, apenas as que se adequam melhor ao clima de cada país. Eu seria moderado: ajudaria a que os zoos pudessem ter mais espaço e condições para os animais se sentirem adaptados. Na Alemanha, se calhar, é descabido ter animais de climas africanos, tal como em Lisboa não farão sentido ursos-polares. Há que agir com cautela ou corremos o risco de não os ajudarmos de todo.

(Foto: Shutterstock)

O que é que os animais nos ensinam?
Ensinam-nos todos aqueles princípios essenciais que a sociedade capitalista em que vivemos, sempre a acenar-nos com a cenoura do dinheiro, nos tirou. Ensinam-nos a partilha, a lealdade, a convivência em harmonia. Ensinam-nos a respeitar sentimentos, o amor incondicional. No fundo, devolvem-nos aos princípios mais básicos que nos trazem felicidade e nos fazem ser, de novo, pessoas completas. Tornamo-nos gente melhor graças a eles.