Texto Ana Pago | Fotografias Daniel Hambury
Afonso Romano não é um aventureiro interestelar, mas anda sempre com a cabeça noutros planetas. Falta-lhe a pose de guerreiro formidável, contudo podia cortar inimigos às postas (sabe usar sabres, espadas de cavaleiro, gládios romanos). Também nunca lhe deu para andar de licra ou com botas pelo joelho, mas até podia: afinal, ele próprio é um bocadinho super-herói. O português fez animação 3D para os animais de O Livro da Selva e o filme arrecadou o Óscar de Melhores Efeitos Visuais em fevereiro deste ano. Está agora a trabalhar no remake de O Rei Leão, com estreia marcada para julho de 2019.
«Não só ganhámos o Óscar da Academia de Hollywood com O Livro da Selva, como limpámos quase todos os prémios que havia para ganhar. Incluindo o segundo mais importante, da Visual Effects Society, na categoria de Efeitos Visuais Excecionais», conta o animador 3D de 28 anos, entusiasmado. Sempre foi um contador de histórias do melhor: enquanto os amigos liam o que outros imaginavam, Afonso entretinha-se a criar de raiz as suas bandas desenhadas, sobretudo comédias. «Duvido que alguma vez tenha a sorte de trabalhar de novo num filme tão premiado mas, seja como for, só fazer parte deste mundo é mágico todos os dias.»
Sentiu o mesmo assombro quando o seu primeiro filme, Guardiões da Galáxia, foi nomeado em 2014 para o Óscar de Melhores Efeitos Visuais, a única categoria que realmente o envolve por razões óbvias. «Perdemos para o Gravidade, do realizador Alfonso Cuarón, no entanto o fascínio do mundo profissional do cinema – ainda por cima com a Marvel – suplantou tudo.» Afonso tinha acabado de chegar de Bourg-en-Valence após três meses a animar a série infantil Babar e as Aventuras de Badou, entre julho e setembro de 2013. «Foi o meu primeiro trabalho full-time num estúdio francês chamado TeamTO, entre Lyon e Marselha. Ficava numa ex-fábrica de munições da Segunda Guerra Mundial transformada em estúdio de animação, o que era incrível.»
«Todos os dias penso na sorte que tenho em ver como tudo é feito e ser parte do processo. Sorte de estar por dentro.»
Já a viver em Londres (onde continuou até hoje), foi então convidado para animar os Guardiões da Galáxia da Marvel – “apenas” a gigante norte-americana de banda desenhada detentora dos míticos X-Men, o Incrível Hulk, Wolverine, Capitão América, Homem-Aranha ou Thor, um sonho. «Foi uma grande mudança de cenário, com imensa pressão, mas muito divertido», recorda. Curiosamente, apesar de os adultos terem mais noção do que isto significa, um dos melhores momentos de partilha aconteceu com as crianças da família, num Natal. «Estávamos a ver os Guardiões da Galáxia e uma das minhas primas pequenas emocionou-se quando o Groot – spoiler! – se sacrifica pelo bem dos amigos.»
Afonso fez parte da equipa de animação dessa cena. Sentir que o seu trabalho tocou tanto alguém próximo foi inexplicavelmente grande e gratificante. «Todos os dias penso na sorte que tenho em ver como tudo é feito e ser parte do processo. Sorte de estar por dentro», reconhece o criativo, para quem a cereja no topo do bolo é quando leva familiares, namorada ou amigos ao cinema e vê o trabalho de meses passar no ecrã em segundos, com direito ao nome nos créditos finais. Voltaria a animar para a Marvel entre fevereiro e abril de 2016: dois meses em Montreal, no duro inverno canadiano, a dar uma mãozinha no X-Men: Apocalipse.
Agora já só pensa no remake de O Rei Leão, da Disney, realizado por Jon Favreau.
Antes disso participou em Exodus: Deuses e Reis (2014), na atração Fast & Furious Supercharged Ride (que integra a visita à Universal Studios desde junho de 2015), nos Piratas das Caraíbas: Homens Mortos Não Contam Histórias (em 2016). Ao X-Men seguiram-se Assassino Americano e Vida Inteligente, ambos de 2017. Agora já só pensa no remake de O Rei Leão, da Disney, realizado por Jon Favreau. «Vai ser uma longa caminhada, o filme estreia apenas em julho de 2019», suspira. Seja como for, é o que tem mais significado pessoal para si, quase um aconchego da infância. «O original de 1994 foi a primeira longa-metragem que vi no cinema e ainda hoje o considero o melhor filme de animação de sempre.»
E o que é isto, afinal, de animar em 3D? É dar vida a uma personagem, a um objeto, diz Fonzo Romano. Gosta de dizer que os animadores são atores digitais, mas enquanto um ator é apenas uma personagem, ele pode ser herói e vilão ao mesmo tempo, na mesma cena. «Vários departamentos trabalham à vez até a cena estar pronta para o cinema, algo que pode demorar de alguns dias a meses, dependendo da complexidade.» Quando o shot lhe chega às mãos já tem o storyboard, o diálogo gravado pelos atores, o cenário 3D e as personagens a que vai dar vida, como fantoches. «Por vezes tenho de animar veículos ou naves espaciais, além de figuras. Acabo por ter liberdade criativa no modo como a personagem se move e expressa, vincando a sua personalidade.»
E como bom artista que é, nunca sente que a cena ficou realmente acabada. Já era um perfecionista quando andava no Colégio São João de Brito, em Lisboa, e foi parar ao quadro de honra em maio de 2006, por criatividade artística. «O processo de descobrir a minha vocação foi muito afunilado, do geral para o específico», revela. Sempre quis criar, só não fazia ideia do que seguir. Acabou por escolher cinema por englobar todas as etapas criativas, da ideia à produção que se segue. «Vi o curso na Universidade Lusófona [de 2007 a 2009] mais como uma forma de experimentar várias coisas – escrita criativa, design gráfico, storyboarding, edição, filmagem – e descobrir do que gosto.»
De 2015 a 2016 meteu-se ainda com o irmão Gustavo na British Action Academy, responsável por formar duplos de ação para Star Wars e Game of Thrones.
Ao apaixonar-se como um louco pelo 3D, fez Erasmus na Universidade de Salford, Manchester, para se focar apenas nisso. Por lá ficou até 2011. «Aprendi um pouco de modelação de objetos e personagens, iluminação, texturização, animação.» No fim, ao ver que não sabia o suficiente de cada área para enfrentar profissionais, dedicou-se a animar personagens num curso online intensivo de 18 meses na Animation Mentor, em que os seus mentores eram animadores da Disney, Pixar e Dreamworks – os melhores da indústria. Aí conheceu o professor e especialista de topo Arslan Elver, que o levou para Londres e para os estúdios da MPC onde hoje trabalha. Lançou-se num fósforo.
«O meu primeiro prémio, em fevereiro de 2012, deu-me muita confiança», reconhece Fonzo. Fez Robot vs Alien como projeto final em Salford e a curta-metragem de animação foi logo distinguida pela Royal Television Society (que todos os anos premeia o melhor trabalho audiovisual realizado, no âmbito do curso, por estudantes em Inglaterra). «Fui o único da universidade a ganhar esse prémio. Há tempos convidaram-me a revisitar a casa e percebi que me tornei uma referência do curso, tanto pelo prémio como pelo meu percurso, o que é um orgulho enorme.» Não contente com isso, de 2015 a 2016 meteu-se com o irmão Gustavo na British Action Academy, responsável por formar duplos de ação para Star Wars, Game of Thrones, Vikings e outros que tais.
«Na altura ele partilhava casa comigo em Londres, então decidimos levar as lutas de irmãos a outro nível», ri-se. Ainda não calhou chamarem-no para andar à espadeirada, mas entretanto Afonso já domina o sabre dos piratas, a espada longa dos cavaleiros medievais, o gládio dos gladiadores, a lança e escudo dos espartanos e o próprio corpo, numa espécie de body combat das ruas. Quem sabe quando tudo isto o vai ajudar a criar a sua própria coisa, a sua série, um filme, o que for? «Como animador, sou só uma ferramenta para fazer realidade da visão de outras pessoas, embora goste mesmo é de levar o espetador para outros mundos.» De preferência uns que ele possa inventar.
A alcunha que virou nome
Em Erasmus, na Universidade de Salford, todos os seus amigos eram ingleses ou estrangeiros, nada familiarizados com um nome tão português como Afonso. «É difícil de pronunciar em várias línguas. Estava cansado de ser chamado de Alfonso, Alphonse ou até mesmo Alfonzo», explica o animador 3D. No prémio de melhor curta animada que ganhou em Manchester, como não podia deixar de ser, está escrito Alfonso Romano. «Nem imagina como comecei a odiar aquele L!» Trazendo de novo um super-herói à baila, era o seu calcanhar de Aquiles. Até que os amigos mais chegados, uns italianos todos despachados, descobriram sem querer a pólvora.
«Começaram a chamar-me Fonzo e pegou. Toda a gente começou a perceber o meu nome à primeira», ri-se. Mudou o Facebook por brincadeira e habituou-se a ser o Fonzo durante dois anos. Mais tarde, no primeiro contacto com profissionais da animação e do universo do cinema, voltou a mania dos L. Teve de perguntar a várias pessoas o que achavam de usar uma alcunha. Ou isso, ou disparatava. «Houve uma resposta positiva e assim fiquei, não só para os amigos mas também na profissão.» Hoje em dia, o próprio pai trata-o por Fonzo.