Texto de Sofia Teixeira
Ilustração de Filipa Viana/WHO
Ignorar um assunto aborrecido ou um problema óbvio, na esperança de que ele deixe de ser um assunto. Quem nunca fez isto? Não nos queremos chatear, temos receio de melindrar o outro, não sabemos como abordar o assunto. Chama-se a isto «ter um elefante na sala».
Fazemos vista grossa, mas se, de início, o bicho pode ser discreto, o tempo passa e, alimentado a silêncios, ele cresce. O desconforto cresce com ele e chegamos à paz podre, aquele estado das coisas em que parece estar tudo bem, uma camada de aparência sobre uma base frágil que pode ruir a qualquer instante.
«[Não falar sobre o que nos incomoda] É uma forma de negação. Mas negar o problema não faz que ele desapareça. Pelo contrário, habitualmente exacerba-o. Quanto mais queremos não pensar em alguma coisa, mais pensamos», diz a psicóloga Catarina Castro Lopes
Depois vêm as discussões – que costumam ser a propósito de qualquer outro assunto que não aquele que é óbvio –, os amuos, o mal-estar, muitas vezes a raiva. É uma das conversas mais velhas do mundo, esta que diz que é preciso diálogo, que é essencial comunicar, mas o certo é que todos os dias são os pequenos nadas que ficam por ser dizer que azedam as relações.
«Podemos fazer isto por receio de que o assunto se torne mais real ou que falar aumente a sua dimensão», diz a psicóloga Catarina Castro Lopes. «É uma forma de negação. Mas negar o problema não faz que ele desapareça. Pelo contrário, habitualmente exacerba-o. Quanto mais queremos não pensar em alguma coisa, mais pensamos.»
Joana (nome fictício) tem 45 anos, quatro de casamento, oito como funcionária de uma pequena empresa. E tanto em casa como no trabalho, sempre esteve mais habituada a calar do que a falar. Dizer o que pensa foi uma coisa que começou a fazer há poucos meses no gabinete do psicoterapeuta onde vai uma vez por semana desfiar um rosário de queixas. À cabeça estava esta: um marido que não estrelava um ovo. «Durante três anos de casamento, ele não fez uma refeição. O expoente máximo da participação era ligar a perguntar-me se era preciso alguma coisa do supermercado.»
Mas, durante três anos, Joana nunca abordou o assunto. «Não queria discutir.» Mas o que aconteceu foi pior do que uma discussão: esta contrariedade, dia após dia, tornou-a azeda e mal-humorada. Não conseguia evitar sentir uma enorme má vontade em relação ao marido, estava a ganhar-lhe raiva. E mesmo quando ele perguntava o que se passava, ela evitava o assunto. «Tive uma educação dos tempos da outra senhora, a minha mãe era doméstica, nunca vi o meu pai e o meu irmão fazerem nada em casa. Casei-me com 41 anos e o meu marido, cinco anos mais velho, tinha tido uma educação como a minha. Mas passado pouco tempo isto começou a incomodar-me e foi crescendo de tal maneira que, ao fim do dia, tinha pouca vontade de ir para casa, jantava em silêncio ou respondia-lhe só com “sim” ou “não”. Se ele perguntava o que é que eu tinha, dizia que estava cansada. E estava… daquela situação.»
Sexo e dinheiro são por norma apontados como temas difíceis de abordar. Mas são um grão de areia no meio de tudo aquilo que pode ser difícil dizer.
A história de Joana ilustra bem as proporções que um assunto por debater pode tomar. Sentado à mesa, com ela e com o marido, esteve durante muito tempo um elefante tão grande que mal deixava espaço para estarem os dois na mesma sala. O pecado do marido foi nunca tomar a iniciativa de fazer. O de Joana foi o de nunca tomar a iniciativa de dizer.
O psicólogo Vítor Rodrigues defende que estas conversas que ficam por ter nos deixam um certo amargo de boca justamente porque impedem um melhor relacionamento. E isso importa porque, normalmente, gostamos das pessoas com quem queremos manter relações – ou nem sequer seria tão difícil ter a conversa.
«Muitas pessoas vivem constrangidas pelo número de coisas, temas, movimentos, hábitos ou expressões a evitar. A primeira coisa essencial consiste em acreditar na ideia de que vamos iniciar a conversa em nome do afeto. O desentendimento em si é que é o inimigo, não a outra pessoa ou grupo», diz o psicólogo.
Sexo e dinheiro são por norma apontados como temas difíceis de abordar. Mas são um grão de areia no meio de tudo aquilo que pode ser difícil dizer. Da sua experiência, Catarina Castro Lopes entende que estes temas podem variar bastante, de relação para relação, mas habitualmente têm uma coisa em comum: são situações desconfortáveis ou dolorosas.
«O nosso inconsciente costuma ter boa memória
e guarda tudo o que diz respeito
a relacionamentos», diz o psicólogo Vítor Rodrigues. «Esse é um dos problemas fundamentais que faz que muitos casais
se vão afastando
«Tendemos a fugir da dor ou do desconforto automaticamente.» Por isso, a psicóloga entende que a principal «regra» para ter conversas difíceis é a empatia. «É necessário estabelecer uma relação de empatia e confiança para conseguirmos que o outro se abra connosco. Ouvir o outro com curiosidade, procurar entender a sua perspetiva, mesmo que não concorde.»
«O nosso inconsciente costuma ter boa memória e guarda tudo o que diz respeito a relacionamentos», diz o psicólogo Vítor Rodrigues. «Esse é um dos problemas fundamentais que faz que muitos casais se vão afastando progressivamente: entre eles vão-se acumulando memórias de dor mutuamente infligida mesmo que não tomem consciência direta delas.»
Essas memórias vão criando um filtro entre as pessoas – e deixam de ser vistas como fonte de prazer e partilha. «O preço de escolhermos não falar sobre assuntos é o do evitamento: passamos a tentar não pensar, não sentir, não mencionar.»
Se num relacionamento feliz tudo flui com naturalidade, mesmo as conversas sobre os assuntos menos simpáticos, num relacionamento com problemas é fácil haver assuntos, sentimentos, desejos, aversões que deixam de ser referidos para evitar a guerra. «A consequência é que essa guerra tende a ficar no nosso inconsciente», explica Vítor Rodrigues.
Falta saber como terminou a história da Joana. Depois de anos de negação e evitamento, percebeu que estava errada. «É necessário mais energia e mais esforço para evitar o assunto do que para falar sobre ele. Um dia, ao jantar, disse ao meu marido: “Estou cansada de ser sempre eu a fazer o jantar e não acho justo essa responsabilidade ser só minha.”» Joana achava que iam acabar a noite a discutir. Não foi o que aconteceu.
«Depois de fazer um ar de surpresa, ele disse só: “Não sabia que isso era um problema para ti, começamos a dividir. Amanhã faço eu.” Desde há cerca de três meses, é ele que faz o jantar duas ou três vezes por semana, outras vezes traz comida feita da rua. Demorei anos e dizer uma coisa tão simples. Isto custou-me muitas rugas e cabelos brancos, sem necessidade nenhuma.»
LÍDERES AMIGOS DO DIÁLOGO
Falar ou calar é um assunto muito pertinente no contexto empresarial. E é aos líderes que cabe a tarefa de gerir a situação quando há um mal-estar evidente, mas silencioso, que pode estar relacionado com valores salariais, promoções, tipo de trabalho que cada um faz, entre outros temas bicudos. Além de fomentar uma cultura de abertura e diálogo – por oposição a um ambiente de trabalho no qual todos têm medo de dar opiniões – há algumas caraterísticas de liderança que contribuem para evitar silêncios penosos e facilitar a comunicação dos membros da equipa. Como estas, identificadas pela psicóloga Catarina Castro Lopes:
- O líder tem um estilo de comunicação assertivo, dizendo de forma objetiva o que pensa;
- Tem respeito pelos outros, não demonstrando sentimentos de superioridade;
- É confiante, decidido e realista, conseguindo negociar com os outros em vez de ditar ordens;
- Procura alternativas e discute caminhos alternativos, sendo sensível aos sentimentos dos outros e respeitando os seus pontos de vista;
- Pronuncia-se de forma clara, objetiva e construtiva, revelando competências relacionais e estabelecendo relações de confiança e de respeito.