Uma crónica diferente

Notícias Magazine

Quem me dera poder praticar desta vez algum otimismo. De bom grado dedicaria esta crónica aos dias limpos, ao orvalho das manhãs e ao suave fulgor da espuma das ondas avançando sobre o ouro do areal à hora a que o Sol declina; ao pernil assado do meu restaurante preferido, ao torpor do vinho tinto, às conversas sem fim e aos passeios entre muros antigos que o musgo invadiu, rente aos castanheiros e ao murmúrio de um riacho. Quase não há manhã, porém, em que as notícias não anunciem mais um naufrágio de refugiados no mar Egeu, outro trágico grupo de crianças mortas ao largo da Grécia ou da Turquia, um país que encerra as fronteiras e ergue um muro, um novo vírus letal que ameaça milhões de pessoas, outro responsável político que cede ao ódio e a essa espécie de cegueira negra que o acompanha e se espalha como uma nuvem escura, triste e imbecil.

Tenho, por isso, vontade de me alienar da realidade e a primeira coisa que me ocorre é uma crónica recente de Enrique Vila-Matas no jornal El País, na qual o escritor contava como, acossado pelo ribombar mediático de informações inúteis, se refugiou na casa de banho, na «calma histórica do lavabo», para se dedicar à instrutiva leitura de Lugar Silencioso, o ensaio de Peter Handke. Praticante regular da paz do WC, aí me oculto também para aceder às «verdades maiúsculas que, na verdade, só a literatura consegue capturar bem», conforme escreveu Vila-Matas.

Satisfatório para a prática recreativa da leitura, o refúgio sanitário é, todavia, insuficiente para aplacar o sobressalto do mundo. As más notícias passam pelas frinchas da porta e, além disso, é impossível prolongar indefinidamente a permanência no lavabo sem dar parte de excêntrico ou louco. Obrigo-me, pois, a descarregar o autoclismo. Componho a roupa e sigo para o trabalho perseguido pelos ecos da realidade, pelo clamor que descreve bombistas suicidas e ataques de drones, tráfico de menores, cidades cercadas, atrocidade e morte. Na sonolência do rebanho do trânsito, simultaneamente absorto e vigilante, sonho frequentemente com uma casinha num monte isolado aonde só chegasse o assobio do vento, o estrondo das tempestades e o barulho tranquilizador dos badalos do gado regressando a casa. Nesse lugar silencioso longe do tumulto todo, em paz, talvez fosse capaz de uma crónica diferente.

[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]