Três anos e dois meses depois de um acidente de automóvel de que fui testemunha, fui ouvida em tribunal. Estava em causa, se bem percebi, uma acusação ao condutor do veículo que terá provocado o sinistro (ai, ai, o vocabulário está a deslizar, estou aqui estou a chamar indivíduo ao rapaz) de que resultou uma morte. Se bem percebi, repito, porque da convocatória não constava nada que me elucidasse mais do que os castigos em que incorria se faltasse.
Quando recebi o papel, em julho passado, fiquei surpreendida: ia ser ouvida sobre uma situação que já tinha descrito num relatório para a GNR no local pouco depois do acidente; a duas companhias seguradoras nos dias logo a seguir; e à polícia, largos meses – seis? nove? – mais tarde. Se no depoimento à polícia eu tinha tido dúvidas – para que espelho retrovisor estava a olhar quando vi o choque? –, passados 38 meses a minha memória já tinha arrumado o episódio. Só poderia dar uma ideia geral, um ou outro detalhe mais nítido.
O dia de ir a tribunal chegou nesta semana e lá fui eu para a estrada – o tribunal fica a cinquenta quilómetros da minha casa. Depois de mim chegou um jovem visivelmente aflito, tão aflito que o identifiquei de imediato. Não o reconheci realmente, porque na altura do acidente não cheguei a perceber quem era o condutor. Mas a perturbação dele, ali entre as paredes frias do Palácio da Justiça, não dava margem para dúvidas. Tinha no olhar e nos gestos a contenção ansiosa de quem se imagina à beira de lhe acontecer o pior. Talvez antecipasse uma pena pesada, a juventude a gastar‑se numa cela, o cadastro marcado para sempre. Estava no tribunal, arguido e com pouco mais de 20 anos.
Na sala de espera das testemunhas, éramos quatro – dois homens cujos carros tinham sido atingidos, duas mulheres saídas incrivelmente ilesas da espetacular confusão daquela tarde de verão numa estrada secundária com pouco movimento. Tínhamos passado da pacatez total ao fogo-de-artifício de carros a chocar, a despistar‑se (a voar, na minha cabeça é quase isso que sinto) e a imobilizar‑se num silêncio de espanto, segundos antes de começarem os gritos e as correrias.
A manhã foi lenta, numa espera que nos deu tempo para conversar. Sobre o que tinha acontecido, sobre a vida de cada um. Uma das testemunhas tinha acordado às duas da manhã para estar a tempo no tribunal: vive a 340 quilómetros e todas as despesas da deslocação foram por conta dele. De regresso, levou um papel a justificar a falta ao trabalho.
Se estou a contar este episódio, cujo desenlace ignoro, é porque eu realmente gostava de ter a certeza, ou pelo menos a confiança, de que um julgamento nestas condições é justo. A história era simples, no geral fácil de recordar, mas podia não ser e isso podia enviesar a decisão. Passaram três anos, uma pessoa morreu, outras ficaram feridas, os seguros pagaram os estragos, o mundo continuou a girar.
Está o país enredado numa caça ao homem que mais parece uma farsa, foi visto ali, acolá e noutros dez lugares ao mesmo tempo, como se o futuro dependesse de ele ser metido nuns calabouços para finalmente respirarmos até ao próximo espalhafato. Mas todos os dias, em centenas de tribunais e departamentos policiais, há justiça a ser feita com uma lentidão assustadora e isso põe em causa a confiança num dos braços da democracia.
[Publicado originalmente na edição de 30 de outubro de 2016]