Tony Carreira

Tony Carreira foi condecorado pelo governo francês. Houve aplausos e contestação à homenagem e uma polémica com o embaixador português em Paris, que não quis acolher a cerimónia invocando regras de protocolo. O facto é que nos dias seguintes a imprensa e as redes sociais encheram-se de opiniões sobre o cantor. Esta é a história vista do lado francês. A de um emigrante que fugiu à pobreza, regressou a Portugal em triunfo e tornou-se o símbolo cultural dos avecs. Viagem à Paris onde cresceu, para perceber como um cantor de baile se tornou cavaleiro em França.

É um bom ponto para observar a Torre Eiffel, a Praça de Varsóvia. Fica a escassos metros do monumento mas do outro lado do rio, colada aos jardins de Trocadéro. É verdade que no verão está apinhada de turistas, mas ao início de uma tarde de janeiro não se vêem mais de duas dezenas de visitantes, todos empunhando câmaras fotográficas, mapas desdobráveis, guias de viagem. Ah, Paris. «Este é um dos lugares que mais gosto na cidade», diz Tony Carreira. «É óbvio mas não é demasiado óbvio.» O cantor estacionou o carro junto a uma rotunda movimentada, por isso a paragem é curta, duas ou três fotos e já está. Quando regressa ao automóvel – um Mini de cinco portas – é abordado por dois polícias de bicicleta. «Desculpe, você não é aquele cantor português? » É. Então um dos agentes cumprimenta-o efusivamente, fala dos vizinhos minhotos, dá-lhe os parabéns. Tony distribui sorrisos e, quando finalmente se despede, proclama: «Bem, pelo menos já me safei da multa.»

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Na véspera, o cantor tinha-se desdobrado em entrevistas para as televisões e jornais franceses. Não só tinha sido condecorado com o título de cavaleiro da Ordem de Artes e Letras de França como havia lançado o segundo álbum em língua francesa, Mon Fado. «Depois do sucesso do primeiro disco francês percebemos que agora podíamos apostar num consumo nacional, que ultrapassasse a comunidade portuguesa», disse Franch Zajar, o manager de Tony Carreira no país. De facto, a estreia gaulesa do cantor revelou-se promissora, vendendo 150 mil cópias e sagrando-se disco de platina num par de meses. Nos Fiançalles, France/Portugal – foi lançado em fevereiro de 2014 e é composto essencialmente por duetos com artistas francófonos reconhecidos. Aliás, a cadeia Fnac retirou o disco das prateleiras de World Music e vende-o hoje no corredor da Chanson Française. «E foi a partir daqui que reparámos numa certa viragem», conta Nuno Ferreira, guitarrista na banda de suporte do cantor. «Os concertos começaram a ter um público renovado, já não são só os emigrantes portugueses.» Em março, arrancam com uma digressão em França para testar as águas. Vinte concertos em 16 cidades, e quatro espetáculos em Paris.

Por mais que faça uma aposta noutra audiência, a base de apoio de Tony Carreira em França continua a ser portuguesa. Foi a partir da comunidade emigrante que o cantor começou a escrever a sua narrativa de triunfo. Antes do sucesso que o fez vender quatro milhões de discos e somar 60 marcas de platina nos 18 álbuns que criou, antes de encher as principais salas de espetáculo do país e angariar um regimento de seguidores fiéis, trabalhou que se fartou em festas nos subúrbios das classes trabalhadoras de Paris. E foi ali que se cimentaram as forças do músico. E as suas fraquezas, nomeadamente as acusações de plágio – que ele não recusa e considera «erros cometidos por ingenuidade».

Há um par de semanas houve uma polémica em torno de Tony Carreira. O cantor decidiu organizar uma cerimónia para receber as insígnias que o Eliseu lhe atribuiu pelo contributo para a cultura francesa e para as relações com Portugal. A comenda era importante, já tinha sido atribuída a nomes como Lobo Antunes e Bob Dylan, Amália Rodrigues e Clint Eastwood, Eduardo Lourenço e T.S. Elliot. Mas, primeiro na sua página do Facebook, e depois ao Diário de Notícias, o músico lamentou-se de a Embaixada portuguesa em Paris não ter querido acolher a cerimónia. Moraes Cabral, o embaixador, justificar-se-ia mais tarde com as regras de protocolo – não fazia sentido receber uma condecoração de um país no território de outro país. A exceção, no entanto, já tinha sido aberta. Em 2004, Mísia recebeu o mesmo título na representação diplomática de Portugal na capital francesa.

Os dias seguintes acabariam por revelar-se agitados na opinião pública, sobretudo nas redes sociais. De um lado, houve quem protestasse contra a posição do embaixador. Do outro, houve quem questionasse Tony Carreira como estandarte da cultura portuguesa. O tom inflamado de ambos os lados da barricada é proporcional à dimensão do fenómeno. Na adoração e na condenação. «É um produto musicalmente difícil de explicar e de definir porque não há nada igual. Mas lá que tem grande alcance tem, e é socialmente relevante », diz Tiago Pereira, um dos mais importantes etnomusicólogos da atualidade, criador do projeto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria e da série documental O Povo Que ainda Canta. «O fenómeno está colado à história de vida do cantor, a uma produção cuidada e por isso é um produto forte. E já se sabe que os produtos quando são fortes são sempre contestados tanto quanto venerados. Outro bom exemplo dessa dualidade é a [artista plástica] Joana Vasconcelos.»

Para muitos portugueses em França, ainda assim, Tony Carreira é o símbolo do sucesso emigrante. A sua história, em abono da verdade, é a história que sempre quiseram que fosse sua: a do rapaz que foge da miséria em Portugal, faz-se à vida, triunfa. «Há aspetos da biografia pessoal e artística de Tony Carreira que o aproximam de outros portugueses que desenvolveram processos migratórios semelhantes», diz Marta Vilar Rosales, socióloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. «As pessoas tendem a gostar, a reconhecer proximidades com outras pessoas que apresentam aspetos semelhantes ou que conseguiram cumprir projetos socialmente valorizados.» E há vários sintomas dessa identificação no público de Tony Carreira. Um dia depois de receber o título de cavaleiro da Ordem de Artes e Letras, o cantor foi almoçar a um restaurante a Dourdan, uma vila com dez mil habitantes, 56 quilómetros a sudoeste de Paris. Foi ali que o homem viveu durante 20 anos. Quando entrou, foi cumprimentado em festa por alguns portugueses: «Olha o Tony, que bom ver-te.» Nenhuma daquelas pessoas o tinha conhecido antes pessoalmente, e no entanto tratavam-no como uma visita de casa. Isso haveria de acontecer mais vezes ao longo do dia.

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Do lado francês, Tony Carreira também é um símbolo. «Os portugueses em França apresentam-se como uma comunidade coesa, muito ordeira e trabalhadora. É assim que a sociedade francesa os vê», explica a socióloga Marta Vilar Rosales. «A grande maioria dos emigrantes, quando saíram de Portugal, fizeram-no por razões económicas. Tal como acontece hoje, aliás. É uma comunidade muito grande e diversa, mas que está bem integrada no país de acolhimento.» E essa visão gaulesa haveria de evidenciar-se na cerimónia de entrega das insígnias ao cantor. Foi Michel Duncker, o decano dos apresentadores televisivos franceses, quem comandou a homenagem. Discursou durante vários minutos, elogiando o cantor e o contributo do povo português para a construção da sociedade do seu país. Falou de Tony Carreira como um ícone do trabalho e da humildade lusas: «Sabes», disse a meio do discurso, «tu és de uma geração de artistas que já não se fazem, és tão gentil comigo como com os operadores de câmara, as maquilhadoras, os técnicos de som. E é aí, nos bastidores, que se percebe a natureza do ser humano.»
Há então uma narrativa construída noutro território que explica como nasceu um fenómeno social português. É a história francesa de Tony Carreira que o torna o patriarca de uma das mais influentes famílias da indústria musical portuguesa, em que também se incluem os filhos Mickael e David. Praticam estilos musicais diferentes, que todos recusam apelidar de pimba. «O que eu faço é música ligeira, é pop», diz Tony. O filho mais velho aposta em ritmos mais latinos, o mais novo acrescentou urbanidade à batida. Para a mensagem ficar mais clara o pai tem, neste novo trabalho, um dueto com Adamo. Mickael Carreira já cantou com Enrique Iglesias, David Carreira com Snoop Dogg. Nomes relevantes, à medida de uma eficiente máquina comercial. Tudo à grande, tudo à francesa.

Todas as quartas e sábados há feira em Dourdan. Quando Tony aqui chegou, em 1973, era um rapaz de 10 anos – hoje tem 52. Portugal ainda não tinha saído da ditadura e aquela agitação, os produtos que se vendiam, eram um admirável mundo novo. «Havia a música, os discos, coisas que eu não podia conhecer no meu país. Então, quando saía da escola, vinha para aqui ajudar a carregar os camiões, para ganhar uns trocos.» Quarenta francos de cada vez, que ele usava para comprar pautas de guitarra. «Eu era um miúdo vindo de outro país, que mal sabia falar a língua e tocar guitarra tinha muito estilo. Foi por isso que me agarrei a ela, acima de tudo.» A música, bem vistas as coisas, é sempre uma boa ferramenta de integração.

Os dez primeiros anos foram passados numa aldeia da Pampilhosa da Serra, e a educação estava a cargo dos avós. O pai tinha abalado a salto no ano do seu nascimento, cinco dias de dureza até chegar ao eldorado. «A minha mãe veio quando eu tinha 6 anos, mas eu fiquei porque o meu pai queria que eu fizesse a quarta classe em Portugal. Aos 10 anos, veio ele buscar-me e apanhámos o comboio Sud Express para Paris.» Foi inscrito na segunda classe, mas em três meses avançou dois anos. «A minha disciplina preferida, e em que tirava melhores notas, foi sempre o Francês. Apanhei a língua com facilidade.»
Instalaram-se num apartamento na Croix St. Jacques, um bairro social com um grande relvado a separar os blocos de edifícios, onde os rapazes passavam tardes inteiras a jogar à bola. Hoje, passadas várias décadas, Tony Carreira emociona-se ao ver a janela do seu quarto de criança. «Passava horas ali, a praticar guitarra e a ouvir discos.» Toca-se à campainha do terceiro andar, é território das memórias. Explica-se a situação, há trinta anos a casa tinha outros ocupantes, será que podem ir visitar o passado? «Non», diz a voz do outro lado do intercomunicador. «Franceses», suspira o cantor.

O pai era pedreiro, homem de educação rígida, a mãe trabalhava numa fábrica de salsichas, onde ele haveria de entrar aos 16 anos, no fim do quarto ano de liceu. Tony põe-se a dar uma volta pelo bairro e depois decide ir espreitar a escola onde estudou. Demorava 20 minutos no caminho, meia hora se estivesse a chover. Agora o homem põe-se a espreitar por cima das grades do Colège Condorcet, «e isto está tudo na mesma». Era ali que passava os intervalos a dedilhar Beatles, e as miúdas a pedirem-lhe para cantar mais. «O meu pai não me deixava sair à noite, por isso o meu palco era aquele.» Depois retifica: «O primeiro palco de todos, na verdade, foi o Intermarché. Eu devia ter uns 11 anos e tinha aberto o primeiro supermercado na vila. Então havia um animador que prometia uma garrafa de vinho a quem cantasse ao microfone. E eu, pronto, fui lá. Não correu mal e levei uma garrafa ao meu pai.»
A comunidade portuguesa em Dourdan era pequena, mas com o irmão mais velho, dois primos e um amigo de todos, Tony decidiu formar a primeira banda. Chamava-se Irmãos Cinco, tocavam covers de tudo e mais alguma coisa. Êxitos pop, chanson française, sucessos portugueses que ouviam por casa. José Martins juntou-se ao grupo nesses primeiros tempos e permanceu até hoje um dos melhores amigos do cantor. «Eles ensaiavam na cave de casa do primo do Tony e eu era o técnico de som. No início começaram a fazer o circuito dos bares em Dourdan, mas depressa enchiam pavilhões com 400 ou 500 pessoas», conta agora, num jantar de um restaurante no nono bairro de Paris, um dos poisos preferidos de Tony Carreira na cidade.

Manuel Amorim é dono do Les Oiseaux, mas na verdade toda a gente trata o estabelecimento por Chez Manu. Serve-se alguma comida portuguesa, bastante francesa, mas quando vem Tony Carreira fecham-se as portas do restaurante e a sala para os comensais fica reservada para a comitiva do cantor. Mickael cumpriu aqui o 18º aniversário – e houve festa noite dentro. Atrás do balcão, Manuel guarda fotos antigas de Carreira, provas de uma amizade sólida com o músico. «Há muitas salas de espetáculo nas redondezas e por isso ele vinha sempre cá parar no final dos concertos.» Hoje a ementa é adaptada, há ostras e foie gras, e há bifes do lombo com batatas fritas. É sempre assim? «Não, às vezes só vai um peixinho. Mas hoje é dia de festa, que ele foi condecorado pelo governo francês.»

Um ano depois da criação de Irmãos Cinco, a banda começou a dar nas vistas. «Foi nessa altura que eu comecei a perceber o impacto da comunidade portuguesa em França», explica o cantor. Até aí, tinha estado resguardado desse mundo. Vivia em Dourdan, não tinha carro, o pai não o deixava sair quando queria. Aos 16 anos começou a trabalhar na fábrica, mas os fins de semana eram baile garantido, à boleia do irmão e dos primos. «Hoje as coisas já não são como eram, porque as segundas e terceiras gerações diluíram-se na sociedade francesa. Mas naquela altura todos os fins de semana havia grandes festas de portugueses. Era um mundo fechado, mas era muito grande», conta Carreira. Cada vez mais, os rapazes recebiam convites para ir tocar. Paris e arredores, primeiro, depois para outras cidades, até para outros países. «Mas o Tony, ao contrário dos outros, queria investir tudo o que ganhavam nos concertos», lembra José, o antigo técnico de som. «Comprar material de qualidade, instrumentos bons, uma carrinha para a banda. Acabou por apresentar a carta de demissão ao grupo e dizer-lhes que ia continuar sozinho.» Ele era, afinal de contas, a estrela entre os cinco.

Tony casou aos 20 anos, constituiu família. Durante a semana trabalhava em Dourdan, a cortar fiambre às fatias. Sextas, sábados e domingos tinha os concertos. «A meio dos anos noventa os organizadores das festas em Paris começaram a convidá-lo para ir a Portugal no verão, cantar nos bailes de aldeia que eles próprios financiavam», recorda o amigo José. Para as primeiras viagens tirou férias, e conduzia um dois cavalos cheio até ao teto. «Depois pedi dinheiro emprestado ao meu pai, comprei uma carrinha em condições e metia licenças sem vencimento na fábrica.» Prometeu devolver o dinheiro ao fim de três anos, mas conseguiu saldar a dívida num ano apenas. As coisas foram correndo cada vez melhor. E, em 2000, com 37 anos, conseguiu fazer o primeiro concerto no Olympia. O investimento foi seu, mas a casa encheu e aí ele decidiu mudar de rumo definitivamente. Despediu-se, agarrou na mulher e nos filhos e voltou a Portugal. Cantor e mais nada, era isso que ele ia fazer.

Hoje, em Dourdan, Tony Carreira faz o balanço à vida e não pode estar senão contente. Diz que nunca imaginou chegar tão longe, que nunca percebeu porque é que foi ele o escolhido, no meio de tantos outros músicos bons que o país tem, no território e nas comunidades. «É curioso, porque me sinto hoje um português de Portugal, mas há uma coisa que guardo dos anos que vivi em França, o patriotismo. A distância faz-nos suspirar mais pelo nosso país» Nostalgia e saudade, também foram essas disposições que o ajudaram a construir um império. E afinal é precisamente isso que o cantor oferece – seja no palco do Meo Arena, no piquenique de uma cadeia de supermercados ou num baile de aldeia. Ideias simples, com produção cuidada. À grande. À portuguesa.