Glory quer ser médica para ajudar as pessoas da sua aldeia. Que frase tão simples, parece o início de uma história banal de desejos generosos de menina. Mas nada há de banal nos 18 anos de vida de Glory, porque ela foi uma das 276 raparigas raptadas de uma escola pelo Boko Haram em abril de 2014, na Nigéria, rapto que foi muito noticiado, comentado e alvo de uma grande campanha de solidariedade – tragam as nossas meninas de volta!, disse meio mundo há dois anos e meio.
Algumas delas voltaram, umas porque foram entregues, outras porque escaparam de um camião. Glory é uma das fugitivas e há duas semana foi divulgada a reportagem de uma jornalista da agência Reuters, publicada no DN, sobre ela e as outras 23 que frequentam a Universidade Americana da Nigéria graças a bolsas de estudo que a instituição lhes ofereceu.
É uma boa notícia, mesmo sabendo que se perdeu o rasto a mais de duzentas das jovens raptadas. A universidade a que pertencem agora foi criada em 2003 pelo antigo vice-presidente do país, Atiku Abubakar – não confundir com o homónimo Abubakar Shekau, líder do Boko Haram. Aquele gigante africano, a Nigéria, com mais de 180 milhões de pessoas e cidades enormes como Lagos – oito milhões –, fervilha de vida e tem uma atividade artística intensa. Tem uma história longa e fascinante – quem se lembra de que o Biafra é parte do seu território? – e todo o tipo de contradições imagináveis num país africano em que coexistem vários «séculos» em simultâneo, com diferentes grupos étnicos, línguas, culturas e religiões.
Mas uma das ideias que ressaltam da história de Glory, venha ela a ser médica na terra onde nasceu ou siga outro rumo, é a necessidade de nós, jornalistas, termos tempo, meios e disponibilidade para procurarmos o dia seguinte, aquilo que acontece após as notícias iniciais: o rapto, a fuga, e depois? O que é feito das raparigas, das famílias, das meninas que conseguem estudar e das outras que ficaram guardadas em casa pelo medo? Um relatório lançado no ano passado pela UNICEF indicava que 1,3 milhões de crianças ficaram desenraizadas por ação deste grupo de extremistas islâmicos na região do lago Chade, impossibilitadas de ir à escola. O rapto de abril de 2014 foi sinistro por atingir 276 meninas num mesmo momento, e simplesmente por serem estudantes, mas esse não foi um ato isolado, foi apenas um dos mais mediatizados.
Todos os dias os jornalistas têm de acorrer a novas notícias e poucas vezes podem insistir em seguir o fio da meada. Que bom é saber que existe uma escola a acolher estas jovens, instalada na região onde o rapto aconteceu, derrotando também desta forma o terror e a ignorância. Tal como é bom saber que, do outro lado do Atlântico, a mexicana Karla Jacinto conseguiu escapar ao ciclo de tráfico humano e prostituição em que foi triturada dos 12 aos 16 anos e, depois de resgatada numa operação policial, se tornou uma lutadora contra estes crimes. Conseguiu ganhar controlo sobre a sua vida, ela que foi violada por vinte a trinta homens por dia durante esses tempos negros: 43 200 vezes, feitas as contas.
É habitual sermos acusados de nos limitarmos a dar más notícias, acidentes, catástrofes, intrigas e outras desgraças. Que bom que era se pudéssemos dar boas notícias todos os dias. Vá lá, todas as semanas já era bem bom. E entretanto vamos torcendo por Glory e por Karla e por todas as pessoas que conseguem reinventar o destino.
[Publicado originalmente na edição de 11 de dezembro de 2016]