Pinga-Amores

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Querido Júlio, a tua fé não é diferente da minha e também eu gostaria que lhe perguntasse: «Minha querida, estás aí?» e torcer para que a resposta fosse: «Totus Tuus

E depois? O que faríamos a estes dois pinga-amores?

A pergunta poderia ser respondida por um ou pelo outro. Fico indecisa quanto à posição a tomar. Se é ele que responde à sua própria pergunta poderia querer dizer que a solidão, a reflexão e o descompromisso da viuvez lhe teriam dado finalmente a capacidade de amar sem medo. Não seria tarde de mais para amar? Será que aos 80 anos pode amar-se com a mesma intensidade que na pujança dos 30? Será que um amor temido pode ser um verdadeiro amor aos 80? Como será a vida de um homem que aos 80 percebe que finalmente está livre para amar e que se quer comprometer com o seu amor? Como reagem os filhos ao amor do pai por outro alguém que não a defunta mãe. Como reagem os netos que acham ridículo que o avô queira partilhar a vida com alguém naquela idade e que lhe perguntam se ele está a pensar em ter sexo. Como integrar uma história que foi vivida a solo, numa outra vida que nunca a conheceu? Será que um homem que sempre teve medo de amar terá coragem de enfrentar a família, as suas opiniões, receios, questionamentos?

Será que basta alguma fé para quebrar tantos preconceitos relacionados com o amor numa idade maior?

E se foi ela que respondeu: «Sou toda tua.» Será que o eco das suas palavras chegará para «abrir a ponte da sua cidade estupidamente fortificada»? Será que continuar a ir ao encontro daquele homem estupidamente fechado será sinal de falta de amor-próprio? Como pode alguém amar, sem retorno? Amar é dar e receber e não se basta por si só. Como pode uma mulher de chapelinho de pelica esperar tantos anos por um velho que tem medo de amar? Será tola? Como pode o amor durar tanto tempo se não é alimentado com ações e palavras? Como pode uma mulher amar um homem que sempre teve medo de a amar? Será que a proximidade da morte a faz perdoar? Quem ama perdoa tudo? Todos os silêncios, recusas, desrespeitos? Será que a química continua lá? Como será viver intimamente com um homem, quando os corpos se alteraram, as carnes se enrugaram? Como lidar com as barrigas que se dilataram, as cicatrizes que sobressaíram? Onde ficam as memórias de uma intimidade escaldante quando os órgãos não se erguem, quando as mucosas secaram e tudo descaiu? Como será enfrentar os fantasmas de uma vida não vivida, com um presente que pode ser curto?

Será que basta alguma fé para quebrar todos os fantasmas relacionados com o amor numa idade maior?

Júlio, lembro-me bem da cara de espanto de uma audiência de quadros técnicos superiores da Segurança Social, quando do cimo do púlpito afirmei que a intimidade não tem prazo de validade e que aos 80 anos gostaria de continuar a ser sexualmente feliz. Ser sexualmente feliz aos 80 significa, entre outras coisas, que fomos capazes de resolver os nossos fantasmas e preconceitos e, acima de tudo, que ainda temos uma pitada de fé.

[Publicado originalmente na edição de 10 de abril de 2016]