Pés frios

Notícias Magazine

Querido Júlio, eis os resquícios de uma não relação…

Tenho os pés frios e não os consigo aquecer, pensou ela, pela quinta vez, naquela semana. Sempre que se deitava, lembrava-se dele e da última sms que tinham trocado e do tempo que já tinha passado à espera de resposta. Pela quinta noite consecutiva a resposta dele não aparecia. Ela tentava, obsessivamente, encontrar uma mensagem através das redes sociais e nos e-mails, achando que talvez pudesse ter ido parar a outro local. Repetia, insistentemente, as ações de busca ao deitar, o que a deixava com uma insónia profunda que a impedia de adormecer. Apetecia-lhe gritar de fúria! Tinha prometido a si própria que naquela noite não iria repetir esse comportamento. Deixou, propositadamente, o smartphone ficar sem bateria e o carregador no carro. Mas a ansiedade era demasiada. Não resistiu, vestiu o casacão e foi de pijama ao carro apanhar o carregador e a agenda de papel onde guardava os números todos e repetiu, mais uma vez, aquela obsessiva ação.

Como era possível, ele ter estado horas a fio a trocar mensagens tão intensas com ela e, de repente, ter-se «calado». As primeiras horas sem notícias dele eram fáceis de suportar. Ela dizia para si própria que ele estaria a fazer algo de muito importante, que tinha ficado sem bateria ou que estava num evento especial. Mas as horas iam passando e a falta de contacto tornava-se insuportável. Ainda se sentia pior porque era sexta-feira. E a seguir à sexta surgia o infindável fim de semana em que ele emudecia, porque estava com a mulher e as filhas, período em que existia uma espécie de pacto silencioso, que definia que o fim de semana era para a família e que por isso não podia ser incomodado.

Mas nem sempre tinha sido assim. Quando ele tinha saudades dela, mandava mensagens, perguntava-lhe coisas, exigia respostas, e ela parava tudo o que estava a fazer, e respondia-lhe feliz, porque naquele fim de semana ele estava a pensar nela, estava a transgredir para além do pacto. Estas comunicações de fim de semana enchiam-lhe a alma e as expectativas. Mas rapidamente caíam por terra. Depois destas trocas de mensagens ele resguardava-se no seu silêncio como se tivesse de «penar» pelo pecado cometido.

Naquele dia, ela estava a sentir as coisas de outra maneira, a ansiedade era demasiada e sentia uma angústia que lhe dificultava a respiração. Aquela perturbação física foi o motivo que a levou a decidir que não valia a pena continuar naquele jogo. Afinal de contas não o amava, não estava apaixonada, não achava que ele fosse um homem especial, não era sequer bonito e, no fundo, era apenas um homem casado com família e com falta de coragem para ser realmente feliz.

Afinal, ele não passava de um homem medroso e sem tomates. Foi ao frigorífico e tirou um iogurte de frutos silvestres e juntou-lhe sementes de chia. Fez meia dúzia de alongamentos, tomou um duche quente e deitou-se.

A partir daquele momento sentiu-se livre, os pés ficaram quentes e pensou: quem não quer ser feliz não merece quem o quer.

[Publicado originalmente na edição de 13 de março de 2016]