Parece impossível que haja Trump no mundo

Notícias Magazine

Há de ser apenas um achaque próprio da idade, mas acontece-me cada vez mais frequentemente ser acometido pelo fogo lento da nostalgia. Tenho saudades, por exemplo, do tempo em que um indivíduo que reclamasse ser Napoleão Bonaparte teria como destino mais provável a entrada direta no manicómio. Agora, e se os jornais, a rádio e a televisão não me trazem enganado, é muito possível que um demente com tendência para a mitomania acabe por ser presidente de uma coisa qualquer – de um clube de futebol, de uma câmara municipal ou de um país.

Corroído por esta obscura impressão, tenho-me lembrado bastante da cena final de Dr. Strangelove, o filme de Stanley Kubrick, na qual o major Kong vai pelo ar montado num míssil nuclear, cavalgando-o e gritando como um cowboy num rodeo. Fui, por isso, revê-la no YouTube e pareceu-me tudo demasiado parecido com a realidade. Até o presidente Merkin Muffley, interpretado por Peter Sellers, adquire agora uma inquietante verosimilhança.

cronicamjmarmelo_img_6043Karl Marx escreveu que «a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa». Não sendo difícil de prever como vai ser o mundo (outra vez) governado por loucos furiosos (leia-se o 1984, de Orwell, está lá tudo), nem de imaginar o que acontecerá depois de a realidade ter passado a imitar as tragicomédias e os mais delirantes e distópicos episódios dos Simpsons, talvez valha a pena voltar a ver o filme de Kubrik, nem que seja para nos iludirmos a confundir a ficção com as notícias dos jornais.

Entre criar uma úlcera (ou uma neurose grave) e exilar-me num universo paralelo em que a realidade não passe de uma sátira do cinema, sinto-me compelido a optar pela segunda possibilidade (em caso desesperado, ocorre-me ainda adoptar como lema de vida o irónico subtítulo do filme de Kubrik: «How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb»). Precocemente envelhecido, aspiro, por isso, a cada vez menos: poder retirar-me do desassossego do quotidiano, passar a usar belos e extravagantes chapéus, dar milho aos pombos, passear de autocarro e flanar com as mãos atrás das costas. Talvez as notícias dos jornais sejam mesmo verdade e deva preocupar-me muito com o que aí vem. Mas o sol incide nas folhas do outono, os meus filhos abraçam-me, a Sara sorri – e parece impossível que haja Trump no mundo.

(Fotografia de Manuel Jorge Marmelo)

[Publicado originalmente na edição de 27 de novembro de 2016]