É todo um novo mundo que se revela, quando usamos os trajetos de comboio. Como se estivéssemos a espreitar para as traseiras de um quarteirão e observássemos as roupas penduradas, as vassouras e os baldes nos pátios, vasos meio quebrados com plantas antigas, caixotes com o que não cabe em casa. Diariamente faço esse exercício de espreitar a parte oculta da cidade, talvez ainda empolgada pela novidade de um caminho recente. Ver o outro lado, as costuras e as baínhas que ficam por trás do que é aparente, como se me mostrassem as hesitações e as correções de uma partitura de uma sinfonia ou de um manuscrito de um livro que só lerei quando estiver limpo da laboriosa e secreta construção. É um exercício prático daquilo que é o jornalismo, a procura do que não é evidente, o confronto de diferentes versões, ideias, pontos de vista.
No meio destas divagações básicas e domésticas, há uma manhã em que estou em frente de Adonis, o poeta sírio, e o que ele diz é o outro lado da visão da guerra, a vida de milhões desorganizada por uma violência imposta de fora. Desfia na entrevista aquilo que tão bem explica no livro A Violência e o Islão, acabado de publicar em Portugal, e fala com uma doçura encantadora. Dias depois, hei de relacionar este encontro com o impacto de ler As Cruzadas Vistas pelos Árabes, do libanês Amin Maalouf. Ou Shalimar, o Palhaço, de Salman Rushdie.
Não quero mitificar aquilo que hoje podemos fazer todos os dias, aceder à opinião dos outros através dos instrumentos de pesquisa mais simples.
No fim da entrevista, já de gravador desligado mas sem fazer segredo, ele diz-me tranquilamente: «Nós estamos habituados a lidar com a violência no Médio Oriente. Para vocês, ocidentais, é que isso parece uma novidade. Mas isso é um problema vosso.»
Por trás destas frases está uma vida começada na Síria, de onde foi preciso sair para respirar, continuada no Líbano, de onde partiu novamente em busca de um lugar sem guerra. Quando lhe comento que até em Paris a violência lhe chegou perto, com os atentados do ano passado, ele diz: «Isso é outra coisa, não é a guerra de extermínio que se vive hoje na Síria.» Aquela guerra que vemos de longe, casas, ruas, bairros, cidades inteiras destruídas e milhões de pessoas em fuga. Extermínio.
Estou no comboio e tento ler mais um pouco de O Evangelho Segundo Lázaro, de Richard Zimler, o americano que também é português. A amizade de Yeshua/Jesus e Eliezer/Lázaro como tema para falar do que pode estar por trás daquilo que já sabemos, a imaginação a construir uma vivência com pormenores tais que é como se estivéssemos lá, a querer provar um caldo de cevada e a percorrer longos caminhos para ir desenhar os mosaicos no fundo da piscina de Lucius. Não resisto a olhar de novo pela janela.
E de repente há um palhaço no meio das hortas, inesperado, absurdo e de sorriso fixo, camisola às riscas, chapelinho ridículo. Entrevejo uma cara de palhaço pobre, exageradamente pintada, o nariz redondo.
Não consigo voltar a passar ali sem esperar o momento breve em que o palhaço vê o comboio que atravessa o vale, por um instante distraído dos pardais e dos ratos que ameaçam as verduras. Deve ter vivido antes na Feira Popular ou a receber crianças e adultos à porta de um circo. Podia ter ido para o lixo, mas não, apenas mudou de função. Agora é um espantalho, mas para mim ele está no outro lado da história, espantado e espantoso.
[Publicado originalmente na edição de 20 de novembro de 2016]