Para Henry Marsh, o que distingue a neurocirurgia não é uma especial minúcia técnica, mas o facto de ser perigosa. A vida de um neurocirurgião faz-se de decisões e a mais importante é a de operar ou não. Pode ser muito gratificante, mas tem um preço. Citando o francês René Leriche, Marsh diz que é necessário aprender a viver com uma lista de desastres, que são como lápides num pequeno cemitério que todos os cirurgiões carregam dentro de si. Na manhã em que me encontrei com ele em Lisboa, não se dava por isso. Sorridente, afável, bem-humorado. Numa situação trágica confiar-lhe-ia a vida, esperando dele o que se espera dos deuses.
Chegou a trabalhar como auxiliar de ação médica num hospital. Foi nessa altura que decidiu tornar-se médico?
É verdade, num bloco operatório. Estava a passar por uma espécie de crise na minha vida. Tive uma educação típica de classe média alta inglesa. Aprendi latim e grego antigo durante muitos anos, mas praticamente nada de ciência. Acabei por ir para a Universidade de Oxford estudar Política, Filosofia e Economia. Por várias razões, revoltei-me contra isso e fui-me embora. Enquanto estava a trabalhar num hospital como auxiliar vi cirurgiões a operar e achei fascinante. Mas não descobri o meu amor pela neurocirurgia nessa altura. Foi depois, quando já era médico há um ano e meio e ainda não sabia o que fazer com a minha carreira. Nunca tinha visto uma cirurgia ao cérebro durante o curso de Medicina e, quando vi uma operação a um aneurisma, foi amor à primeira vista. Tive uma epifania. Era o que queria fazer. Tive muita sorte. Temos muita sorte se tivermos uma profissão pela qual estamos profundamente apaixonados. Mas ter uma obsessão como esta torna-nos pessoas com quem é difícil viver. Nunca me arrependi de me ter tornado neurocirurgião, embora às vezes seja muito difícil e doloroso.
A maioria das pessoas não pensa muito na matéria que constitui os nossos pensamentos, as emoções e aquilo que julgamos ser. Vê-se a si e às outras pessoas de forma diferente por ser neurocirurgião?
Acho que sim. Mas apesar de pensarmos nisso, a maior parte dos neurocirurgiões que conheço não são muito filosóficos acerca do assunto. É demasiado louco. Se virmos pessoas cuja personalidade tenha mudado por causa de danos físicos no seu cérebro, isso pode mudar a nossa visão da vida. Se alguém ficar paralisado ou cego, ou mesmo sem conseguir falar, continuamos a poder sentir que há alguma alma ou essência humana para lá da natureza física do cérebro. Mas se virmos pessoas, como eu vi, que sofreram lesões graves nos lóbulos frontais, ou com um tumor a crescer lentamente nessa zona, vemos que a sua personalidade muda, para pior. Tornam-se grotescos, caricaturas do que eram antes. Pessoas que eram normais e amáveis tornam-se rudes, frias, desbocadas, simplesmente por causa de mudanças físicas no cérebro. Isso muda a nossa visão da humanidade. Mas eu estou cada vez mais maravilhado com facto de que tudo o que nós pensamos e sentimos é electroquímica. Há uma enorme lacuna na nossa compreensão. Não conseguimos sequer começar a explicar como é que a matéria física pode dar origem à consciência.
Escreve sobre uma doente que ficou paralisada do lado direito, depois de uma cirurgia para remover um tumor na espinal medula. Quando comenta o caso com o seu assistente é muito mais pessimista acerca da sua recuperação do que quando fala com a paciente.
Um dos cirurgiões que me ensinaram disse-me que nunca devemos mentir aos pacientes nem tirar-lhes a esperança. É uma questão de equilíbrio. Temos de dar esperança às pessoas sem lhes mentir. É muito, muito difícil.
Diz no seu livro que à medida que foi ganhando mais experiência tornou-se cada vez mais ciente de que a sorte é importante. Porquê?
Além de um certo nível de perícia técnica, muito do que determina se uma operação vai correr bem ou mal está fora do meu controlo. É sorte. Atualmente faço principalmente cirurgia de tumores. É uma questão de saber se o tumor está agarrado ao cérebro ou a veias principais. São coisas que não podemos saber antecipadamente e sobre as quais eu tenho pouco controlo.
Isso ajuda a aliviar o peso?
Sim, de certa forma. Se tivermos um mau resultado numa operação podemos dizer que foi má sorte. Mas se quisermos ser consistentes, e muitos cirurgiões não são, quando as coisas correm bem também podemos dizer «bem, tivemos sorte». Na quarta-feira, ajudei o colega que me substituiu em Londres a operar um tumor muito difícil, com um resultado fantástico, acho que a pessoa ficou completamente curada. Mas eu disse ao meu colega que tivemos muita sorte, porque o tumor não estava agarrado a nenhuma estrutura vital. Quando era mais novo tinha uma grande sensação de triunfo numa operação como esta, mas agora sou mais modesto.
É difícil para os cirurgiões serem honestos consigo próprios acerca dos seus erros?
É muito importante quando uma operação corre mal reconhecer a diferença entre má sorte e cometer um erro. É muito tentador dizer que foi má sorte, porque não gostamos de pensar mal de nós. Ser honesto connosco é importante para aprendermos.
E com os colegas?
As outras pessoas são melhores a avaliar os meus erros do que eu. Por isso uma das coisas mais importantes para mim é ter bons colegas. E ser um bom colega. Mas é muito difícil. Ninguém gosta de ser criticado. E nós hesitamos em criticar os nossos colegas, porque todos temos esqueletos no armário. Criar um ambiente de respeito mútuo e honestidade crítica num serviço cirúrgico é muito difícil. A diferença entre um bom e um mau serviço de cirurgia está muitas vezes nas relações entre os médicos mais experientes.
Conta vários casos em que os doentes têm de tomar decisões, pesando os riscos de fazerem ou não uma cirurgia. Acha que na maior parte dos casos os doentes entendem os conceitos necessários para tomar uma decisão informada?
Acho que não. Dizemos que há um risco de sete por cento, um risco de cinco por cento, o que é que isso significa? No fim de contas, a decisão do paciente vai ser determinada pelo que ele acha do cirurgião e não pelo que lhe é explicado. Reduz-se a uma questão de confiança. A maioria dos meus doentes dizem-me: bem, Dr. Marsh, o senhor é que o especialista, o que recomenda? Às vezes perguntam-me o que faria se fosse comigo. Os americanos dizem: ponho os factos à frente do paciente e deixo-o decidir. Mas isso é uma mentira na maior parte das vezes. A maneira como pomos os factos em cima da mesa determina o que parece estar em cima da mesa. Cada vez mais digo aos meus pacientes: por favor, não hesitem em pedir uma segunda opinião.
No livro partilha também a sua experiência como paciente. Fez duas cirurgias, uma ao olho e outra a uma perna partida. É mais difícil para um cirurgião, sabendo que o seu colega é falível?
Poderia ser. Mas como os meus problemas eram tão triviais comparados com os dos meus pacientes (que têm cancros a crescer nos seus cérebros), ter uma perna partida ou uma retina descolada não é nada. Não tenho o direito de me queixar ou de me sentir assustado. Para minha surpresa achei muito interessante e relativamente agradável. Quando tiver uma doença grave, não sei.
Foi agradável porque escolheu uma clínica privada?
Sim, acho que ajudou. Sempre odiei hospitais por causa da falta de privacidade e de dignidade dos pacientes institucionalizados, da maneira como são tratados como vacas num curral. Ter um quarto só para mim tornou as coisas diferentes. Seria muito difícil estar num quarto com mais seis pessoas. Digo sempre aos meus alunos que todos os nossos pacientes estão sempre em privação de sono. Ir para um hospital é uma experiência fisiologicamente pouco saudável.
Os hospitais públicos deviam melhorar as condições de internamento?
Sim, deviam. Em parte, é um problema financeiro, por todo o mundo, com algumas exceções, como na Escandinávia. Mas também reflete a visão paternalista e condescendente dos pacientes, que devem fazer o que lhes mandam. Apesar de ser um grande apoiante do que os americanos chamam cuidados de saúde sociabilizados, também fiz bastante clínica privada. Globalmente, acho que as coisas boas dos cuidados de saúde sociabilizados são mais do que as más. A medicina privada é cara e tem muito desperdício, embora possamos ter carpetes, cortinas e uma noite mais bem dormida. Mas não vejo razão para que os setores públicos não devam tentar construir hospitais decentes.
Fez muitas cirurgias com os seus pacientes acordados. Isso muda muito a dinâmica da equipa, têm de ter mais cuidado com o que dizem?
Sim, mas o paciente é parte da equipa. Normalmente, quando os cirurgiões operam podem falar de futebol, alguns ouvem música rock muito barulhenta, outros operam em silêncio total. Eu não me importo que as pessoas falem, a não ser que a operação se torne muito difícil. Com o doente acordado, temos de ser mais cordatos. Uma operação pode ser muito assustadora para o paciente, é muito importante manter um bom ambiente descontraído. Sempre fiz estas operações com uma anestesista maravilhosa, que ajudava a relaxar os pacientes.
Alguma vez pediu a um dos doentes acordados para participar numa decisão durante a cirurgia?
Não. Mas se a operação demorar muito começam a ter alguma dor de cabeça. E habitualmente dizem não, não, tire-o todo, Dr. Marsh, não pare! Mas, do ponto de vista filosófico, o mais interessante é que às vezes estou a operar com um microscópio que tem uma câmara de vídeo e um monitor, para que o resto da equipa possa ver o que estou a fazer. Muitas vezes pergunto ao doente se gostaria de ver o seu próprio cérebro. Alguns dizem que sim, a maioria diz que não. Se disserem que sim, digo-lhes agora é uma das poucas pessoas na história da raça humana que viu o seu próprio cérebro. Uma vez estava a operar um tumor no cortex visual esquerdo e o paciente estava a olhar para o monitor. Assim, o cortex visual esquerdo estava a olhar para si próprio. Senti que devia haver uma espécie de feedback acústico, uma explosão… é de loucos.
Como é a sua nova vida, depois da reforma, como escritor de sucesso?
Incrivelmente ocupada. Recebo muitos convites para dar palestras, que tenho dificuldade em recusar. A minha mulher diz que estou a exagerar. Escrevi um segundo livro, ainda faço muito trabalho médico na Inglaterra, também no Nepal e em breve estarei a operar na Albânia. Terei de parar, mas neste momento acho isso muito difícil. Adoro o meu trabalho.
Escreveu que quando assistiu pela primeira vez a uma cirurgia ao cérebro, este pareceu-lhe um mistério tão grande quanto o mistério das estrelas à noite e do universo que nos rodeia. E agora?
Ainda sinto isso. E mais fortemente, à medida que vou ficando mais velho. Para mim é tão misterioso como o céu à noite. É um substituto da fé, porque eu não acredito na vida depois na morte. Quando se é neurocirurgião e se acredita na alma ou nalguma forma de vida depois na morte, temos de lidar com uma séria dissonância cognitiva. Porque nós somos o nosso cérebro. E voltamos onde começámos. Quando vemos pessoas com danos cerebrais, cuja personalidade e moral mudam, é muito difícil acreditar que alguma coisa sobrevive para além da morte. Mas isso não desvaloriza o pensamento, valoriza a matéria, de maneiras que não compreendemos. Como é que estas moléculas produzem pensamento consciente? Eu considero isso profundamente empolgante.
IRREFORMÁVEL
Aos 66 anos, Henry Marsh está reformado, mas continua a trabalhar muito. Passou os últimos dois meses em Katmandu, no Nepal, a ajudar a formar jovens neurocirurgiões. Casado por duas vezes, diz que o seu amor pela neurocirurgia foi fatal para o primeiro casamento, que ainda assim durou 25 anos. Escreveu o livro Não Faças Mal, já traduzido em 22 línguas e editado entre nós pela Lua de Papel. Anda de bicicleta em Londres sem capacete e espera que a antropóloga Kate Fox, com quem é casado, tolere as suas voltas ao mundo em palestras e lançamentos.