Mais um maluco, que está cá só de passagem, foi ao Afeganistão e ao Paquistão, ouviu vozes do além (ponham minúscula nisto, porque só há minúscula nisso), voltou à América e distribuiu bombas pelas ruas. O correspondente nos EUA do jornal espanhol El Mundo julgou resumir Ahmad Khan Rahami, de 28 anos, neste título: “El terrorista que salió de una canción de Bruce Springsteen”. Ignorante, o jornalista.
Rahami nunca poderia sair de uma canção de Bruce Springsteen. Nunca poderia lá ter entrado. O terrorista islâmico, filho de afegãos, era bebé quando a família emigrou, na década de 1990, para Elizabeth, no estado de Nova Jérsia, a meia hora da cidade de Nova Iorque. Springsteen também é de Nova Jérsia, nasceu lá. Mas não foi isso, um ter nascido lá e o outro não, que impediu juntá-los numa canção de Springsteen. Este tinha 14 anos, nem na sua rua era conhecido como cantor, e já em América, América, o filme de Elia Kazan, os gregos, curdos e arménios que entravam pelo estuário do Hudson e do tombadilho do barco viam a Estátua da Liberdade balbuciavam a palavra que os fazia personagens de uma canção de Bruce Springsteen. Exatamente essa palavra, América… América… A palavra que faz de mim – ou pelo menos é esse o meu sonho – dono de mim.
Milhares, esses curdos e gregos, os meus amigos Nelo e Clarice, os antepassados italianos e irlandeses de Bruce foram para a América pela razão que todas as canções dele explicam. E não sem razão ele fez do seu estado natal bandeira porque Nova Jérsia, «o sovaco da América» – com as suas refinarias, as máfias do lixo, as blusas azuis… –, não mentindo no sonho fácil, forjou a maior autenticidade da América: o indivíduo.
Outros acreditam nas patranhas das virgens oferecidas a quem se submete. Em Hungry Heart, Bruce canta o coração faminto que faz cada homem partir, procurar, conquistar – confiante que o espera outro coração faminto. É nisso, e só, que acredita quem vive numa canção de Springsteen. Nova Jérsia é terra de homens, terra de mulheres, não lugar de adoração ao que é superior aos homens, porque nada o é. Vejam as caras de quem ouve – homens, mulheres, jovens, velhos, todas as cores humanas, feios e belos – vejam a luz que arde em quem ouve Dream Baby Dream: são exclusivamente fiéis de si mesmo. Sem deuses nem mestres. Cada um e o seu amante.
Há em Nova Jérsia uma cidade, Hoboken, na margem do Hudson, fronteira a Nova Iorque. Ela é conhecida por lá ter nascido Frank Sinatra, mas apesar dessa grandeza ela é maior do que isso – e Bruce Springsteen que não nasceu lá e é cantor menor que Sinatra, ilustra-a melhor. As linhas férreas partiram de Hoboken pela América fora. E elas, as linhas e as companhias férreas, se eram fruto de uma vontade coletiva levaram com elas uma invenção preciosa: o indivíduo. Os mais indivíduos de todos levavam consigo um saco, simples lençol amarrado, sustentado ao ombro por um bastão. Deixavam o comboio fazer-se à estrada, corriam pelo cruzar das linhas e atiravam-se para os vagões de carga. Hoboken deu-lhes o nome, hobos, e assim nasceram os vagabundos americanos. O Tom Sawyer da minha infância, o Jack London da minha adolescência, o Pete Seeger da minha juventude, personagens inventadas, escritores de coração quente, cantores do povo, ensinaram- me a amar o homem no que ele de melhor tem, ele próprio, indo pelo mundo, livre e crente em si. Não vou deixar que a ignorância mo apague. Também é tão fácil, basta pôr o Bruce a atiçar o fogo: Dream, baby, dream.
[Publicado originalmente na edição de 25 de setembro de 2016]