Fomos a Marrocos acompanhar Elisabete Jacinto numa prova cem por cento feminina: o Rali das Gazelas, que terminou no fim de semana passado. Aqui, homem não entra. Nem conduz. No deserto, só com mapa e bússola, elas é que indicam o caminho.
«Bom dia, são quatro da manhã.» A frase repete-se em intervalos curtos, em francês. Todos os dias será assim. Dominique Serra, diretora-geral do Rallye Aïcha des Gazelles, faz questão, a cada ano (e já lá vão 26), de ser a despertadora das campistas no bivouac, o acampamento do rali onde só mulheres podem participar. Das tendas começam a sair, cambaleantes, as 324 pilotos e navegadoras das 162 equipas presentes. Apenas 63 destas mulheres não são francesas. Portuguesa, só uma: Elisabete Jacinto. E não, ela não vai a conduzir o camião que a tornou famosa. Está a participar num Volkswagen Amarok com a navegadora belga France Clèves.
Começou em Nice, França, a 18 de março. Seguiu-se Barcelona e o transporte em ferry até Tânger e depois Meknes, em Marrocos. Antes de chegarem a Erfoud, para as verificações técnicas, apanharam chuva, frio e neve nas montanhas, numa prova conhecida pelas dunas do deserto do Erg Chebbi. São os contrastes do maior rali de orientação do mundo, onde não ganha quem chega primeiro mas quem percorre menos quilómetros.
Das quatro às cinco da manhã, a cada dia, prepara-se a trouxa, levantam-se as garrafas de água que serão consumidas (normalmente seis de litro e meio para cada duas pessoas), cuida-se da higiene pessoal nos contentores que servem de casas de banho e caminha-se até à tenda das refeições para o pequeno-almoço e o briefing da organização. Às cinco da manhã, Ludovic Tache, diretor desportivo e responsável pela segurança do rali, junta-se a Dominique Serra. Apresentam a etapa do dia, falam dos principais problemas que cada concorrente irá encontrar, descontraem o ambiente e falam do jantar que as espera ao fim do dia no bivouac. Na assistência, em mesas redondas onde se sentam até dez pessoas, bebe-se sumo de laranja, chá e café. Come-se panquecas e pão marroquino, bolos fritos, iogurtes e peças de fruta. É preciso ganhar energia para um dia de competição.
A PARTIR DAS CINCO E MEIA DA MANHÃ a tenda de refeições começa a esvaziar-se. Em meia hora será dada a partida para a primeira etapa do Rali das Gazelas 2016. O prólogo do dia anterior foi apenas um pró-forma, tal como a tempestade de areia e vento que arrasou parte do acampamento. Agora, com a primeira luz do dia e as lanternas frontais agarradas à cabeça a começarem a apagar-se, os 162 automóveis e quads alinham-se nos corredores de acesso em Merzouga, a porta de entrada no deserto do Erg Chebbi.
Sai a primeira fila de carros ao abanar da bandeira vermelha do rali. Ouvem-se as buzinas, sente-se o sopro forte do vento e a areia que teima em entrar nos olhos. Faz frio. As várias camadas de roupa parecem não ser suficientes neste final de março. Mas se à noite as temperaturas podem descer até aos zero graus, à hora de almoço, no meio das dunas, trinta parece coisa de meninos. De meninas, neste caso.
Alberto Gonçalves é, na primeira alvorada, um homem de poucas palavras. Está a chegar aos 60 anos e é voluntário neste rali há 14. Nos dias em que não está no Rali das Gazelas, trabalha para a empresa que organiza o Dakar, a maior competição de todo-o-terreno do mundo. É, aliás, o único português a desempenhar um cargo de topo no rali que leva o nome da capital senegalesa apesar de já não passar por lá. De junho a fim de janeiro, todas as suas atenções estão viradas para a América do Sul, a nova morada da competição, mas no resto do ano Alberto tem de vir a Marrocos. Não é só pelo rali, é por tudo: pelo país, pelas pessoas, pela amizade, pela tradição e pelas funções que aqui desempenha: media pilot – condutor de uma das viaturas que transportam a comunicação social. Mas Alberto é muito mais do que isso, como se pôde comprovar nos dias seguintes.
Ao lado na aventura tem a mulher, Teresa, igualmente voluntária no Rali das Gazelas. As suas funções estão ligadas à Classificação. Está sempre presente nas partidas – para escalar os intervalos de tempo em que as concorrentes começam a etapa – e nas chegadas, quando confirma a ordem de entrada no bivouac. Tem dias bons, em que todas chegam até às 21h00, mas na maior parte das vezes a competição pode arrastar-se para lá da meia-noite.
No jipe de matrícula portuguesa, propriedade do casal Gonçalves, vai outro elemento: o fotógrafo francês de origem polaca Jean Madeyski, morador em Marrocos há 14 anos. Vai fotografar as concorrentes na maioria dos pontos de classificação. E assim fica formada, desde o primeiro dia, esta equipa que irá cumprir os mesmos percursos das concorrentes. Mas com uma diferença: aqui temos telefone e GPS a bordo.
Encontramos Elisabete e France logo no primeiro ponto do dia. São das primeiras a chegar. Não sabemos se se desviaram muito ou pouco do percurso perfeito, e essa será a grande diferença no fim da etapa. Com apenas um mapa e duas bússolas, cada dupla deverá encontrar a forma mais reta de chegar do ponto A ao ponto B. No fim, ganha quem menos se desviar e efetuar menos quilómetros. Nada fácil – na morfologia do terreno marroquino, há quase sempre uma pedra no caminho, uma duna que se atravessa à frente ou uma montanha para contornar.
PASSA UM CARRO COM CORES VIVAS. «É a filha de um antigo presidente do Senegal… boa condutora», diz Alberto, mãos no volante, atento ao rádio, sempre à procura do melhor percurso. Tem razão: Syndiely Wade é boa condutora, faz dupla com a francesa Claudine Amat. Iremos encontrá-las várias vezes ao longo dos dias. A senegalesa terá alguns momentos divertidos, como aquele em que, a meio da prova, decide limpar o carro de competição por querer vê-lo sempre bonito. Não foi a única. Escovas, panos, rolos de papel, detergentes e limpa-vidros serão vistos muitas vezes ao longo dos dias na posse de várias concorrentes. Para que as viaturas estejam sempre um brinquinho.
Durante os dias no terreno, o almoço acontece cedo, por volta do meio-dia – ou antes quando a fome aperta. A organização tem previstas caixas com alimentos para quem cobre a prova. Tem refeições prontas a aquecer, tostas, patês, doces e gomas para dar energia. Alberto abre a bagageira do jipe de 1996 e tudo faz ainda mais sentido: as latas de atum português saltam à vista num espaço geometricamente bem arrumado e onde nada parece faltar. Almoçamos quase sempre junto à bandeira que sinaliza um dos pontos a descobrir pelas concorrentes, mas suficientemente longe da sua vista, para que não ofereçamos de mão beijada a localização do ponto. É assim que esperamos que chegue Elisabete Jacinto. A piloto portuguesa tem sempre tempo para pôr a conversa em dia e fazer um balanço do que se vai passando. É outra das características especiais deste rali: o tempo não é determinante, por isso há oportunidade para viver o momento. Há tempo também para aquecer água num fogão de campanha e fazer café ou chá para quem chega. Mas os minutos também podem ser decisivos, como explica. «Quanto mais de manhã passarmos nas dunas, melhor», diz Alberto. «À medida que o sol fica mais forte, a areia fica mais mole e torna-se mais complicado conduzir na areia.»
O sol a pique também não ajuda, já que as sombras deixam de ser percetíveis, tal como os contornos das dunas.
Quem aprendeu da pior maneira essa lição foi a dupla 156. Na terceira etapa do rali, encontrámos Stephanie Cayo e Christelle Vidal nas dunas graças aos sinais enérgicos de dois motociclistas marroquinos que por ali andavam a ver os carros. O jipe em que seguiam as duas francesas tinha capotado. Christelle, a navegadora, estava deitada na parede da duna. Stephanie, a condutora, corria em redor do veículo praticamente destruído com as mãos na cabeça enquanto o óleo se escapava entre os grãos de areia.
Alberto e Teresa organizam rapidamente a improvisada equipa de socorro. Faz-se sombra sobre a imobilizada navegadora, não a movendo da sua posição. As dores no pescoço não indiciam nada de bom. A condutora, em estado de choque, sangra do cotovelo, mas parece bem. Só fala do automóvel, de querer continuar o rali. A assistência médica é chamada de imediato. Passam os primeiros trinta minutos e nada. Ao fim da primeira hora chega uma das médicas da competição. Usamos as placas que servem para desatascar as viaturas da areia para deitar Christelle a direito. Um helicóptero de emergência está a caminho, mas é preciso esperar mais de duas horas para que aterre. Teresa Gonçalves tem, mais uma vez, o papel que quase todas as concorrentes lhe reconhecem: de mãe, de protetora. Não larga a mais grave das acidentadas por um segundo. A temperatura está cada vez mais elevada, passa das 13h00 e a única sombra vem de um toldo que Alberto atou ao jipe.
A competição não para. Outras concorrentes passam ao lado do acidente e seguem. Há quem pare para saber se está tudo bem, mas isso só se saberá depois de o helicóptero chegar e transportar Christelle para o bivouac e daí para Marraquexe. Stephanie chora ao perceber que está fora de competição. É o orgulho ferido, são os ferimentos da amiga e companheira de competição, são os sete mil euros de caução pelo jipe alugado, é o investimento pessoal que vai por areia abaixo. Mas a vida continua. Ficará junto ao carro até chegarem os mecânicos.
Nós seguiremos caminho, a todo o motor, para conseguir recuperar mais de duas horas de atraso para Elisabete Jacinto. O objetivo – alcançado com a última luz – é acampar no oitavo ponto do dia, com as melhores condutoras e navegadoras deste rali em que participam profissionais, curiosas, amadoras, intempestivas, sensíveis, novas, velhas, gordas, magras, bonitas, feias, altas, baixas, mas acima de tudo corajosas. Mulheres com M grande que se sentam à volta de umas caixas de plástico ao início da noite e improvisam um jantar de gala.
ESTÃO MUITO CANSADAS, cheiram a toalhitas de bebé e colocam sobre a mesa improvisada os produtos das suas regiões e países para que todas possam provar, num momento de descontração e partilha. É um privilégio estar ali, sob um céu impressionante, com as dunas como proteção e as dezenas de histórias a circular entre elas. France, a navegadora de Elisabete Jacinto, não é de muitas palavras, é mais de atos. Arranja espaço para mais um convidado e oferece um pacote de batatas fritas. Elisabete faz mais chá, pergunta como correu o dia. As tendas estão a curta distância e a partida para o final da etapa-maratona está marcada para as seis da manhã. Às 21h00, as concorrentes começam a desaparecer em direção ao descanso. Vai aumentando o silêncio enquanto o tom das gargalhadas diminui.
Nessa noite ainda faltavam mais cinco para chegar a Essaouira. Ainda era possível para Elisabete Jacinto pensar na vitória, ela que já ganhou a prova uma vez e ficou em segundo em três ocasiões. Talvez até tenha sonhado com isso – se o cansaço lhe permitiu – naquela noite no deserto. Hoje sabemos que não foi possível, acabou em quinto. Mas não termina aqui esta história de superação num rali em que os homens não podem participar, mas em que aprendem lições que dificilmente esquecerão.
A PREOCUPAÇÃO SOCIAL PARA LÁ DA COMPETIÇÃO
Esta não é apenas uma corrida de todo-o-terreno para mulheres ou o maior rali de orientação do mundo. É ainda uma oportunidade para ajudar a população marroquina. Coeur dês Gazelles (coeurdegazelles. org) é uma organização sem fins lucrativos criada em 2001, nascida no seio do Rali das Gazelas. O seu objetivo é ajudar as populações locais (nos sítios por onde vai passando a competição), de forma sustentada e amiga do ambiente. Além dos donativos e artigos recebidos, a instituição trabalha no terreno ao longo de todo o ano e, durante o rali, é montado um circuito de ajuda que passa por consultas (ginecologia, oftalmologia, pediatria, estomatologia, entre outras especialidades) e exames médicos gratuitos. Desde que foi criada, mais de 70 mil pessoas beneficiaram desta caravana solidária, tendo quase 50 mil nómadas recebido vestuário e calçado. Foram dezasseis os poços de água abertos para abastecer populações locais, foi construída uma escola em Tamsguidat, 1600 pessoas receberam tratamento dentário e sete toneladas de material médico foram entregues em hospitais marroquinos.
324 PARTICIPANTES COM 162 EQUIPAS
15 PAÍSES CONCORRENTES
40 ANOS: MÉDIA DE IDADES DAS PARTICIPANTES
90 TRABALHADORES NO BIVOUAC
13 500 REFEIÇÕES SERVIDAS
25 000 GARRAFAS DE ÁGUA DE LITRO E MEIO
57 MECÂNICOS
80 000 LITROS DE COMBUSTÍVEL