Estou convencida de que Fernando Medina e Manuel Salgado passaram por Paris recentemente. A cidade, céus, está cheia de obras. Está cheia de obras, pronto, e isso é coisa que só Medina e Salgado fazem, e portanto a culpa só pode ser deles. Isto só aqui. Também há provas desportivas aos fins de semana e cortes de trânsito, a culpa há de ser deles. Coisas que incomodam. A malta andava tão feliz com as ruas cheias de buracos de estimação, nossos conhecidos, que raio, a coisa pode quase ser considerada património cultural. [Bela ideia, candidatar os buracos das ruas de Lisboa à UNESCO, nunca me tinha lembrado disso, mas dada a longa história que os ditos têm é coisa para ter pés para andar, salvo seja.]
Depois, parece que em Paris está tudo feito para as pessoas não andarem de carro da porta de casa até ao emprego e às lojas. Não percebem que ir de carro de casa até ao trabalho é que é sinal de civilização. Deve andar por lá dedo daquela gente que tem a pomposa profissão de urbanista, sempre a armar aos cucos. Quantos mais carros no centro de uma cidade, mais rico o país é, toda a gente sabe. O que é preciso é ter estradas para os carros, com viadutos e túneis e rotundas. Qual andar em transportes públicos qual quê – metro, autocarros, comboios, coisa de gente que não tem estilo. Essa é que é essa. Coitados, em Paris eles não têm as colinas de Lisboa e têm a mania de andar de vélo. É ver as filas de bicicletas que as pessoas usam para ir de um sítio para outro para deixar no estacionamento mais próximo. Aos milhares, mal comparado como em Pequim antes de aquilo ser rico.
Imaginem só aquela coisa de Les Halles. Nada mais nada menos do que vinte mil metros quadrados no coração da cidade. Durante séculos foi o mercado abastecedor e depois houve uns senhores da câmara e uns urbanistas que mudaram aquilo tudo. Passam por lá 750 mil pessoas por dia, a usar os transportes públicos. Zás, obras de 2010 a 2018. Até lá têm, muito a propósito, uma grande loja da Lego, coisa para treinar o pessoal na arte de construir e destruir e construir e etc. Uma espécie de parque temático, vá. Isto só o Medina e o Salgado. Por exemplo, lembram-se da Expo’98? Onde é que andava Salgado nessa altura? Pois lá mesmo, era o responsável do recinto da exposição. E ficou pronto a horas? Ficou? [Ai, desculpem, ficou, este exemplo não interessa, esqueçam.]
Agora até apareceu aquela ideia de fazer escadas rolantes para chegar do Martim Moniz ao Castelo. Pouca vergonha, isto já não é como era dantes. Há lá maior prazer do que subir as Escadinhas da Saúde todos os dias? Dá saúde e faz crescer. Vejam só a pouca vergonha que fizeram em Toledo, um urbanista, está visto: o centro histórico só tem carros de moradores e para subir até lá apanha-se umas rampas rolantes que estão cobertas para enfrentar a chuva e o sol. Parece que toda a gente agradeceu, sobretudo os moradores e os monumentos que tanto sofriam com a poluição e a confusão.
Agora a sério. As cidades que não têm obras ficam paradas no tempo e a estragar-se. É como lá em casa: é preciso manutenção, adaptar a coisa às novidades e mudanças. É chato, pois claro, mas já estivemos tanto tempo a deixar as coisas cair que se calhar perdemos a noção de que um passeio amplo e arranjado é melhor do que uma coisa esburacada e cheia de obstáculos. E quanto ao Les Halles, pois os mesmos que embirram aqui vão passar por lá e fotografar, embasbacados com as obras dos outros.
[Publicado originalmente na edição de 5 de junho de 2016]