A partir de Águeda, Luís Fernandes cria projetos de teatro que percorrem o mundo, festivais que atraem artistas conceituados e eventos que ensinam música tradicional a crianças e jovens. O diretor da associação cultural d’Orfeu é um músico feito programador, entre o palco onde toca e os bastidores onde coordena.
O que têm em comum um «porco» que dança em palco, um grupo que toca por todo o mundo temas tradicionais da serra do Caramulo e um festival que, no mês passado, trouxe a Portugal músicos do Senegal, Cuba, Índia e Mali? Todos têm a influência da d’Orfeu, a associação cultural que Luís Fernandes ajudou a criar em 1995, com os irmãos e amigos, para dar «uma pedrada no charco» da dinâmica cultural instalada na região.
Luís Fernandes nasceu numa família de músicos. O bisavô, o avô, pai e tio tocaram em grupos e bandas locais. Três dos quatro irmãos, mais velhos, também. O ambiente era propício a que a sua geração, com formação superior na área, empreendesse voos mais altos. Mas o multi-instrumentista irrequieto (especialista em viola braguesa, também toca cavaquinho, acordeão, piano e flauta transversal) tornou-se programador e gestor cultural e a associação ganhou vida. E um concelho com cerca de 45 mil habitantes ganhou uma dinâmica de arte como nunca tinha tido.
«Sem a associação, Águeda não seria a mesma», diz António Gomes, natural da cidade e habitante local. «A terra sempre teve muito associativismo, mas eles trouxeram criatividade e grupos culturais a que, de outra forma, só teríamos acesso na capital ou no estrangeiro. Destruíram barreiras, levam o nome e as tradições da terra para todo o mundo.»
Foi ali, na velha casa arrendada aos bombeiros, onde está instalado o «viveiro» de inúmeras produções culturais e escola de música da d’Orfeu, que os três filhos de António aprenderam os primeiros acordes. O mais novo, Francisco, ainda lá está, inserido no Bail’i, uma das várias formações e grupos culturais que ali têm nascido.
«Somos todos d’Orfeu», lê-se numa parede à entrada da sede, no número 6 da Rua Engenheiro Júlio Portela. Foram buscar o nome à figura mitológica grega que encantava todos com a sua lira. O «d’» (assim mesmo, em minúscula e com apóstrofe) representa uma nota musical. A associação procura ser, também, para todos. Tanto nas várias formações que fazem parte do portfólio de projetos como na Emtrad’, a Escola de Música Tradicional. Como nas criações e produções que realizam e com as quais correm o país e o mundo: os Toques do Caramulo, onde Luís Fernandes é vocalista; a coleção de canções do Repertório Osório, escritas por ele e musicadas por Luís Cardoso; o Bail’i, um baile que estimula a musicalidade e movimento corporal dos mais novos, a OpÁ!, Orquestra Percurssiva de Águeda para jovens do concelho, entre muitas outras. E também na programação dos quatro grandes festivais anuais que se tornaram imagem de marca: o Festival I (em maio, para famílias e crianças), o Festim (festival internacional de músicas do mundo, em junho e julho), o Gesto Orelhudo (em setembro, pioneiro na fusão músico-teatral no país) e o OuTonalidades (circuito português de música que percorre o país).
O projeto Povo Que Lavas no Rio Águeda, em 2010, ficou gravado na memória de Gil Nadais, presidente da câmara local. «Um espetáculo único, que uniu o povo ao rio», elogia. É um exemplo não só do sucesso na preservação dos valores locais mas também do trabalho e persistência da d’Orfeu: levou um ano a ser preparado, juntou em colaboração estreita três dezenas de associações e levou trezentas pessoas a tocar e a encenar espetáculos em palcos montados em cima do espelho de água do rio Águeda.
Por trás de todos estes projetos está sempre o trabalho e a iniciativa de Luís Fernandes. Tocou pela primeira vez em público com 6 anos – começou pelo bombo – e, além da d’Orfeu, colaborou como músico ou ator em vários projetos, como o livro/CD infantil Borbolino, de Odete Ferreira (2012), o CD Roque Popular, dos Diabo na Cruz (2012), o filme Significado: A Música Portuguesa Se Gostasse Dela Própria (2010), de Tiago Pereira, e o documentário Canções de Luz e de Sombra (2010), de José Medeiros, edição Teatro Micaelense. Foi também professor no Conservatório de Música de Coimbra e na Escola Profissional de Aveiro, orientou seminários de voz no Porto, serviu de tutor de jovens europeus em residência artística na associação, colaborou em estágios de ação vocal em Cabo Verde, foi orador em seminários sobre associativismo, e muito, muito mais, tendo sempre como fio condutor a música e a arte. Já perdeu a conta aos países que pisou em atuações pela Europa, África e América.
Luís é o mais novo dos cinco irmãos Fernandes – Irene tem 50 anos, é professora de Matemática e tentou aprender acordeão, Artur, 49, toca concertina no grupo Danças Ocultas, Vítor, 48, é percussionista e Rogério, 47, toca sobretudo instrumentos de corda. Como tinha mais disponibilidade, foi ele quem tomou as rédeas da associação, tornando-se gestor, programador cultural, especialista em associativismo, escritor e músico quando os projetos permitem e há horas vagas. Na altura tinha 20 anos e hoje tem noção de que se tornou «um especialista em polivalência», cuja vida se entrelaça e quase confunde com a da d’Orfeu, causa que abraça há duas décadas e que o fez crescer também como pessoa.
Reconhece que se tivesse seguido apenas a carreira musical, possivelmente não teria chegado aos 41 anos com tantas «experiências acumuladas e este nível de desenvolvimento». Mas espera que a alteração orgânica da associação, realizada no ano passado, que o fez passar de coordenador-geral para diretor criativo, lhe permita dedicar-se mais ao lado artístico pessoal, para investir mais na música e não tanto na gestão.
O músico feito gestor fica incomodado quando lhe chamam o «rosto» da d’Orfeu e prefere insistir na palavra «coletivo». Uma e outra vez, até que seja claro que é tão grande por ser plural, por ser feita por 11 profissionais a tempo inteiro, muitos sócios voluntários e bons amigos. «Cada um com o seu contributo, cada um com o seu tempo.» Até porque, entretanto, a associação já desbravou muito caminho e está madura. Provam-no reconhecimentos oficiais como a subvenção da Secretaria de Estado da Cultura ou a medalha municipal de mérito cultural, mas, sobretudo, o reconhecimento da comunidade, após um período inicial de ceticismo.
A maturidade é tal que, ao celebrar vinte anos, em dezembro último, recolheu histórias, atos falhados e peripécias num Manifesto Anti-d’Orfeu, escrito por Luís. Ali se lê como a reconhece: «A d’Orfeu é uma fortaleza, de princípios. A d’Orfeu é muito estômago. A d’Orfeu quer sempre provar tudo a toda a gente. Especialmente àqueles que acham que a d’Orfeu não tem nada a provar. A d’Orfeu é um primor. É um primado no jogo de rins.»
E se tudo isto terminar? É ele que puxa a pergunta e dá a resposta. Ainda que o lema seja «futuro compassado», o fim «não é um drama. As associações não têm de ser eternas, devem ter vida para realizar ações e não existirem só por existirem. Quando a d’Orfeu deixar de ter função e fazer atividades, não vale a pena manter-se só para pagar contas.»
AGENDA
A associação d’Orfeu tem uma programação diversificada e regular. A produção Pozzo – o porco que dança, um espetáculo cómico que alia o clown à música e máscaras, está em exibição no dia 30 de julho, pelas 23 horas, no Festival O Mundo ao Contrário, que decorre em vários espaços ao ar livre de Paredes de Coura. O espetáculo de marionetas Borbolino decorre entre 1 e 7 de agosto, no Andanças, em Castelo de Vide. Dia 6 de agosto, à meia-noite, o grupo de folk serrano Toques do Caramulo atua nesse mesmo festival. Conchas, uma coprodução internacional para bebés, desenvolvido entre a d’Orfeu, Marionetas de Mandrágora e Franzisca Aarflot produksioner (Noruega) pode ser vista no dia 17 de setembro no Museu Marítimo de Ílhavo e a 29 de outubro na biblioteca de Santa Maria da Feira. Informações no site oficial.