A minha filha Carolina devia ter uns 7 meses, mais ou menos, quando dei um passo importante na educação musical dela. Quer dizer, na minha ideia da educação musical dela. Tinha pensado muitas vezes sobre isso e queria, verdadeiramente, que aquele processo se recheasse de momentos épicos. Eu imaginava-a a rir ao som de Bob Marley, a adormecer ao som de Nick Cave, a brincar ao som dos Pixies e, quem sabe, a cantarolar Bruce Springsteen. O corolário chegaria no dia em que ela me pediria para, no meu carro, pôr a tocar qualquer coisa de David Bowie.
Naquele dia, porém, a música era outra: precisava da banda sonora ideal para a fazer comer a sopa. Depois de várias tentativas de distração com desenhos animados, livros, brinquedos com sons metálicos e até algumas caretas do pai, a rapariga lá abriu a boca quando comecei a cantarolar a parte instrumental do Bellevue, dos GNR. Por esta altura, eu já tinha decidido mudar o rumo da minha influência musical junto da cria e tinha passado a tocar em casa apenas música portuguesa. Seria bom para ela ouvir palavras familiares, pensei. A minha mulher não me deu grande importância. Ela sabia que clássicos do José Barata Moura como a Joana Come a Papa, o Balão do João ou o Olha a Bola Manel eram mais indicados para os tímpanos frágeis e cérebro em desenvolvimento de um bebé mas, ainda assim, deixou-me brincar aos musicólogos infantis. E, naquela casa, começou a ser ouvido com alguma insistência a Canção de Embalar, do Zeca Afonso, o Frágil, do Jorge Palma, a Balada da Rita, do Sérgio Godinho, a Laurinda, do Vitorino, ou o Pós Modernos, dos GNR. Assim como assim, a minha filha não sabia o significado das letras, importante era ouvir as palavras, pensava eu.
Pensava mal. E só percebi isso quando consegui finalmente levar a colher a bom porto. A início aproveitei o embalo e dei-lhe a sopa, repetindo o «ta-ta-ta-ra-ta-ta-ra-ta» as vezes necessárias. Depois achei que ela era ingrata por só se divertir com a parte instrumental de uma canção com letra do Rui Reininho. Que mal empregue. E lá acabei por concluir que versos como «Os meus amigos enterrados no jardim» e «Os corpos no lago eram de gente no desemprego» podiam ser demais para ela. Nesse dia tive a certeza: a educação musical da minha filha devia seguir com mais naturalidade.
Ainda assim, continuei a dar importância à escolha criteriosa dos sons ritmados de fundo enquanto brincava com ela. Não apenas queria que ela tivesse bom gosto musical – eu sei que isto é relativo –, queria também que ela associasse as canções à figura paterna. Boa ideia? Só em teoria. É que até eu me comecei a fartar da playlist vetada a língua estrangeira. O que parecia ser uma boa ideia para defensores de quotas de música nacional das rádios portuguesas revelou-se, afinal, uma valente chatice. E nem quando introduzi Chico Buarque, Seu Jorge, Caetano Veloso, Elis Regina ou Tom Jobim ficou mais suportável. Quer dizer, a música era boa, mas o que é demais enjoa.
Dois meses depois do episódio da sopa e dos GNR, soubemos que a Carolina ia ter uma irmã e as coisas entraram naquele piloto automático que nos consome energia e horas de sono. E a ideia do aconselhamento musical foi definitivamente abandonada. Por agora. Ela passou a ouvir o que calha e a Madalena, quando nasceu, chegou a uma casa onde o leque de sons é ditado pelo que está a dar na televisão na altura. Entretanto, chegaram também os famosos clássicos do Barata Moura, mas acompanhados da irritante da Xana Toc Toc e dos enervantes amigos do Panda.
Única regra que se mantém: no carro do pai só toca a música que o pai escolhe. As rádios que o pai escolhe. Os CD que o pai escolhe. Resultado: elas não gostam que eu ponha música no carro. Mas ainda as convenço. Com calma, ainda as convenço…
[Publicado originalmente na edição de 26 de junho de 2016]